CAPÍTULO I
CARÁTER DA REVELAÇÃO ESPÍRITA
1. Pode o Espiritismo ser considerado uma revelação? Neste caso, qual o seu caráter? Em que se funda a sua autenticidade? A quem e de que maneira foi ela feita? É a doutrina espírita uma revelação, no sentido teológico da palavra, ou por outra, é, no seu todo, o produto do ensino oculto vindo do Alto? É absoluta ou suscetível de modificações? Trazendo aos homens a verdade integral, a revelação não teria por efeito impedi-los de fazer uso das suas faculdades, pois que lhes pouparia o trabalho da investigação? Qual a autoridade do ensino dos Espíritos, se eles não são infalíveis e superiores à humanidade? Qual a utilidade da moral que pregam, se essa moral não é diversa da do Cristo, já conhecida? Quais as verdades novas que eles nos trazem? Precisará o homem de uma revelação? E não poderá achar em si mesmo e em sua consciência tudo quanto é mister para se conduzir na vida? Tais as questões sobre que importa nos fixemos.
2. Definamos primeiro o sentido da palavra revelação. Revelar, do latim revelare, de raiz velum, véu, significa literalmente sair de sob o véu — e, figuradamente, descobrir, dar a conhecer uma coisa secreta ou desconhecida. Em sua acepção vulgar mais genérica, essa palavra se emprega a respeito de qualquer coisa ignota que é divulgada, de qualquer ideia nova que nos põe ao corrente do que não sabíamos. Deste ponto de vista, todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da natureza são revelações, e pode dizer-se que há para a humanidade uma revelação incessante. A astronomia revelou o mundo astral, que não conhecíamos; a geologia revelou a formação da Terra; a química, a lei das afinidades; a fisiologia, as funções do organismo, etc.; Copérnico, Galileu, Newton, Laplace, Lavoisier foram reveladores.
3. A característica essencial de qualquer revelação tem que ser a verdade. Revelar um segredo é tornar conhecido um fato; se é falso, já não é um fato e, por consequência, não existe revelação. Toda revelação desmentida por fatos deixa de o ser, se for atribuída a Deus. Não podendo Deus mentir, nem se enganar, ela não pode emanar dele: deve ser considerada produto de uma concepção humana.
4. Qual o papel do professor diante dos seus discípulos, senão o de um revelador? O professor lhes ensina o que eles não sabem, o que não teriam tempo, nem possibilidade de descobrir por si mesmos, porque a ciência é obra coletiva dos séculos e de uma multidão de homens que trazem, cada qual, o seu contingente de observações aproveitáveis àqueles que vêm depois. O ensino é, portanto, na realidade, a revelação de certas verdades científicas ou morais, físicas ou metafísicas, feitas por homens que as conhecem a outros que as ignoram e que, se assim não fora, as teriam ignorado sempre.
5. Mas, o professor não ensina senão o que aprendeu: é um
revelador de segunda ordem; o homem de gênio ensina o
que descobriu por si mesmo: é o revelador primitivo; traz a
luz que pouco a pouco se vulgariza. Que seria da humanidade
sem a revelação dos homens de gênio, que aparecem
de tempos a tempos?
Mas, quem são esses homens de gênio? E, por que são
homens de gênio? Donde vieram? Que é feito deles? Notemos
que na sua maioria denotam, ao nascer, faculdades
transcendentes e alguns conhecimentos inatos, que com
pouco trabalho desenvolvem. Pertencem realmente à humanidade,
pois nascem, vivem e morrem como nós. Onde,
porém, adquiriram esses conhecimentos que não puderam
aprender durante a vida? Dir-se-á, com os materialistas,
que o acaso lhes deu a matéria cerebral em maior quantidade
e de melhor qualidade? Neste caso, não teriam mais
mérito que um legume maior e mais saboroso do que outro. Dir-se-á, como certos espiritualistas, que Deus lhes
deu uma alma mais favorecida que a do comum dos homens?
