CAPÍTULO XII
GÊNESE MOISAICA
Os seis dias. — Perda do paraíso.
Os seis dias.
1. — CAPÍTULO I. — 1. No começo criou Deus o Céu e a Terra. —
2. A Terra era uniforme e inteiramente nua; as trevas cobriam a
face do abismo, e o Espírito de Deus flutuava sobre as águas. — 3.
Ora Deus disse: Faça-se a luz; e a luz foi feita. — 4. Deus viu que
a luz era boa e separou a luz das trevas. — 5. Deu à luz o nome de
dia e às trevas o nome de noite, e da tarde e da manhã se fez o
primeiro dia. —
6. Disse Deus também: Faça-se o Firmamento no meio das
águas e que ele separe das águas as águas.
— 7. E Deus fez o
Firmamento e separou as águas que estavam debaixo do
Firmamento das que estavam acima do Firmamento. E assim se
fez. — 8. E Deus deu ao Firmamento o nome de céu; da tarde e da
manhã se fez o segundo dia. —
9. Disse Deus ainda: Reúnam-se num só lugar as águas que
estão sob o céu e apareça o elemento árido. E assim se fez.
—
10. Deus deu ao elemento árido o nome de terra e chamou mar a
todas as águas reunidas. E viu que isso estava bem.
— 11. Disse
mais: Produza a terra a erva verde que traz a semente e árvores
frutíferas que deem frutos cada um de uma espécie, e que contenham
em si mesmas as suas sementes, para se reproduzirem na
terra. E assim se fez. — 12. A terra então produziu a erva verde
que trazia consigo a sua semente, conforme a espécie, e árvores
frutíferas que continham em si mesmas suas sementes, cada uma
de acordo com a sua espécie. E Deus viu que estava bom. —
13. E da tarde e da manhã se fez o terceiro dia. —
14. Deus disse também: Façam-se corpos de luz no
firmamento do céu, a fim de que separem o dia da noite e sirvam
de sinais para marcar o tempo e as estações, os dias e os anos.
—
15. Brilhem eles no firmamento do céu e iluminem a Terra. E
assim se fez. — 16. Deus então fez dois grandes corpos luminosos,
um, maior, para presidir ao dia, o outro, menor, para presidir
à noite; fez também as estrelas. — 17. E os pôs no firmamento do
céu, para brilharem sobre a Terra. — 18. Para presidirem ao dia e
à noite e para separarem a luz das trevas. E Deus viu que estava
bom. — 19. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia. —
20. Disse Deus ainda: Produzam as águas animais vivos que
nadem nas águas e pássaros que voem sobre a Terra debaixo do
firmamento do céu.
— 21. Deus então criou os grandes peixes e
todos os animais que têm vida e movimento, que as águas produziram,
cada um de uma espécie, e criou também todos os pássaros,
cada um de uma espécie. Viu que estava bom. — 22. E os
abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai-vos e enchei as águas
do mar; e que os pássaros se multipliquem sobre a Terra. — 23. E
da tarde e da manhã se fez o quinto dia. — 24. Também disse Deus: Produza a Terra animais vivos, cada
um de sua espécie, os animais domésticos e os armais selvagens,
em suas diferentes espécies. E assim se fez.
— 25. Deus fez, pois,
os animais selvagens da Terra em suas espécies, os animais domésticos e todos os reptis, cada um de sua espécie. E Deus viu
que estava bom. — 26. Disse, em seguida: Façamos o homem a nossa imagem e
semelhança e que ele mande sobre os peixes do mar, os pássaros
do céu, os animais, sobre toda a Terra e sobre todos os reptis que
se movem na terra.
— 27. Deus então criou o homem à sua imagem
e o criou à imagem de Deus e o criou macho e fêmea. — 28.
Deus os abençoou e lhes disse: Crescei e multiplicai-vos, enchei
a Terra e sujeitai-a, dominai sobre os peixes do mar, sobre os
pássaros do céu e sobre todos os animais que se movem na terra. — 29. Disse Deus ainda: Dei-vos todas as ervas que trazem sua
semente à terra e todas as árvores que encerram em si mesmas
suas sementes, cada uma de uma espécie, a fim de que vos sirvam
de alimento. — 30. E dei-as a todos os animais da terra, a
todos os pássaros do céu, a tudo o que se move na Terra e que é
vivo e animado, a fim de que tenham com que se alimentar. E
assim se fez. — 31. Deus viu todas as coisas que havia feito; eram
todas muito boas. — 32. E da tarde e da manhã se fez o sexto dia.
CAPÍTULO II. — 1. O Céu e a Terra ficaram, pois, acabados
assim com todos os seus ornamentos. — 2. Deus terminou no
sétimo dia toda a obra que fizera e repousou nesse sétimo dia,
após haver acabado todas as suas obras. — 3. Abençoou o sétimo
dia e o santificou, porque cessara nesse dia de produzir todas as
obras que criara. — 4. Tal a origem do Céu e da Terra e é assim
que eles foram criados no dia que o Senhor fez um e outro. — 5.
E que criou todas as plantas dos campos antes que houvessem
saído da terra e todas as ervas das planícies antes que houvessem
germinado. Porque, o Senhor Deus ainda não tinha feito que
chovesse sobre a terra e não havia homem para lavrá-la. — 6. Mas
da terra se elevava uma fonte que lhe regava toda a superfície. — 7. O Senhor Deus formou, pois, o homem do limo da terra e
lhe espalhou sobre o rosto um sopro de vida, e o homem se
tornou vivente e animado.
2. Depois das explanações contidas nos capítulos precedentes
sobre a origem e a constituição do universo, conformemente
aos dados fornecidos pela ciência, quanto à parte
material, e pelo Espiritismo, quanto à parte espiritual,
convém ponhamos em confronto com tudo isso o próprio
texto da Gênese de Moisés, a fim de que cada um faça a
comparação e julgue com conhecimento de causa. Algumas
explicações complementares bastarão para tornar compreensíveis
as partes que precisam de esclarecimentos
especiais.
