Os seis dias.
1. — CAPÍTULO I. — 1. No começo criou Deus o Céu e a Terra. —
2. A Terra era uniforme e inteiramente nua; as trevas cobriam a
face do abismo, e o Espírito de Deus flutuava sobre as águas. — 3.
Ora Deus disse: Faça-se a luz; e a luz foi feita. — 4. Deus viu que
a luz era boa e separou a luz das trevas. — 5. Deu à luz o nome de
dia e às trevas o nome de noite, e da tarde e da manhã se fez o
primeiro dia. —
6. Disse Deus também: Faça-se o Firmamento no meio das
águas e que ele separe das águas as águas.
— 7. E Deus fez o
Firmamento e separou as águas que estavam debaixo do
Firmamento das que estavam acima do Firmamento. E assim se
fez. — 8. E Deus deu ao Firmamento o nome de céu; da tarde e da
manhã se fez o segundo dia. —
9. Disse Deus ainda: Reúnam-se num só lugar as águas que
estão sob o céu e apareça o elemento árido. E assim se fez.
—
10. Deus deu ao elemento árido o nome de terra e chamou mar a
todas as águas reunidas. E viu que isso estava bem.
— 11. Disse
mais: Produza a terra a erva verde que traz a semente e árvores
frutíferas que deem frutos cada um de uma espécie, e que contenham
em si mesmas as suas sementes, para se reproduzirem na
terra. E assim se fez. — 12. A terra então produziu a erva verde
que trazia consigo a sua semente, conforme a espécie, e árvores
frutíferas que continham em si mesmas suas sementes, cada uma
de acordo com a sua espécie. E Deus viu que estava bom. —
13. E da tarde e da manhã se fez o terceiro dia. —
14. Deus disse também: Façam-se corpos de luz no
firmamento do céu, a fim de que separem o dia da noite e sirvam
de sinais para marcar o tempo e as estações, os dias e os anos.
—
15. Brilhem eles no firmamento do céu e iluminem a Terra. E
assim se fez. — 16. Deus então fez dois grandes corpos luminosos,
um, maior, para presidir ao dia, o outro, menor, para presidir
à noite; fez também as estrelas. — 17. E os pôs no firmamento do
céu, para brilharem sobre a Terra. — 18. Para presidirem ao dia e
à noite e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que estava
bom. — 19. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia. —
20. Disse Deus ainda: Produzam as águas animais vivos que
nadem nas águas e pássaros que voem sobre a Terra debaixo do
firmamento do céu.
— 21. Deus então criou os grandes peixes e
todos os animais que têm vida e movimento, que as águas produziram,
cada um de uma espécie, e criou também todos os pássaros,
cada um de uma espécie. Viu que estava bom. — 22. E os
abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai-vos e enchei as águas
do mar; e que os pássaros se multipliquem sobre a Terra. — 23. E
da tarde e da manhã se fez o quinto dia. — 24. Também disse Deus: Produza a Terra animais vivos, cada
um de sua espécie, os animais domésticos e os armais selvagens,
em suas diferentes espécies. E assim se fez.
— 25. Deus fez, pois,
os animais selvagens da Terra em suas espécies, os animais domésticos e todos os reptis, cada um de sua espécie. E Deus viu
que estava bom. — 26. Disse, em seguida: Façamos o homem a nossa imagem e
semelhança e que ele mande sobre os peixes do mar, os pássaros
do céu, os animais, sobre toda a Terra e sobre todos os reptis que
se movem na terra.
— 27. Deus então criou o homem à sua imagem
e o criou à imagem de Deus e o criou macho e fêmea. — 28.
Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei
a Terra e sujeitai-a, dominai sobre os peixes do mar, sobre os
pássaros do céu e sobre todos os animais que se movem na terra. — 29. Disse Deus ainda: Dei-vos todas as ervas que trazem sua
semente à terra e todas as árvores que encerram em si mesmas
suas sementes, cada uma de uma espécie, a fim de que vos sirvam
de alimento. — 30. E dei-as a todos os animais da terra, a
todos os pássaros do céu, a tudo o que se move na Terra e que é
vivo e animado, a fim de que tenham com que se alimentar. E
assim se fez. — 31. Deus viu todas as coisas que havia feito; eram
todas muito boas. — 32. E da tarde e da manhã se fez o sexto dia.