Suposição igualmente ilógica, pois que tacharia Deus
de parcial.
A única solução racional do problema está na
preexistência da alma e na pluralidade das vidas. O homem
de gênio é um Espírito que tem vivido mais tempo;
que, por conseguinte, adquiriu e progrediu mais do que
aqueles que estão menos adiantados. Encarnando, traz o
que sabe e, como sabe muito mais do que os outros e não
precisa aprender, é chamado homem de gênio. Mas seu saber é fruto de um trabalho anterior e não resultado de um privilégio.
Antes de renascer, era ele, pois, Espírito adiantado:
reencarna para fazer que os outros aproveitem do que já
sabe, ou para adquirir mais do que possui.
Os homens progridem incontestavelmente por si mesmos
e pelos esforços da sua inteligência; mas, entregues às
próprias forças, só muito lentamente progrediriam, se não
fossem auxiliados por outros mais adiantados, como o estudante
o é pelos professores. Todos os povos tiveram homens
de gênio, surgidos em diversas épocas, para dar-lhes
impulso e tirá-los da inércia.
6. Desde que se admite a solicitude de Deus para com as
suas criaturas, por que não se há de admitir que Espíritos
capazes, por sua energia e superioridade de conhecimento,
de fazerem que a humanidade avance, encarnem pela vontade
de Deus, com o fim de ativarem o progresso em determinado
sentido? Por que não admitir que eles recebam missões,
como um embaixador as recebe do seu soberano? Tal
o papel dos grandes gênios. Que vêm eles fazer, senão ensinar
aos homens verdades que estes ignoram e ainda ignorariam
durante largos períodos, a fim de lhes dar um ponto
de apoio mediante o qual possam elevar-se mais rapidamente?
Esses gênios, que aparecem através dos séculos
como estrelas brilhantes, deixando longo traço luminoso
sobre a humanidade, são missionários ou, se o quiserem,
messias. O que de novo ensinam aos homens, quer na ordem
física, quer na ordem filosófica, são revelações. Se Deus
suscita reveladores para as verdades científicas, pode, com
mais forte razão, suscitá-los para as verdades morais, que
constituem elementos essenciais do progresso. Tais são os
filósofos cujas ideias atravessam os séculos.
7. No sentido especial da fé religiosa, a revelação se diz
mais particularmente das coisas espirituais que o homem
não pode descobrir por meio da inteligência, nem com o
auxílio dos sentidos e cujo conhecimento lhe dão Deus ou
seus mensageiros, quer por meio da palavra direta, quer
pela inspiração. Neste caso, a revelação é sempre feita a
homens predispostos, designados sob o nome de profetas
ou messias, isto é, enviados ou missionários, incumbidos
de transmiti-la aos homens. Considerada debaixo deste
ponto de vista, a revelação implica a passividade absoluta e
é aceita sem verificação, sem exame, nem discussão.
8. Todas as religiões tiveram seus reveladores e estes, embora
longe estivessem de conhecer toda a verdade, tinham
uma razão de ser providencial, porque eram apropriados ao
tempo e ao meio em que viviam, ao caráter particular dos
povos a quem falavam e aos quais eram relativamente
superiores. Apesar dos erros das suas doutrinas, não deixaram de
agitar os espíritos e, por isso mesmo, de semear os germens
do progresso, que mais tarde haviam de desenvolver-se, ou
se desenvolverão à luz brilhante do Cristianismo. É, pois, injusto se lhes lance anátema em nome da
ortodoxia, porque dia virá em que todas essas crenças tão
diversas na forma, mas que repousam realmente sobre um
mesmo princípio fundamental — Deus e a imortalidade da
alma, se fundirão numa grande e vasta unidade, logo que a
razão triunfe dos preconceitos. Infelizmente, as religiões hão sido sempre instrumentos
de dominação; o papel de profeta há tentado as ambições secundárias e tem-se visto surgir uma multidão de
pretensos reveladores ou messias, que, valendo-se do
prestígio deste nome, exploram a credulidade em proveito
do seu orgulho, da sua ganância, ou da sua indolência,
achando mais cômodo viver à custa dos iludidos. A religião
cristã não pôde evitar esses parasitas. A tal propósito, chamamos particularmente a atenção
para o capítulo XXI de
O Evangelho segundo o Espiritismo, “Haverá falsos Cristos e falsos profetas”.