3. Sobre alguns pontos, há, sem dúvida, notável concordância
entre a Gênese moisaica e a doutrina científica; mas,
fora erro acreditar que basta se substituam os seis dias de
24 horas da criação por seis períodos indeterminados, para
se tornar completa a analogia. Não menor erro seria o acreditar-se
que, afora o sentido alegórico de algumas palavras,
a Gênese e a ciência caminham lado a lado, sendo
uma, como se vê, simples paráfrase da outra.
4. Notemos, em primeiro lugar, que, como já se disse (cap.
VII, n.
o 14), é inteiramente arbitrário o número de seis períodos
geológicos, pois que se eleva a mais de vinte e cinco o
das formações bem caracterizadas, número que, ao demais,
apenas determina as grandes fases gerais. Ele só foi adotado,
em começo, para encaixar as coisas, o mais possível, no
texto bíblico, numa época, aliás pouco distante, em que se
entendia que a ciência devia ser controlada pela Bíblia.
Essa a razão por que os autores da maior parte das teorias
cosmogônicas, tendo em vista facilitar-lhe a aceitação, se esforçaram por pôr-se de acordo com o texto sagrado. Logo
que se apoiou no método experimental, a ciência sentiu-se
mais forte e se emancipou. Hoje, é ela que controla a Bíblia.
Doutro lado, a geologia, tomando por ponto de partida
unicamente a formação dos terrenos graníticos, não abrange,
no cômputo de seus períodos, o estado primitivo da Terra.
Tampouco se ocupa com o Sol, com a Lua e com as estrelas,
nem com o conjunto do universo, assuntos esses que
pertencem à astronomia. Para enquadrar tudo na Gênese,
cumpre se acrescente um primeiro período, que abarque
essa ordem de fenômenos e ao qual se poderia chamar —
período astronômico.
Além disso, nem todos os geólogos consideram o
diluviano como formando um período distinto, mas como
um fato transitório e passageiro, que não mudou sensivelmente
o estado climático do globo, nem marcou uma fase
nova para as espécies vegetais e animais, pois que, com
poucas exceções, as mesmas espécies se encontram, assim
antes, como depois do dilúvio. Pode-se, pois, abstrair desse
período, sem menosprezo da verdade.
5. O quadro comparativo aqui abaixo, em o qual se acham
resumidos os fenômenos que caracterizam cada um dos
seis períodos, permite se considere o conjunto e se notem
as relações e as diferenças que existem entre os referidos
períodos e a Gênese bíblica.
CIÊNCIA
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GÊNESE
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I. PERÍODO ASTRONÔMICO. —
Aglomeração da matéria cósmica
universal, num ponto do espaço,
em nebulosa que deu origem,
pela condensação da
matéria em diversos pontos, às
estrelas, ao Sol, à Terra, à Lua
e a todos os planetas.
Estado primitivo, fluídico
e incandescente da Terra. —
Atmosfera imensa carregada de
toda a água em vapor e de todas
as matérias volatilizáveis
|
1.º DIA. — O Céu e a Terra. — A
luz.
|
II. PERÍODO PRIMÁRIO. — Endurecimento
da superfície da
Terra, pelo resfriamento; formação das camadas graníticas. —
Atmosfera espessa e ardente,
impenetrável aos raios solares.
— Precipitação gradual da água
e das matérias sólidas volatilizadas
no ar. — Ausência completa
de vida orgânica.
|
2.º DIA. — O Firmamento. — Separação
das águas que estão
acima do Firmamento das que
lhe estão debaixo.
|
III. PERÍODO DE TRANSIÇÃO.
— As águas cobrem toda a superfície
do globo. — Primeiros
depósitos de sedimentos formados
pelas águas. — Calor úmido.
— O Sol começa a atravessar
a atmosfera brumosa. —
Primeiros seres organizados da mais rudimentar constituição.
— Liquens, musgos, fetos,
licopódios, plantas herbáceas.
Vegetação colossal. — Primeiros
animais marinhos: zoófitos,
polipeiros, crustáceos. — Depósitos de hulha.
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3.º DIA. — As águas que estão
debaixo do Firmamento se reúnem; aparece o elemento árido.
— A terra e os mares. — As
plantas.
|
IV. PERÍODO SECUNDÁRIO. —
Superfície da Terra pouco acidentada;
águas pouco profundas
e paludosas. Temperatura menos
ardente; atmosfera mais depurada.
Consideráveis depósitos
de calcáreos pelas águas. — Vegetação
menos colossal; novas
espécies; plantas lenhosas; primeiras
árvores. — Peixes;
cetáceos; animais aquáticos
e anfíbios.
|
4.º DIA. — O Sol, a Lua e as
estrelas.
|
V. PERÍODO TERCIÁRIO. —
Grandes intumescimentos da
crosta sólida; formação dos
continentes. Retirada das
águas para os lugares baixos;
formação dos mares. — Atmosfera
depurada; temperatura
atual produzida pelo calor
solar. — Gigantescos animais
terrestres. Vegetais e animais
da atualidade. Pássaros.
DILÚVIO UNIVERSAL
|
5.º DIA. — Os peixes e os
pássaros.
|
VI. PERÍODO QUATERNÁRIO
OU PÓS-DILUVIANO. — Terrenos
de aluvião. — Vegetais e
animais da atualidade. — O
homem.
|
6.º DIA. — Os animais terrestres.
— O homem
|
6. Desse quadro comparativo, o primeiro fato que ressalta
é que a obra de cada um dos seis dias não corresponde de
maneira rigorosa, como o supõem muitos, a cada um dos
seis períodos geológicos. A concordância mais notável se
verifica na sucessão dos seres orgânicos, que é quase a
mesma, com pequena diferença, e no aparecimento do
homem, por último. É esse um fato importante.