CAPÍTULO II. — 1. O Céu e a Terra ficaram, pois, acabados
assim com todos os seus ornamentos. — 2. Deus terminou no
sétimo dia toda a obra que fizera e repousou nesse sétimo dia,
após haver acabado todas as suas obras. — 3. Abençoou o sétimo
dia e o santificou, porque cessara nesse dia de produzir todas as
obras que criara. — 4. Tal a origem do Céu e da Terra e é assim
que eles foram criados no dia que o Senhor fez um e outro. — 5.
E que criou todas as plantas dos campos antes que houvessem
saído da terra e todas as ervas das planícies antes que houvessem
germinado. Porque, o Senhor Deus ainda não tinha feito que
chovesse sobre a terra e não havia homem para lavrá-la. — 6. Mas
da terra se elevava uma fonte que lhe regava toda a superfície. — 7. O Senhor Deus formou, pois, o homem do limo da terra e
lhe espalhou sobre o rosto um sopro de vida, e o homem se
tornou vivente e animado.
2. Depois das explanações contidas nos capítulos precedentes
sobre a origem e a constituição do universo, conformemente
aos dados fornecidos pela ciência, quanto à parte
material, e pelo Espiritismo, quanto à parte espiritual,
convém ponhamos em confronto com tudo isso o próprio
texto da Gênese de Moisés, a fim de que cada um faça a
comparação e julgue com conhecimento de causa. Algumas
explicações complementares bastarão para tornar compreensíveis
as partes que precisam de esclarecimentos
especiais.
3. Sobre alguns pontos, há, sem dúvida, notável concordância
entre a Gênese moisaica e a doutrina científica; mas,
fora erro acreditar que basta se substituam os seis dias de
24 horas da criação por seis períodos indeterminados, para
se tornar completa a analogia. Não menor erro seria o acreditar-se
que, afora o sentido alegórico de algumas palavras,
a Gênese e a ciência caminham lado a lado, sendo
uma, como se vê, simples paráfrase da outra.
4. Notemos, em primeiro lugar, que, como já se disse (cap.
VII, n.
o 14), é inteiramente arbitrário o número de seis períodos
geológicos, pois que se eleva a mais de vinte e cinco o
das formações bem caracterizadas, número que, ao demais,
apenas determina as grandes fases gerais. Ele só foi adotado,
em começo, para encaixar as coisas, o mais possível, no
texto bíblico, numa época, aliás pouco distante, em que se
entendia que a ciência devia ser controlada pela Bíblia.
Essa a razão por que os autores da maior parte das teorias
cosmogônicas, tendo em vista facilitar-lhe a aceitação, se esforçaram por pôr-se de acordo com o texto sagrado. Logo
que se apoiou no método experimental, a ciência sentiu-se
mais forte e se emancipou. Hoje, é ela que controla a Bíblia.
Doutro lado, a geologia, tomando por ponto de partida
unicamente a formação dos terrenos graníticos, não abrange,
no cômputo de seus períodos, o estado primitivo da Terra.
Tampouco se ocupa com o Sol, com a Lua e com as estrelas,
nem com o conjunto do universo, assuntos esses que
pertencem à astronomia. Para enquadrar tudo na Gênese,
cumpre se acrescente um primeiro período, que abarque
essa ordem de fenômenos e ao qual se poderia chamar —
período astronômico.
Além disso, nem todos os geólogos consideram o
diluviano como formando um período distinto, mas como
um fato transitório e passageiro, que não mudou sensivelmente
o estado climático do globo, nem marcou uma fase
nova para as espécies vegetais e animais, pois que, com
poucas exceções, as mesmas espécies se encontram, assim
antes, como depois do dilúvio. Pode-se, pois, abstrair desse
período, sem menosprezo da verdade.
5. O quadro comparativo aqui abaixo, em o qual se acham
resumidos os fenômenos que caracterizam cada um dos
seis períodos, permite se considere o conjunto e se notem
as relações e as diferenças que existem entre os referidos
períodos e a Gênese bíblica.