9. Haverá revelações diretas de Deus aos homens? É uma
questão que não ousaríamos resolver, nem afirmativamente,
nem negativamente, de maneira absoluta. O fato não é
radicalmente impossível, mas nada nos dá dele prova
certa. O que não padece dúvida é que os Espíritos mais
próximos de Deus pela perfeição se imbuem do seu pensamento
e podem transmiti-lo. Quanto aos reveladores encarnados,
segundo a ordem hierárquica a que pertencem e
o grau a que chegaram de saber, esses podem tirar dos
seus próprios conhecimentos as instruções que ministram,
ou recebê-las de Espíritos mais elevados, mesmo dos
mensageiros diretos de Deus, os quais, falando em nome
de Deus, têm sido às vezes tomados pelo próprio Deus. As comunicações deste gênero nada têm de estranho
para quem conhece os fenômenos espíritas e a maneira pela
qual se estabelecem as relações entre os encarnados e os
desencarnados. As instruções podem ser transmitidas por
diversos meios: pela simples inspiração, pela audição da
palavra, pela visibilidade dos Espíritos instrutores, nas visões e aparições, quer em sonho, quer em estado de vigília,
do que há muitos exemplos na Bíblia, no Evangelho e nos
livros sagrados de todos os povos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se que quase todos
os reveladores são médiuns inspirados, audientes ou videntes.
Daí, entretanto, não se deve concluir que todos os
médiuns sejam reveladores, nem, ainda menos, intermediários
diretos da Divindade ou dos seus mensageiros.
10. Só os Espíritos puros recebem a palavra de Deus com a
missão de transmiti-la; mas, sabe-se hoje que nem todos
os Espíritos são perfeitos e que existem muitos que se apresentam
sob falsas aparências, o que levou S. João a dizer:
“Não acrediteis em todos os Espíritos; vede antes se os
Espíritos são de Deus.” (Epíst. 1.ª, 4:4.) Pode, pois, haver revelações sérias e verdadeiras como
as há apócrifas e mentirosas. O caráter essencial da revelação divina é o da eterna verdade. Toda revelação eivada de
erros ou sujeita a modificação não pode emanar de Deus. É
assim que a lei do Decálogo tem todos os caracteres de sua
origem, enquanto que as outras leis moisaicas, fundamentalmente
transitórias, muitas vezes em contradição com a
lei do Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu.
Com o abrandarem-se os costumes do povo, essas leis por
si mesmas caíram em desuso, ao passo que o Decálogo ficou
sempre de pé, como farol da humanidade. O Cristo fez
dele a base do seu edifício, abolindo as outras leis. Se estas
fossem obra de Deus, seriam conservadas intactas. O Cristo
e Moisés foram os dois grandes reveladores que mudaram
a face do mundo e nisso está a prova da sua missão
divina. Uma obra puramente humana careceria de tal poder.
11. Importante revelação se opera na época atual e mostra
a possibilidade de nos comunicarmos com os seres do mundo
espiritual. Não é novo, sem dúvida, esse conhecimento;
mas ficara até aos nossos dias, de certo modo, como letra
morta, isto é, sem proveito para a humanidade. A ignorância
das leis que regem essas relações o abafara sob a superstição;
o homem era incapaz de tirar daí qualquer dedução salutar; estava reservado à nossa época desembaraçá-lo
dos acessórios ridículos, compreender-lhe o alcance e fazer
surgir a luz destinada a clarear o caminho do futuro.