Há também coincidência, não quanto à ordem numérica dos períodos, mas quanto ao fato em si, na passagem
em que se lê que, ao terceiro dia, “as águas que estão debaixo
do céu se reuniram num só lugar e apareceu o elemento
árido.” É a expressão do que ocorreu no período
terciário, quando as elevações da crosta sólida puseram a
descoberto os continentes e repeliram as águas, que foram
formar os mares. Foi somente então que apareceram os
animais terrestres, segundo a geologia e segundo Moisés.
7. Dizendo que a criação foi feita em seis dias, terá Moisés
querido falar de dias de 24 horas, ou terá empregado essa
palavra no sentido de período, de duração? É mais provável
a primeira hipótese, se nos ativermos ao texto acima: primeiramente,
porque esse é o sentido próprio da palavra
hebraica
iôm, traduzida por dia; depois, a referência à tarde
e à manhã, como limitações de cada um dos seis dias, dá lugar a que se suponha haja ele querido falar de dias
comuns. Não se pode conceber qualquer dúvida a tal respeito,
estando dito, no versículo 5: “Ele deu à luz o nome de
dia e às trevas o nome de noite; e da tarde e da manhã se
fez o primeiro dia.” Isto, evidentemente, só se pode aplicar
ao dia de 24 horas, constituído de períodos de luz e de
trevas. Ainda mais preciso se torna o sentido, quando ele
diz, no versículo 17, falando do Sol, da Lua e das estrelas:
“Colocou-as no firmamento do céu, para luzirem sobre a
Terra; para presidirem ao dia e à noite e para separarem a
luz das trevas. E da tarde e da manhã se fez o quarto dia.”
Aliás, tudo, na criação, era miraculoso e, desde que se
envereda pela senda dos milagres, pode-se perfeitamente
crer que a Terra foi feita em seis vezes 24 horas, sobretudo
quando se ignoram as primeiras leis naturais. Todos os
povos civilizados partilharam dessa crença, até ao momento
em que a geologia surgiu a lhe demonstrar a impossibilidade.
8. Um dos pontos que mais criticados têm sido na Gênese é
o da criação do Sol depois da luz. Tentaram explicá-lo, com
o auxílio mesmo dos dados fornecidos pela geologia, dizendo
que, nos primeiros tempos de sua formação, por se achar
carregada de vapores densos e opacos, a atmosfera terrestre
não permitia se visse o Sol que, assim, efetivamente não
existia para a Terra. Semelhante explicação seria, porventura,
admissível se, naquela época, já houvesse na Terra
habitantes que verificassem a presença ou a ausência do
Sol. Ora, segundo o próprio Moisés, então, somente
plantas havia, as quais, contudo, não teriam podido
crescer e multiplicar-se sem o calor solar.
Há, pois, evidentemente, um anacronismo na ordem
que Moisés estabeleceu para a criação do Sol; mas, involuntariamente
ou não, ele não errou, dizendo que a luz
precedeu o Sol.
O Sol não é o princípio da luz universal; é uma concentração
do elemento luminoso em um ponto, ou, por outra,
do fluido que, em dadas circunstâncias, adquire as propriedades
luminosas. Esse fluido, que é a causa, havia
necessariamente de preceder ao Sol, que é apenas um efeito.
O Sol é causa, relativamente à luz que dele se irradia; é
efeito, com relação à que recebeu.
Numa câmara escura, uma vela acesa é um pequeno
sol. Que é que se fez para acender a vela? Desenvolveu-se a
propriedade iluminante do fluido luminoso e concentrou-se
num ponto esse fluido. A vela é a causa da luz que se difunde
pela câmara; mas, se não existira o princípio luminoso
antes da vela, esta não pudera ter sido acesa.
O mesmo se dá com o Sol. O erro provém da ideia falsa,
alimentada por longo tempo, de que o universo inteiro
começou com a Terra. Daí o não compreenderem que o Sol
pudesse ser criado depois da luz. Em princípio, pois, a
asserção de Moisés é perfeitamente exata: é falsa no fazer
crer que a Terra tenha sido criada antes do Sol. Estando,
pelo seu movimento de translação, sujeita a esse último, a
Terra houve de ser formada depois dele. É o que Moisés
não podia saber, pois que ignorava a lei de gravitação.
Com a mesma ideia se depara na Gênese dos antigos
persas. No primeiro capítulo do Vendedad, Ormuz, narrando
a origem do mundo, diz: “Eu criei a luz que foi iluminar o Sol, a Lua e as estrelas.” (
Dicionário de Mitologia Universal.)
A forma, aqui, é sem dúvida mais clara e mais científica
do que em Moisés e não reclama comentários.
9. Moisés, evidentemente, partilhava das mais primitivas
crenças sobre a cosmogonia. Como os do seu tempo, ele
acreditava na solidez da abóbada celeste e em reservatórios
superiores para as águas. Essa ideia se acha expressa sem
alegoria, nem ambiguidade, neste passo (versículos 6 e
seguintes): “Deus disse: Faça-se o Firmamento no meio das
águas para separar das águas as águas. Deus fez o Firmamento
e separou as águas que estavam debaixo do Firmamento das
que estavam por cima do Firmamento.” (Veja-se: cap. V,
Antigos e modernos sistemas do mundo, n.os 3, 4 e 5.)
Segundo uma crença antiga, a água era tida como o
princípio primitivo, o elemento gerador, pelo que Moisés não
fala da criação das águas, parecendo que já elas existiam.
“As trevas cobriam o abismo”, isto é, as profundezas do
espaço, que a imaginação imprecisamente figurava ocupada
pelas águas e em trevas, antes da criação da luz. Eis aí
por que Moisés diz: “O Espírito de Deus era levado (ou
boiava) sobre as águas.” Tida a Terra como formada no meio
das águas, era preciso insulá-la. Imaginou-se então que
Deus fizera o Firmamento, uma abóbada sólida, para
separar as águas de cima das que estavam sobre a Terra.
A fim de compreendermos certas partes da Gênese,
faz-se indispensável que nos coloquemos no ponto de vista
das ideias cosmogônicas da época que ela reflete.