CIÊNCIA
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GÊNESE
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I. PERÍODO ASTRONÔMICO. —
Aglomeração da matéria cósmica
universal, num ponto do espaço,
em nebulosa que deu origem,
pela condensação da
matéria em diversos pontos, às
estrelas, ao Sol, à Terra, à Lua
e a todos os planetas.
Estado primitivo, fluídico
e incandescente da Terra. —
Atmosfera imensa carregada de
toda a água em vapor e de todas
as matérias volatilizáveis
|
1.º DIA. — O Céu e a Terra. — A
luz.
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II. PERÍODO PRIMÁRIO. — Endurecimento
da superfície da
Terra, pelo resfriamento; formação das camadas graníticas. —
Atmosfera espessa e ardente,
impenetrável aos raios solares.
— Precipitação gradual da água
e das matérias sólidas volatilizadas
no ar. — Ausência completa
de vida orgânica.
|
2.º DIA. — O Firmamento. — Separação
das águas que estão
acima do Firmamento das que
lhe estão debaixo.
|
III. PERÍODO DE TRANSIÇÃO.
— As águas cobrem toda a superfície
do globo. — Primeiros
depósitos de sedimentos formados
pelas águas. — Calor úmido.
— O Sol começa a atravessar
a atmosfera brumosa. —
Primeiros seres organizados da mais rudimentar constituição.
— Liquens, musgos, fetos,
licopódios, plantas herbáceas.
Vegetação colossal. — Primeiros
animais marinhos: zoófitos,
polipeiros, crustáceos. — Depósitos de hulha.
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3.º DIA. — As águas que estão
debaixo do Firmamento se reúnem; aparece o elemento árido.
— A terra e os mares. — As
plantas.
|
IV. PERÍODO SECUNDÁRIO. —
Superfície da Terra pouco acidentada;
águas pouco profundas
e paludosas. Temperatura menos
ardente; atmosfera mais depurada.
Consideráveis depósitos
de calcáreos pelas águas. — Vegetação
menos colossal; novas
espécies; plantas lenhosas; primeiras
árvores. — Peixes;
cetáceos; animais aquáticos
e anfíbios.
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4.º DIA. — O Sol, a Lua e as
estrelas.
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V. PERÍODO TERCIÁRIO. —
Grandes intumescimentos da
crosta sólida; formação dos
continentes. Retirada das
águas para os lugares baixos;
formação dos mares. — Atmosfera
depurada; temperatura
atual produzida pelo calor
solar. — Gigantescos animais
terrestres. Vegetais e animais
da atualidade. Pássaros.
DILÚVIO UNIVERSAL
|
5.º DIA. — Os peixes e os
pássaros.
|
VI. PERÍODO QUATERNÁRIO
OU PÓS-DILUVIANO. — Terrenos
de aluvião. — Vegetais e
animais da atualidade. — O
homem.
|
6.º DIA. — Os animais terrestres.
— O homem
|
6. Desse quadro comparativo, o primeiro fato que ressalta
é que a obra de cada um dos seis dias não corresponde de
maneira rigorosa, como o supõem muitos, a cada um dos
seis períodos geológicos. A concordância mais notável se
verifica na sucessão dos seres orgânicos, que é quase a
mesma, com pequena diferença, e no aparecimento do
homem, por último. É esse um fato importante.
Há também coincidência, não quanto à ordem numérica dos períodos, mas quanto ao fato em si, na passagem
em que se lê que, ao terceiro dia, “as águas que estão debaixo
do céu se reuniram num só lugar e apareceu o elemento
árido.” É a expressão do que ocorreu no período
terciário, quando as elevações da crosta sólida puseram a
descoberto os continentes e repeliram as águas, que foram
formar os mares. Foi somente então que apareceram os
animais terrestres, segundo a geologia e segundo Moisés.
7. Dizendo que a criação foi feita em seis dias, terá Moisés
querido falar de dias de 24 horas, ou terá empregado essa
palavra no sentido de período, de duração? É mais provável
a primeira hipótese, se nos ativermos ao texto acima: primeiramente,
porque esse é o sentido próprio da palavra
hebraica
iôm, traduzida por dia; depois, a referência à tarde
e à manhã, como limitações de cada um dos seis dias, dá lugar a que se suponha haja ele querido falar de dias
comuns. Não se pode conceber qualquer dúvida a tal respeito,
estando dito, no versículo 5: “Ele deu à luz o nome de
dia e às trevas o nome de noite; e da tarde e da manhã se
fez o primeiro dia.” Isto, evidentemente, só se pode aplicar
ao dia de 24 horas, constituído de períodos de luz e de
trevas. Ainda mais preciso se torna o sentido, quando ele
diz, no versículo 17, falando do Sol, da Lua e das estrelas:
“Colocou-as no firmamento do céu, para luzirem sobre a
Terra; para presidirem ao dia e à noite e para separarem a
luz das trevas. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia.”