12. O Espiritismo, dando-nos a conhecer o mundo invisível
que nos cerca e no meio do qual vivíamos sem o suspeitarmos,
assim como as leis que o regem, suas relações com o
mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam
e, por conseguinte, o destino do homem depois da
morte, é uma verdadeira revelação, na acepção científica
da palavra.
13. Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação
científica. Participa da primeira, porque foi providencial
o seu aparecimento e não o resultado da iniciativa,
nem de um desígnio premeditado do homem; porque os
pontos fundamentais da doutrina provêm do ensino que
deram os Espíritos encarregados por Deus de esclarecer os
homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não podiam
aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer,
hoje que estão aptos a compreendê-las. Participa da segunda,
por não ser esse ensino privilégio de indivíduo algum,
mas ministrado a todos do mesmo modo; por não
serem os que o transmitem e os que o recebem seres passivos,
dispensados do trabalho da observação e da pesquisa,
por não renunciarem ao raciocínio e ao livre-arbítrio; porque
não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário, recomendado;
enfim, porque a doutrina não foi ditada completa,
nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo
trabalho do homem, da observação dos fatos que os
Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe
dão, instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de
tirar ele próprio as ilações e aplicações. Numa palavra, o
que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem
e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua elaboração
fruto do trabalho do homem.
14. Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente
da mesma forma que as ciências positivas — aplicando
o método experimental. Fatos novos se apresentam, que
não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os observa,
compara, analisa e, remontando dos efeitos às causas,
chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as consequências
e busca as aplicações úteis. Não estabeleceu
nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como
hipóteses a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o
perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos,
quando essa existência ressaltou evidente da observação
dos fatos, procedendo de igual maneira quanto aos outros
princípios. Não foram os fatos que vieram
a posteriori confirmar
a teoria: a teoria é que veio subsequentemente explicar
e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se
que o Espiritismo é uma ciência de observação e não produto
da imaginação. As ciências só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o
método experimental; até então, acreditou-se que esse
método também só era aplicável à matéria, ao passo que o
é também às coisas metafísicas.
15. Citemos um exemplo. Passa-se no mundo dos Espíritos
um fato muito singular, de que seguramente ninguém
houvera suspeitado: o de haver Espíritos que se não consideram
mortos. Pois bem, os Espíritos superiores, que conhecem
perfeitamente esse fato, não vieram dizer antecipadamente:
“Há Espíritos que julgam viver ainda a vida
terrestre, que conservam seus gostos, costumes e instintos.”
Provocaram a manifestação de Espíritos desta categoria
para que os observássemos. Tendo-se visto Espíritos
incertos quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem
deste mundo, julgando-se aplicados às suas ocupações ordinárias,
deduziu-se a regra. A multiplicidade de fatos análogos demonstrou que o caso não era excepcional, que constituía
uma das fases da vida espírita; pode-se então estudar
todas as variedades e as causas de tão singular ilusão, reconhecer
que tal situação é sobretudo própria de Espíritos
pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros
de morte; que é temporária, podendo, todavia, durar semanas,
meses e anos. Foi assim que a teoria nasceu da observação.
O mesmo se deu com relação a todos os outros
princípios da doutrina.
16. Assim como a ciência propriamente dita tem por objeto
o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do
Espiritismo é o conhecimento das leis do princípio espiritual.
Ora, como este último princípio é uma das forças da natureza, a reagir incessantemente sobre o princípio material
e reciprocamente, segue-se que o conhecimento de um
não pode estar completo sem o conhecimento do outro. O
Espiritismo e a ciência se completam reciprocamente; a
ciência, sem o Espiritismo, se acha na impossibilidade de
explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria; ao Espiritismo,
sem a ciência, faltariam apoio e controle. O
estudo das leis da matéria tinha que preceder o da espiritualidade,
porque a matéria é que primeiro fere os sentidos.
Se o Espiritismo tivesse vindo antes das descobertas
científicas, teria abortado, como tudo quanto surge antes
do tempo.