10. Em face dos progressos da física e da astronomia, é
insustentável semelhante doutrina*. Entretanto, Moisés
atribui ao próprio Deus aquelas palavras. Ora, visto que
elas exprimem um fato notoriamente falso, uma de duas:
ou Deus se enganou em a narrativa que fez da sua obra, ou
essa narrativa não é de origem divina. Não sendo admissível
a primeira hipótese, forçoso é concluir que Moisés apenas
exprimiu suas próprias ideias. (Cap. I, n.
o 3.)
* Embora muito grosseiro o erro de tal crença, com ela ainda se
embalam presentemente as crianças, como se se tratara de uma
verdade sagrada. Só a tremer ousam os educadores aventurar-se
a uma tímida interpretação. Como quererem que isso não venha
mais tarde a fazer incrédulos?
11. Ele se houve com mais acerto, dizendo que Deus formou
o homem do limo da Terra*. A ciência, com efeito,
mostra (cap. X) que o corpo do homem se compõe de
elementos tomados à matéria inorgânica, ou, por outra, ao
limo da terra.
A mulher formada de uma costela de Adão é uma alegoria,
aparentemente pueril, se admitida ao pé da letra,
mas profunda, quanto ao sentido. Tem por fim mostrar que
a mulher é da mesma natureza que o homem, que é por
conseguinte igual a este perante Deus e não uma criatura à
parte, feita para ser escravizada e tratada qual hilota. Tendo-a
como saída da própria carne do homem, a imagem da
igualdade é bem mais expressiva, do que se ela fora tida como formada, separadamente, do mesmo limo. Equivale a
dizer ao homem que ela é sua igual e não sua escrava, que
ele a deve amar como parte de si mesmo.
* O termo hebreu haadam, homem, do qual se compôs Adão e o
termo
haadama, terra, têm a mesma raiz.
12. Para espíritos incultos, sem nenhuma ideia das leis
gerais, incapazes de apreender o conjunto e de conceber o
infinito, essa criação milagrosa e instantânea apresentava
qualquer coisa de fantástico que feria a imaginação. O quadro
do universo tirado do nada em alguns dias, por um só
ato da vontade criadora, era, para tais espíritos, o sinal
mais evidente do poder de Deus. Que configuração, com
efeito, mais sublime e mais poética desse poder, do que a
que estas palavras traçam: “Deus disse: Faça-se a luz; e a
luz foi feita!” Deus, a criar o universo pela ação lenta e
gradual das leis da natureza, lhes houvera parecido menor
e menos poderoso. Fazia-se-lhes indispensável qualquer
coisa de maravilhoso, que saísse dos moldes comuns, do
contrário teriam dito que Deus não era mais hábil do que
os homens. Uma teoria científica e racional da criação os
deixaria frios e indiferentes.
Não rejeitemos, pois, a Gênese bíblica; ao contrário,
estudemo-la, como se estuda a história da infância dos
povos. Trata-se de uma época rica de alegorias, cujo sentido
oculto se deve pesquisar; que se devem comentar e explicar
com o auxílio das luzes da razão e da ciência. Fazendo,
porém, ressaltar as suas belezas poéticas e os seus
ensinamentos velados pela forma imaginosa, cumpre se lhe
apontem expressamente os erros, no próprio interesse da
religião. Esta será muito mais respeitada, quando esses erros
deixarem de ser impostos à fé, como verdade, e Deus parecerá maior e mais poderoso, quando não lhe envolverem
o nome em fatos de pura invenção.
Perda do paraíso.*
* Em seguida a alguns versículos se acha a tradução literal do texto
hebreu, exprimindo mais fielmente o pensamento primitivo. O sentido alegórico ressalta assim mais claramente.
13. — CAPÍTULO II. — 9. Ora, o Senhor Deus plantara desde o
começo um jardim de delícias, no qual pôs o homem que ele formara.
— O Senhor Deus também fizera sair da terra toda espécie
de árvores belas ao olhar e cujo fruto era agradável ao paladar e,
no meio do paraíso*, a árvore da vida, com a árvore da ciência do
bem e do mal. (Ele fez sair, Jeová Eloim, da terra (min haadama)
toda árvore bela de ver-se e boa para comer-se e a árvore da vida
(vehetz hachayim) no meio do jardim e a árvore da ciência do bem
e do mal.) 15. O Senhor tomou, pois, do homem e o colocou no paraíso de delícias, a fim de que o cultivasse e guardasse. — 16. Deu-lhe também esta ordem e lhe disse: Come de todas as árvores do
paraíso. (Ele ordenou, Jeová Eloim, ao homem (hal haadam) dizendo:
De toda árvore do jardim podes comer.) — 17. Mas, não comas
absolutamente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porquanto,
logo que o comeres, morrerás com toda a certeza. (E da
árvore do bem e do mal (oumehetz hadaat tob vara) não comerás,
pois que no dia em que dela comeres morrerás.)
* “Paraíso”, do latim paradisus, derivado do grego: paradeisos, jardim,
vergel, lugar plantado de árvores. O termo hebreu empregado
na Gênese é
hagan, que tem a mesma significação.
14. — CAPÍTULO III. — 1. Ora, a serpente era o mais fino de
todos os animais que o Senhor Deus formara na Terra. E ela
disse à mulher: Por que vos ordenou Deus que não comêsseis os
frutos de todas as árvores do paraíso? (E a serpente (nâhâsch) era
mais astuta do que todos os animais terrestres que Jeová Eloim
havia feito; ela disse à mulher (el haïscha): Terá dito Eloim: Não
comereis de nenhuma árvore do jardim?) — 2. A mulher respondeu:
Comemos dos frutos de todas as árvores que estão no paraíso. (Disse ela, a mulher, à serpente, do fruto (miperi) das árvores
do jardim podemos comer.) — 3. Mas, quanto ao fruto da árvore
que está no meio do paraíso, Deus nos ordenou que não comêssemos
dele e que não lhe tocássemos, para que não corramos o
perigo de morrer. — 4. A serpente replicou à mulher: Certamente
não morrereis. — 5. Mas, é que Deus sabe que, assim houverdes
comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses,
conhecendo o bem e o mal. — 6. A mulher considerou então que o fruto daquela árvore era
bom de comer; que era belo e agradável à vista. E, tomando dele,
o comeu e o deu a seu marido, que também comeu. (Ela viu, a
mulher, que ela era boa, a árvore como o alimento, e que era desejável a árvore para compreender (léaskil), e tomou de seu fruto, etc.) — 8. E como ouvissem a voz do Senhor Deus, que passeava à
tarde pelo jardim, quando sopra um vento brando, eles se retiraram
para o meio das árvores do paraíso, a fim de se ocultarem de
diante da sua face. — 9. Então o Senhor Deus chamou Adão e lhe disse: Onde
estás? — 10. Adão lhe respondeu: Ouvi a tua voz no paraíso e tive
medo, porque estava nu, essa a razão por que me escondi. — 11.