Aliás, tudo, na criação, era miraculoso e, desde que se
envereda pela senda dos milagres, pode-se perfeitamente
crer que a Terra foi feita em seis vezes 24 horas, sobretudo
quando se ignoram as primeiras leis naturais. Todos os
povos civilizados partilharam dessa crença, até ao momento
em que a geologia surgiu a lhe demonstrar a impossibilidade.
8. Um dos pontos que mais criticados têm sido na Gênese é
o da criação do Sol depois da luz. Tentaram explicá-lo, com
o auxílio mesmo dos dados fornecidos pela geologia, dizendo
que, nos primeiros tempos de sua formação, por se achar
carregada de vapores densos e opacos, a atmosfera terrestre
não permitia se visse o Sol que, assim, efetivamente não
existia para a Terra. Semelhante explicação seria, porventura,
admissível se, naquela época, já houvesse na Terra
habitantes que verificassem a presença ou a ausência do
Sol. Ora, segundo o próprio Moisés, então, somente
plantas havia, as quais, contudo, não teriam podido
crescer e multiplicar-se sem o calor solar.
Há, pois, evidentemente, um anacronismo na ordem
que Moisés estabeleceu para a criação do Sol; mas, involuntariamente
ou não, ele não errou, dizendo que a luz
precedeu o Sol.
O Sol não é o princípio da luz universal; é uma concentração
do elemento luminoso em um ponto, ou, por outra,
do fluido que, em dadas circunstâncias, adquire as propriedades
luminosas. Esse fluido, que é a causa, havia
necessariamente de preceder ao Sol, que é apenas um efeito.
O Sol é causa, relativamente à luz que dele se irradia; é
efeito, com relação à que recebeu.
Numa câmara escura, uma vela acesa é um pequeno
sol. Que é que se fez para acender a vela? Desenvolveu-se a
propriedade iluminante do fluido luminoso e concentrou-se
num ponto esse fluido. A vela é a causa da luz que se difunde
pela câmara; mas, se não existira o princípio luminoso
antes da vela, esta não pudera ter sido acesa.
O mesmo se dá com o Sol. O erro provém da ideia falsa,
alimentada por longo tempo, de que o universo inteiro
começou com a Terra. Daí o não compreenderem que o Sol
pudesse ser criado depois da luz. Em princípio, pois, a
asserção de Moisés é perfeitamente exata: é falsa no fazer
crer que a Terra tenha sido criada antes do Sol. Estando,
pelo seu movimento de translação, sujeita a esse último, a
Terra houve de ser formada depois dele. É o que Moisés
não podia saber, pois que ignorava a lei de gravitação.
Com a mesma ideia se depara na Gênese dos antigos
persas. No primeiro capítulo do Vendedad, Ormuz, narrando
a origem do mundo, diz: “Eu criei a luz que foi iluminar o Sol, a Lua e as estrelas.” (
Dicionário de Mitologia Universal.)
A forma, aqui, é sem dúvida mais clara e mais científica
do que em Moisés e não reclama comentários.
9. Moisés, evidentemente, partilhava das mais primitivas
crenças sobre a cosmogonia. Como os do seu tempo, ele
acreditava na solidez da abóbada celeste e em reservatórios
superiores para as águas. Essa ideia se acha expressa sem
alegoria, nem ambiguidade, neste passo (versículos 6 e
seguintes): “Deus disse: Faça-se o Firmamento no meio das
águas para separar das águas as águas. Deus fez o Firmamento
e separou as águas que estavam debaixo do Firmamento das
que estavam por cima do Firmamento.” (Veja-se: cap. V,
Antigos e modernos sistemas do mundo, n.os 3, 4 e 5.)