17. Todas as ciências se encadeiam e sucedem numa ordem
racional; nascem umas das outras, à proporção que
acham ponto de apoio nas ideias e conhecimentos anteriores.
A astronomia, uma das primeiras cultivadas, conservou
os erros da infância, até ao momento em que a física
veio revelar a lei das forças dos agentes naturais; a química,
nada podendo sem a física, teve de acompanhá-la de
perto, para depois marcharem ambas de acordo, amparando-se
uma à outra. A anatomia, a fisiologia, a zoologia, a botânica, a mineralogia só se tornaram ciências sérias com
o auxílio das luzes que lhes trouxeram a física e a química.
À geologia, nascida ontem, sem a astronomia, a física,
a química e todas as outras, teriam faltado elementos de
vitalidade; ela só podia vir depois daquelas.
18. A ciência moderna abandonou os quatro elementos
primitivos dos antigos e, de observação em observação,
chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as
transformações da matéria; mas, a matéria, por si só, é
inerte; carecendo de vida, de pensamento, de sentimento,
precisa estar unida ao princípio espiritual. O Espiritismo
não descobriu, nem inventou este princípio; mas, foi o primeiro
a demonstrar-lhe, por provas inconcussas, a existência;
estudou-o, analisou-o e tornou-lhe evidente a ação.
Ao elemento material, juntou ele o elemento espiritual*. Elemento
material e elemento espiritual, esses os dois princípios,
as duas forças vivas da natureza. Pela união indissolúvel
deles, facilmente se explica uma multidão de fatos até
então inexplicáveis.
O Espiritismo, tendo por objeto o estudo de um dos elementos constitutivos do universo, toca forçosamente na maior parte das ciências; só podia, portanto, vir depois da elaboração delas; nasceu pela força mesma das coisas, pela impossibilidade de tudo se explicar com o auxílio apenas das leis da matéria.
* A palavra elemento não é empregada aqui no sentido de corpo simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no de parte constitutiva de um todo. Neste sentido, pode dizer-se que o elemento espiritual tem parte ativa na economia do universo, como se diz que o elemento civil e o elemento militar figuram no cálculo de uma população; que o elemento religioso entra na educação; ou que na Argélia existem o elemento árabe e o elemento europeu.
19. Acusam-no de parentesco com a magia e a feitiçaria;
esquecem, porém, que a astronomia tem por irmã mais velha
a astrologia judiciária, ainda não muito distante de nós;
que a química é filha da alquimia, com a qual nenhum
homem sensato ousaria hoje ocupar-se. Ninguém nega, entretanto, que na astrologia e na alquimia estivesse o
gérmen das verdades de que saíram as ciências atuais.
Apesar das suas ridículas fórmulas, a alquimia encaminhou
a descoberta dos corpos simples e da lei das afinidades.
A astrologia se apoiava na posição e no movimento
dos astros, que ela estudara; mas, na ignorância das verdadeiras
leis que regem o mecanismo do universo, os astros
eram, para o vulgo, seres misteriosos, aos quais a superstição
atribuía uma influência moral e um sentido
revelador. Quando Galileu, Newton e Kepler tornaram conhecidas
essas leis, quando o telescópio rasgou o véu e
mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que algumas
criaturas acharam indiscreto, os planetas apareceram
como simples mundos semelhantes ao nosso e todo o
castelo do maravilhoso desmoronou. O mesmo se dá com o Espiritismo, relativamente à
magia e à feitiçaria, que se apoiavam também na manifestação
dos Espíritos, como a astrologia no movimento dos
astros; mas, ignorantes das leis que regem o mundo espiritual,
misturavam, com essas relações, práticas e crenças
ridículas, com as quais o moderno Espiritismo, fruto da
experiência e da observação, acabou. Certamente, a distância
que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é
maior do que a que existe entre a astronomia e a astrologia,
a química e a alquimia. Confundi-las é provar que de
nenhuma se sabe patavina.