O Senhor lhe retrucou: E como soubeste que estavas nu, senão
porque comeste o fruto da árvore da qual eu vos proibi que
comêsseis? — 12. Adão lhe respondeu: A mulher que me deste
por companheira me apresentou o fruto dessa árvore e eu dele
comi. — 13. O Senhor Deus disse à mulher: Por que fizeste isso?
Ela respondeu: A serpente me enganou e eu comi desse fruto. — 14. Então, o Senhor Deus disse à serpente: Por teres feito
isso, serás maldita entre todos os animais e todas as bestas da
terra; rojar-te-ás sobre o ventre e comerás a terra por todos os
dias de tua vida. — 15. Porei uma inimizade entre ti e a mulher,
entre a sua raça e a tua. Ela te esmagará a cabeça e tu tentarás
morder-lhe o calcanhar. — 16. Deus disse também à mulher: Afligir-te-ei com muitos
males durante a tua gravidez; parirás com dor; estarás sob a
dominação de teu marido e ele te dominará. — 17. Disse em seguida a Adão: Por haveres escutado a voz de
tua mulher e haveres comido do fruto da árvore de que te proibi
que comesses, a terra te será maldita por causa do que fizeste e
só com muito trabalho tirarás dela com que te alimentes, durante
toda a tua vida. — 18. Ela te produzirá espinhos e sarças e te
alimentarás com a erva da terra. — 19. E comerás o teu pão com
o suor do teu rosto, até que voltes à terra donde foste tirado,
porque és pó e em pó te tornarás. — 20. E Adão deu à sua mulher o nome de Eva, que significa a
vida, porque ela era a mãe de todos os viventes.
21. O Senhor Deus também fez para Adão e sua mulher
vestiduras de peles com que os cobriu. — 22. E disse: Eis aí Adão
feito um de nós, sabendo o bem e o mal. Impeçamos, pois, agora,
que ele deite a mão à árvore da vida, que também tome do seu
fruto e que, comendo desse fruto, viva eternamente. (Ele disse,
Jeová Eloim: Eis aí, o homem foi como um de nós para o conhecimento
do bem e do mal; agora ele pode estender a mão e tomar da
árvore da vida (veata pen ischlachyado velakach mehetz
hachayim); comerá dela e viverá eternamente.) — 23. O Senhor Deus o fez sair do jardim de delícias, a fim de
que fosse trabalhar no cultivo da terra donde ele fora tirado. — 24. E, tendo-o expulsado, colocou querubins* diante do jardim
de delícias, os quais faziam luzir uma espada de fogo, para guardarem
o caminho que levava à árvore da vida.
* Do hebreu cherub, keroub, boi, charab, lavrar; anjos do segundo
coro da primeira hierarquia, que eram representados com quatro
asas, quatro faces e pés de boi.
15. Sob uma imagem pueril e às vezes ridícula, se nos
ativermos à forma, a alegoria oculta frequentemente as
maiores verdades. Haverá fábula mais absurda, à primeira
vista, do que a de Saturno, o deus que devorava pedras,
tomando-as por seus filhos? Todavia, que de mais profundamente
filosófico e verdadeiro do que essa figura, se lhe
procuramos o sentido moral! Saturno é a personificação do
tempo; sendo todas as coisas obra do tempo, ele é o pai de
tudo o que existe; mas, também, tudo se destrói com o
tempo. Saturno a devorar pedras é o símbolo da destruição, pelo tempo, dos mais duros corpos, seus filhos, visto
que se formaram com o tempo. E quem, segundo essa mesma
alegoria, escapa a semelhante destruição? Somente
Júpiter, símbolo da inteligência superior, do princípio espiritual,
que é indestrutível. É mesmo tão natural essa imagem,
que, na linguagem moderna, sem alusão à Fábula
antiga, se diz, de uma coisa que afinal se deteriorou, ter sido
devorada pelo tempo, carcomida, devastada pelo tempo.
Toda a mitologia pagã, aliás, nada mais é, em realidade,
do que um vasto quadro alegórico das diversas faces,
boas e más, da humanidade. Para quem lhe busca o espírito,
é um curso completo da mais alta filosofia, como
acontece com as modernas fábulas. O absurdo estava em
tomarem a forma pelo fundo.
16. Outro tanto se dá com a Gênese, onde se tem que perceber
grandes verdades morais debaixo das figuras materiais
que, tomadas ao pé da letra, seriam tão absurdas como
se, em nossas fábulas, tomássemos em sentido literal as
cenas e os diálogos atribuídos aos animais.
Adão personifica a humanidade; sua falta individualiza
a fraqueza do homem, em quem predominam os instintos
materiais a que ele não sabe resistir.*
A árvore, como árvore de vida, é o emblema da vida
espiritual; como árvore da ciência, é o da consciência, que
o homem adquire, do bem e do mal, pelo desenvolvimento
da sua inteligência e do livre-arbítrio, em virtude do qual
ele escolhe entre um e outro. Assinala o ponto em que a
alma do homem, deixando de ser guiada unicamente pelos
instintos, toma posse da sua liberdade e incorre na responsabilidade
dos seus atos.