Segundo uma crença antiga, a água era tida como o
princípio primitivo, o elemento gerador, pelo que Moisés não
fala da criação das águas, parecendo que já elas existiam.
“As trevas cobriam o abismo”, isto é, as profundezas do
espaço, que a imaginação imprecisamente figurava ocupada
pelas águas e em trevas, antes da criação da luz. Eis aí
por que Moisés diz: “O Espírito de Deus era levado (ou
boiava) sobre as águas.” Tida a Terra como formada no meio
das águas, era preciso insulá-la. Imaginou-se então que
Deus fizera o Firmamento, uma abóbada sólida, para
separar as águas de cima das que estavam sobre a Terra.
A fim de compreendermos certas partes da Gênese,
faz-se indispensável que nos coloquemos no ponto de vista
das ideias cosmogônicas da época que ela reflete.
10. Em face dos progressos da física e da astronomia, é
insustentável semelhante doutrina*. Entretanto, Moisés
atribui ao próprio Deus aquelas palavras. Ora, visto que
elas exprimem um fato notoriamente falso, uma de duas:
ou Deus se enganou em a narrativa que fez da sua obra, ou
essa narrativa não é de origem divina. Não sendo admissível
a primeira hipótese, forçoso é concluir que Moisés apenas
exprimiu suas próprias ideias. (Cap. I, n.
o 3.)
* Embora muito grosseiro o erro de tal crença, com ela ainda se
embalam presentemente as crianças, como se se tratara de uma
verdade sagrada. Só a tremer ousam os educadores aventurar-se
a uma tímida interpretação. Como quererem que isso não venha
mais tarde a fazer incrédulos?
11. Ele se houve com mais acerto, dizendo que Deus formou
o homem do limo da Terra*. A ciência, com efeito,
mostra (cap. X) que o corpo do homem se compõe de
elementos tomados à matéria inorgânica, ou, por outra, ao
limo da terra.
A mulher formada de uma costela de Adão é uma alegoria,
aparentemente pueril, se admitida ao pé da letra,
mas profunda, quanto ao sentido. Tem por fim mostrar que
a mulher é da mesma natureza que o homem, que é por
conseguinte igual a este perante Deus e não uma criatura à
parte, feita para ser escravizada e tratada qual hilota. Tendo-a
como saída da própria carne do homem, a imagem da
igualdade é bem mais expressiva, do que se ela fora tida como formada, separadamente, do mesmo limo. Equivale a
dizer ao homem que ela é sua igual e não sua escrava, que
ele a deve amar como parte de si mesmo.
* O termo hebreu haadam, homem, do qual se compôs Adão e o
termo
haadama, terra, têm a mesma raiz.
12. Para espíritos incultos, sem nenhuma ideia das leis
gerais, incapazes de apreender o conjunto e de conceber o
infinito, essa criação milagrosa e instantânea apresentava
qualquer coisa de fantástico que feria a imaginação. O quadro
do universo tirado do nada em alguns dias, por um só
ato da vontade criadora, era, para tais espíritos, o sinal
mais evidente do poder de Deus. Que configuração, com
efeito, mais sublime e mais poética desse poder, do que a
que estas palavras traçam: “Deus disse: Faça-se a luz; e a
luz foi feita!” Deus, a criar o universo pela ação lenta e
gradual das leis da natureza, lhes houvera parecido menor
e menos poderoso. Fazia-se-lhes indispensável qualquer
coisa de maravilhoso, que saísse dos moldes comuns, do
contrário teriam dito que Deus não era mais hábil do que
os homens. Uma teoria científica e racional da criação os
deixaria frios e indiferentes.
Não rejeitemos, pois, a Gênese bíblica; ao contrário,
estudemo-la, como se estuda a história da infância dos
povos. Trata-se de uma época rica de alegorias, cujo sentido
oculto se deve pesquisar; que se devem comentar e explicar
com o auxílio das luzes da razão e da ciência. Fazendo,
porém, ressaltar as suas belezas poéticas e os seus
ensinamentos velados pela forma imaginosa, cumpre se lhe
apontem expressamente os erros, no próprio interesse da
religião. Esta será muito mais respeitada, quando esses erros
deixarem de ser impostos à fé, como verdade, e Deus parecerá maior e mais poderoso, quando não lhe envolverem
o nome em fatos de pura invenção.