20. O simples fato de poder o homem comunicar-se com os
seres do mundo espiritual traz consequências incalculáveis da mais alta gravidade; é todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais importância, quanto a ele
hão de voltar todos os homens, sem exceção. O conhecimento de tal fato não pode deixar de acarretar,
generalizando-se, profunda modificação nos costumes,
caráter, hábitos, assim como nas crenças, que tão grande
influência exercem sobre as relações sociais. É uma revolução completa a operar-se nas ideias, revolução tanto maior,
tanto mais poderosa, quanto não se circunscreve a um povo,
nem a uma casta, visto que atinge simultaneamente, pelo
coração, todas as classes, todas as nacionalidades, todos
os cultos.
Razão há, pois, para que o Espiritismo seja considerado
a terceira das grandes revelações. Vejamos em que essas
revelações diferem e qual o laço que as liga entre si.
21. Moisés, como profeta, revelou aos homens a existência
de um Deus único, soberano Senhor e Criador de todas
as coisas; promulgou a lei do Sinai e lançou as bases da
verdadeira fé. Como homem, foi o legislador do povo pelo
qual essa primitiva fé, purificando-se, havia de espalhar-se
por sobre a Terra.
22. O Cristo, tomando da antiga lei o que é eterno e divino
e rejeitando o que era transitório, puramente disciplinar e
de concepção humana, acrescentou a revelação da vida
futura, de que Moisés não falara, assim como a das penas e
recompensas que aguardam o homem depois da morte.
23. A parte mais importante da revelação do Cristo, no sentido
de fonte primária, de pedra angular de toda a sua doutrina, é o ponto de vista inteiramente novo sob que considera
ele a Divindade. Esta já não é o Deus terrível, ciumento,
vingativo de Moisés; o Deus cruel e implacável, que rega a
terra com o sangue humano, que ordena o massacre e o
extermínio dos povos, sem excetuar as mulheres, as crianças e os velhos, e que castiga aqueles que poupam as vítimas;
já não é o Deus injusto, que pune um povo inteiro
pela falta do seu chefe, que se vinga do culpado na pessoa
do inocente, que fere os filhos pelas faltas dos pais; mas,
um Deus clemente, soberanamente justo e bom, cheio de
mansidão e misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido
e dá a cada um segundo as suas obras. Já não é o
Deus de um único povo privilegiado, o Deus dos exércitos,
presidindo aos combates para sustentar a sua própria causa
contra o Deus dos outros povos; mas, o Pai comum do
gênero humano, que estende a sua proteção por sobre todos
os seus filhos e os chama todos a si; já não é o Deus
que recompensa e pune só pelos bens da Terra, que faz
consistir a glória e a felicidade na escravidão dos povos
rivais e na multiplicidade da progenitura, mas, sim, um
Deus que diz aos homens: “A vossa verdadeira pátria não é
neste mundo, mas no reino celestial, lá onde os humildes
de coração serão elevados e os orgulhosos serão humilhados.”
Já não é o Deus que faz da vingança uma virtude e
ordena se retribua olho por olho, dente por dente; mas, o
Deus de misericórdia, que diz: “Perdoai as ofensas, se quereis
ser perdoados; fazei o bem em troca do mal; não façais o
que não quereis vos façam.” Já não é o Deus mesquinho e
meticuloso, que impõe, sob as mais rigorosas penas, o modo
como quer ser adorado, que se ofende pela inobservância
de uma fórmula; mas, o Deus grande, que vê o pensamento
e que se não honra com a forma. Enfim, já não é o Deus
que quer ser temido, mas o Deus que quer ser amado.
24. Sendo Deus o eixo de todas as crenças religiosas e o
objetivo de todos os cultos, o caráter de todas as religiões é
conforme à ideia que elas dão de Deus. As religiões que fazem
de Deus um ser vingativo e cruel julgam honrá-lo com
atos de crueldade, com fogueiras e torturas; as que têm um
Deus parcial e cioso são intolerantes e mais ou menos meticulosas
na forma, por crerem-no mais ou menos contaminado
das fraquezas e ninharias humanas.