O fruto da árvore simboliza o objeto dos desejos materiais
do homem; é a alegoria da cobiça e da concupiscência;
concretiza, numa figura única, os motivos de arrastamento
ao mal. O comer é sucumbir à tentação. A árvore se ergue
no meio do jardim de delícias, para mostrar que a sedução
está no seio mesmo dos prazeres e para lembrar que, se dá
preponderância aos gozos materiais, o homem se prende à
Terra e se afasta do seu destino espiritual.**
A morte de que ele é ameaçado, caso infrinja a proibição que se lhe faz, é um aviso das consequências inevitáveis, físicas e morais, decorrentes da violação das leis divinas
que Deus lhe gravou na consciência. É por demais
evidente que aqui não se trata da morte corporal, pois que,
depois de cometida a falta, Adão ainda viveu longo tempo,
mas, sim, da morte espiritual, ou, por outras palavras, da
perda dos bens que resultam do adiantamento moral,
perda figurada pela sua expulsão do jardim de delícias.
* Está hoje perfeitamente reconhecido que a palavra hebreia haadam
não é um nome próprio, mas significa: o homem em geral, a humanidade,
o que destrói toda a estrutura levantada sobre a personalidade
de Adão.
** Em nenhum texto o fruto é especializado na maçã, palavra que só
se encontra nas versões infantis. O termo do texto hebreu é peri, que tem as mesmas acepções que em francês, sem determinação
de espécie e pode ser tomado em sentido material, moral, alegórico,
em sentido próprio e figurado. Para os israelitas, não há interpretação obrigatória; quando uma palavra tem muitas acepções, cada
um a entende como quer, contanto que a interpretação não seja
contrária à gramática. O termo peri foi traduzido em latim por
malum, que se aplica tanto à maçã, como a qualquer espécie de
frutos. Deriva do grego melon, particípio do verbo
melo, interessar,
cuidar, atrair.
17. A serpente está longe hoje de ser tida como tipo da
astúcia. Ela, pois, entra aqui mais pela sua forma do que
pelo seu caráter, como alusão à perfídia dos maus conselhos,
que se insinuam como a serpente e da qual, por essa
razão, o homem, muitas vezes, não desconfia. Ao demais,
se a serpente, por haver enganado a mulher, é que foi condenada
a andar de rojo sobre o ventre, dever-se-á deduzir
que antes esse animal tinha pernas; mas, neste caso, não
era serpente. Por que, então, se há de impor à fé ingênua e
crédula das crianças, como verdades, tão evidentes
alegorias, com o que, falseando-se-lhes o juízo, se faz que
mais tarde venham a considerar a Bíblia um tecido de
fábulas absurdas?
Deve-se, além disso, notar que o termo hebreu
nâhâsch, traduzido por serpente, vem da raiz nâhâsch,
que significa: fazer encantamentos, adivinhar as coisas ocultas,
podendo, pois, significar: encantador, adivinho. Com
esta acepção, ele é encontrado na própria Gênese, 44:5 e
15, a propósito da taça que José mandou esconder no saco
de Benjamim: “A taça que roubaste é a em que meu Senhor
bebe e de que se serve para adivinhar (nâhâsch)*. — Ignoras
que não há quem me iguale na ciência de adivinhar
(nâhâsch)?” — No livro Números, 23:23: “Não há encantamentos
(nâhâsch) em Jacob, nem adivinhos em Israel.” Daí
o haver a palavra nâhâsch tomado também a significação
de serpente, réptil que os encantadores tinham a pretensão
de encantar, ou de que se serviam em seus encantamentos.
A palavra nâhâsch só foi traduzida por serpente na
versão dos Setenta — os quais, segundo Hutcheson, corromperam
o texto hebreu em muitos lugares — versão essa
escrita em grego no segundo século da era cristã. As suas
inexatidões resultaram, sem dúvida, das modificações que
a língua hebraica sofrera no intervalo transcorrido, porquanto
o hebreu do tempo de Moisés era uma língua morta,
que diferia do hebreu vulgar, tanto quanto o grego antigo
e o árabe literário diferem do grego e do árabe modernos.**
É, pois, provável que Moisés tenha apresentado como
sedutor da mulher o desejo de conhecer as coisas ocultas,
suscitado pelo Espírito de adivinhação, o que concorda com
o sentido primitivo da palavra nâhâsch, adivinhar, e, por
outro lado, com estas palavras: “Deus sabe que, logo que
houverdes comido desse fruto, vossos olhos se abrirão e
sereis como deuses. — Ela, a mulher, viu que era cobiçável
a árvore para compreender (léaskil) e tomou do seu fruto.”
Não se deve esquecer que Moisés queria proscrever de entre
os hebreus a arte da adivinhação praticada pelos
egípcios, como o prova o haver proibido que aqueles interrogassem
os mortos e o Espírito Piton. (
O Céu e o Inferno
segundo o Espiritismo
, cap. XII.)
* Deste fato se poderá inferir que os egípcios conheciam a mediunidade pelo copo d’água? (Revue spirite, de junho do 1868,
pág. 161.)
** O termo nâhâsch existia na língua egípcia, com a significação de
negro, provavelmente porque os negros tinham o dom dos encantamentos
e da adivinhação. Talvez também por isso é que as esfinges,
de origem assíria, eram representadas por uma figura de negro.
18. A passagem que diz: “O Senhor passeava pelo jardim à
tarde, quando se levanta vento brando”, é uma imagem ingênua
e um tanto pueril, que a crítica não deixou de assinalar;
mas, nada tem que surpreenda, se nos reportamos à
idéia que os hebreus dos tempos primitivos faziam de Deus.
Para aquelas inteligências frustas, incapazes de conceber abstrações,
Deus havia de ter uma forma concreta e eles tudo
referiam à humanidade, como único ponto que conheciam.
Moisés, por isso, lhes falava como a crianças, por meio de imagens
sensíveis. No caso de que se trata, tem-se personificada a
Potência soberana, como os pagãos personificavam, em figuras
alegóricas, as virtudes, os vícios e as idéias abstratas. Mais
tarde, os homens despojaram da forma a ideia, do mesmo
modo que a criança, tornada adulta, procura o sentido moral
dos contos com que a acalentaram. Deve-se, portanto, considerar
essa passagem como uma alegoria, figurando a Divindade
a vigiar em pessoa os objetos da sua criação. O grande rabino Wogue a traduziu assim: “Eles ouviram a voz do Eterno
Deus, percorrendo o jardim, do lado donde vem o dia.”
19. Se a falta de Adão consistiu literalmente em ter comido
um fruto, ela não poderia, incontestavelmente, pela sua
natureza quase pueril, justificar o rigor com que foi punida.
Não se poderia tampouco admitir, racionalmente, que o
fato seja qual geralmente o supõem; se o fosse, teríamos
Deus, considerando-o irremissível crime, a condenar a sua
própria obra, pois que ele criara o homem para a propagação. Se Adão houvesse entendido assim a proibição de tocar
no fruto da árvore e com ela se houvesse conformado
escrupulosamente, onde estaria a humanidade e que teria
sido feito dos desígnios do Criador?
Deus não criara Adão e Eva para ficarem sós na Terra;
a prova disso está nas próprias palavras que lhes dirige
logo depois de os ter formado, quando eles ainda estavam
no paraíso terrestre: “Deus os abençoou e lhes disse: Crescei
e multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a ao vosso domínio.”
(Gênese,1:28.) Uma vez que a multiplicação era lei
já no paraíso terrenal, a expulsão deles dali não pode ter
tido como causa o fato suposto.
O que deu crédito a essa suposição foi o sentimento de
vergonha que Adão e Eva manifestaram ante o olhar de
Deus e que os levou a se ocultarem. Mas, essa própria vergonha
é uma figura por comparação: simboliza a confusão
que todo culpado experimenta em presença de quem foi
por ele ofendido.
20. Qual, então, em definitiva, a falta tão grande que mereceu
acarretar a reprovação perpétua de todos os descendentes daquele que a cometeu? Caim, o fratricida, não foi
tratado tão severamente. Nenhum teólogo a pode definir
logicamente, porque todos, apegados à letra, giraram
dentro de um círculo vicioso.
Sabemos hoje que essa falta não é um ato isolado, pessoal,
de um indivíduo, mas que compreende, sob um único
fato alegórico, o conjunto das prevaricações de que a humanidade da Terra, ainda imperfeita, pode tornar-se
culpada e que se resumem nisto: infração da lei de Deus.
Eis por que a falta do primeiro homem, simbolizando este
a humanidade, tem por símbolo um ato de desobediência.
21. Dizendo a Adão que ele tiraria da terra a alimentação
com o suor de seu rosto, Deus simboliza a obrigação do
trabalho; mas, por que fez do trabalho uma punição? Que
seria da inteligência do homem, se ele não a desenvolvesse
pelo trabalho? Que seria da Terra, se não fosse fecundada,
transformada, saneada pelo trabalho inteligente do homem?
Lá está dito (Gênese, 2:5 e 7): “O Senhor Deus ainda
não havia feito chover sobre a Terra e não havia nela homens
que a cultivassem. O Senhor formou então, do limo da
terra, o homem.” Essas palavras, aproximadas destas outras:
Enchei a Terra, provam que o homem, desde a sua origem,
estava destinado a ocupar toda a Terra e a cultivá-la,
assim como, ao demais, que o paraíso não era um lugar
circunscrito, a um canto do globo. Se a cultura da terra
houvesse de ser uma consequência da falta de Adão, seguir-se-ia
que, se Adão não tivesse pecado, a Terra permaneceria
inculta e os desígnios de Deus não se teriam
cumprido.
Por que disse ele à mulher que, em consequência de
haver cometido a falta, pariria com dor? Como pode a dor
do parto ser um castigo, quando é um efeito do organismo
e quando está provado, fisiologicamente, que é uma necessidade?
Como pode ser punição uma coisa que se produz
segundo as leis da natureza? É o que os teólogos absolutamente
ainda não explicaram e que não poderão explicar,
enquanto não abandonarem o ponto de vista em que se
colocaram. Entretanto, podem justificar-se aquelas palavras
que parecem tão contraditórias.
22. Notemos, antes de tudo, que se, no momento de serem
criados os dois, as almas de Adão e Eva tivessem vindo do
nada, como ainda se ensina, eles haviam de ser bisonhos
em todas as coisas; haviam, pois, de ignorar o que é morrer.
Estando sós na Terra, como estavam, enquanto viveram
no paraíso, não tinham assistido à morte de ninguém. Como,
então, teriam podido compreender em que consistia a ameaça de morte que Deus lhes fazia? Como teria Eva podido
compreender que parir com dor seria uma punição, visto
que, tendo acabado de nascer para a vida, ela jamais tivera
filhos e era a única mulher existente no mundo?
Nenhum sentido, portanto, deviam ter, para Adão e
Eva, as palavras de Deus. Mal surgidos do nada, eles não
podiam saber como nem por que haviam surgido dali; não
podiam compreender nem o Criador nem o motivo da proibição
que lhes era feita. Sem nenhuma experiência das condições
da vida, pecaram como crianças que agem sem discernimento,
o que ainda mais incompreensível torna a
terrível responsabilidade que Deus fez pesar sobre eles e
sobre a humanidade inteira.
23. Entretanto, o que constitui para a Teologia um beco
sem saída, o Espiritismo o explica sem dificuldade e de
maneira racional, pela anterioridade da alma e pela pluralidade
das existências, lei sem a qual tudo é mistério e anomalia
na vida do homem. Com efeito, admitamos que Adão
e Eva já tivessem vivido e tudo logo se justifica: Deus não
lhes fala como a crianças, mas como a seres em estado de o
compreenderem e que o compreendem, prova evidente de
que ambos trazem aquisições anteriormente realizadas.