25. Toda a doutrina do Cristo se funda no caráter que ele
atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente
justo, bom e misericordioso, ele fez do amor de Deus
e da caridade para com o próximo a condição indeclinável
da salvação, dizendo:
Amai a Deus sobre todas as coisas e o
vosso próximo como a vós mesmos; nisto estão toda a lei e os
profetas; não existe outra lei.
Sobre esta crença, assentou o
princípio da igualdade dos homens perante Deus e o da
fraternidade universal. Mas, fora possível amar o Deus de
Moisés? Não; só se podia temê-lo.
A revelação dos verdadeiros atributos da Divindade,
de par com a da imortalidade da alma e da vida futura,
modificava profundamente as relações mútuas dos homens,
impunha-lhes novas obrigações, fazia-os encarar a vida
presente sob outro aspecto e tinha, por isso mesmo, de
reagir contra os costumes e as relações sociais. É esse incontestavelmente,
por suas consequências, o ponto capital
da revelação do Cristo, cuja importância não foi compreendida
suficientemente e, contrista dizê-lo, é também o ponto
de que mais a humanidade se tem afastado, que mais há
desconhecido na interpretação dos seus ensinos.
26. Entretanto, o Cristo acrescenta: “Muitas das coisas que vos
digo ainda não as compreendeis e muitas outras teria a dizer, que
não compreenderíeis; por isso é que vos falo por parábolas; mais
tarde, porém, enviar-vos-ei o Consolador, o Espírito de Verdade,
que restabelecerá todas as coisas e vo-las explicará todas.” (S. João,
14,16; S. Mateus, 17.)
Se ele não disse tudo quanto poderia dizer, é que
julgou conveniente deixar certas verdades na sombra, até
que os homens chegassem ao estado de compreendê-las.
Como ele próprio o confessou, seu ensino era incompleto,
pois anunciava a vinda daquele que o completaria; previra,
pois, que suas palavras não seriam bem interpretadas, e que
os homens se desviariam do seu ensino; em suma, que desfariam
o que ele fez, uma vez que todas as coisas hão de ser
restabelecidas: ora, só se restabelece aquilo que foi desfeito.
27. Por que chama ele Consolador ao novo messias? Este
nome, significativo e sem ambiguidade, encerra toda uma
revelação. Assim, ele previa que os homens teriam necessidade
de consolações, o que implica a insuficiência daquelas
que eles achariam na crença que iam fundar. Talvez nunca
o Cristo fosse tão claro, tão explícito, como nestas últimas
palavras, às quais poucas pessoas deram atenção bastante,
provavelmente porque evitaram esclarecê-las e aprofundar-lhes
o sentido profético.
28. Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino de maneira
completa, é que faltavam aos homens conhecimentos
que eles só podiam adquirir com o tempo e sem os quais
não o compreenderiam; há muitas coisas que teriam parecido
absurdas no estado dos conhecimentos de então. Completar
o seu ensino deve entender-se no sentido de explicar
e desenvolver, não no de ajuntar-lhe verdades novas, porque
tudo nele se encontra em estado de gérmen, faltando-lhe só a chave para se apreender o sentido das palavras.
29. Mas, quem toma a liberdade de interpretar as Escrituras
Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui as necessárias
luzes, senão os teólogos? Quem o ousa? Primeiro,
a ciência, que a ninguém pede permissão para dar a
conhecer as leis da natureza e que salta por sobre os erros e os
preconceitos. –– Quem tem esse direito? Neste século de
emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o
direito de exame pertence a todos, e as Escrituras não são
mais a arca santa na qual ninguém se atreveria a tocar
com a ponta do dedo, sem correr o risco de ser fulminado.
Quanto às luzes especiais, necessárias, sem contestar as
dos teólogos, por mais esclarecidos que fossem os da Idade
Média, e, em particular, os Pais da Igreja, eles, contudo,
não o eram bastante para não condenarem como heresia o
movimento da Terra e a crença nos antípodas. Mesmo sem
ir tão longe, os teólogos dos nossos dias não lançaram
anátema à teoria dos períodos de formação da Terra?