Admitamos, ao demais, que hajam vivido em um mundo mais
adiantado e menos material do que o nosso, onde o trabalho
do Espírito substituía o do corpo; que, por se haverem rebelado
contra a lei de Deus, figurada na desobediência,
tenham sido afastados de lá e exilados, por punição, para a
Terra, onde o homem, pela natureza do globo, é constrangido
a um trabalho corporal e reconheceremos que a Deus
assistia razão para lhes dizer: “No mundo onde, daqui em
diante, ides viver, cultivareis a terra e dela tirareis o alimento,
com o suor da vossa fronte”; e, à mulher: “Parirás
com dor,” porque tal é a condição desse mundo. (Cap. XI,
n.os 31 e seguintes.)
O paraíso terrestre, cujos vestígios têm sido inutilmente
procurados na Terra, era, por conseguinte, a figura do mundo
ditoso, onde vivera Adão, ou, antes, a raça dos Espíritos que ele
personifica. A expulsa do paraíso marca o momento em que
esses Espíritos vieram encarnar entre os habitantes do mundo
terráqueo e a mudança de situação foi a consequência da expulsão.
O anjo que, empunhando uma espada flamejante, veda
a entrada do paraíso simboliza a impossibilidade em que se
acham os Espíritos dos mundos inferiores, de penetrar nos mundos superiores, antes que o mereçam pela sua depuração.
(Veja-se, adiante, o cap. XIV, n.os 8 e seguintes.)
24. Caim, depois do assassínio de Abel, responde ao Senhor: A
minha iniquidade é extremamente grande, para que me possa ser
perdoada. — Vós me expulsais hoje de cima da Terra e eu me irei
ocultar da vossa face. Irei fugitivo e vagabundo pela Terra e qualquer
um então que me encontre matar-me-á. — O Senhor lhe
respondeu: “Não, isto não se dará, porquanto severamente punido
será quem matar Caim.” E o Senhor pôs um sinal sobre Caim,
a fim de que não o matassem os que viessem a encontrá-lo.
Tendo-se retirado de diante do Senhor, Caim ficou vagabundo
pela Terra e habitou a região oriental do Éden. — Havendo
conhecido sua mulher, ela concebeu e pariu Henoch. Ele construiu
(vaïehi bôné; literalmente: estava construindo) uma cidade
a que chamou Henoch (Enoquia) do nome de seu filho. (Gênese,
4:13 a 16.)
25. Se nos apegarmos à letra da Gênese, eis as consequências
a que chegaremos: Adão e Eva estavam sós no
mundo, depois de expulsos do paraíso terrestre; só posteriormente
tiveram os dois filhos Caim e Abel. Ora, tendo-se
Caim retirado para outra região depois de haver assassinado
o irmão, não tornou a ver seus pais, que de novo ficaram
isolados. Só muito mais tarde, na idade de cento e
trinta anos, foi que Adão teve um terceiro filho, que se chamou
Seth, depois de cujo nascimento, ele ainda viveu,
segundo a genealogia bíblica, oitocentos anos, e teve mais
filhos e filhas.
Quando, pois, Caim foi estabelecer-se a leste do Éden,
somente havia na Terra três pessoas: seu pai e sua mãe, e
ele, sozinho, de seu lado. Entretanto, Caim teve mulher e
um filho. Que mulher podia ser essa e onde pudera ele
desposá-la? O texto hebreu diz: Ele estava construindo
uma cidade e não: ele construiu, o que indica ação presente
e não ulterior. Mas, uma cidade pressupõe a existência de
habitantes, visto não ser de presumir que Caim a fizesse
para si, sua mulher e seu filho, nem que a pudesse edificar
sozinho.
Dessa própria narrativa, portanto, se tem de inferir que
a região era povoada. Ora, não podia sê-lo pelos descendentes
de Adão, que então se reduziam a um só: Caim.
Aliás, a presença de outros habitantes ressalta igualmente
destas palavras de Caim: “Serei fugitivo e vagabundo
e quem quer que me encontre matar-me-á”, e da resposta
que Deus lhe deu. Quem poderia ele temer que o matasse e
que utilidade teria o sinal que Deus lhe pôs para preservá-lo
de ser morto, uma vez que ele a ninguém iria encontrar?
Ora, se havia na Terra outros homens afora a família de
Adão, é que esses homens aí estavam antes dele, donde se
deduz esta consequência, tirada do texto mesmo da Gênese:
Adão não é nem o primeiro, nem o único pai do gênero
humano. (Cap. XI, n.o 34.)*
* Não é nova esta ideia. La Peyrère, sábio teólogo do século dezessete,
em seu livro Preadamitas, escrito em latim e publicado em 1655,
extraiu do texto original da Bíblia, adulterado pelas traduções, a
prova evidente de que a Terra era habitada antes da vinda de Adão e
essa opinião é hoje a de muitos eclesiásticos esclarecidos.
26. Eram necessários os conhecimentos que o Espiritismo
ministrou acerca das relações do princípio espiritual com o
princípio material, acerca da natureza da alma, da sua criação em estado de simplicidade e de ignorância, da sua união
com o corpo, da sua indefinida marcha progressiva através
de sucessivas existências e através dos mundos, que são
outros tantos degraus da senda do aperfeiçoamento, acerca
da sua gradual libertação da influência da matéria, mediante
o uso do livre-arbítrio, da causa dos seus pendores
bons ou maus e de suas aptidões, do fenômeno do nascimento
e da morte, da situação do Espírito na erraticidade
e, finalmente, do futuro como prêmio de seus esforços por
se melhorar e da sua perseverança no bem, para que se
fizesse luz sobre todas as partes da Gênese espiritual.
Graças a essa luz, o homem sabe doravante donde vem,
para onde vai, por que está na Terra e por que sofre. Sabe
que tem nas mãos o seu futuro e que a duração do seu
cativeiro neste mundo unicamente dele depende. Despida
da alegoria acanhada e mesquinha, a Gênese se lhe apresenta
grande e digna da majestade, da bondade e da justiça do Criador. Considerada desse ponto de vista, ela
confundirá a incredulidade e triunfará.