Os homens só puderam explicar as Escrituras com o
auxílio do que sabiam, das noções falsas ou incompletas
que tinham sobre as leis da natureza, mais tarde reveladas
pela ciência. Eis por que os próprios teólogos, de muito
boa-fé, se enganaram sobre o sentido de certas palavras e
fatos do Evangelho. Querendo a todo custo encontrar nele
a confirmação de uma ideia preconcebida, giraram sempre
no mesmo círculo, sem abandonar o seu ponto de vista, de
modo que só viam o que queriam ver. Por muito instruídos
que fossem, eles não podiam compreender causas dependentes
de leis que lhes eram desconhecidas.
Mas, quem julgará das interpretações diversas e muitas
vezes contraditórias, fora do campo da teologia? O futuro,
a lógica e o bom senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos,
à medida que novos fatos e novas leis se forem
revelando, saberão separar da realidade os sistemas utópicos.
Ora, as ciências tornam conhecidas algumas leis; o
Espiritismo revela outras; todas são indispensáveis à inteligência
dos Textos Sagrados de todas as religiões, desde
Confúcio e Buda até o Cristianismo. Quanto à teologia, essa
não poderá judiciosamente alegar contradições da ciência,
visto como também ela nem sempre está de acordo consigo
mesma.
30. O Espiritismo, partindo das próprias palavras do Cristo,
como este partiu das de Moisés, é consequência direta
da sua doutrina. À ideia vaga da vida futura acrescenta a
revelação da existência do mundo invisível que nos rodeia e
povoa o espaço, e com isso precisa a crença, dá-lhe um
corpo, uma consistência, uma realidade à ideia. Define os
laços que unem a alma ao corpo e levanta o véu que ocultava
aos homens os mistérios do nascimento e da morte. Pelo
Espiritismo, o homem sabe donde vem, para onde vai, por
que está na Terra, por que sofre temporariamente e vê
por toda parte a justiça de Deus.
Sabe que a alma progride
incessantemente, através de uma série de existências sucessivas,
até atingir o grau de perfeição que a aproxima de
Deus. Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de
origem, são criadas iguais, com idêntica aptidão para progredir,
em virtude do seu livre-arbítrio; que todas são da
mesma essência e que não há entre elas diferença, senão
quanto ao progresso realizado; que todas têm o mesmo destino
e alcançarão a mesma meta, mais ou menos rapidamente,
pelo trabalho e boa vontade.
Sabe que não há criaturas deserdadas, nem mais
favorecidas umas do que outras; que Deus a nenhuma criou
privilegiada e dispensada do trabalho imposto às outras
para progredirem; que não há seres perpetuamente votados
ao mal e ao sofrimento; que os que se designam pelo
nome de demônios são Espíritos ainda atrasados e imperfeitos,
que praticam o mal no espaço, como o praticavam
na Terra, mas que se adiantarão e aperfeiçoarão; que os
anjos ou Espíritos puros não são seres à parte na criação,
mas Espíritos que chegaram à meta, depois de terem percorrido
a estrada do progresso; que, por essa forma, não há
criações múltiplas, nem diferentes categorias entre os seres
inteligentes, mas que toda a criação deriva da grande
lei de unidade que rege o universo e que todos os seres
gravitam para um fim comum, que é a perfeição, sem que
uns sejam favorecidos à custa de outros, visto serem todos
filhos das suas próprias obras.
31. Pelas relações que hoje pode estabelecer com aqueles
que deixaram a Terra, possui o homem não só a prova material
da existência e da individualidade da alma, como também
compreende a solidariedade que liga os vivos aos mortos
deste mundo e os deste mundo aos dos outros planetas.
Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos, acompanha-os em suas migrações, aprecia-lhes as alegrias e as
penas; sabe a razão por que são felizes ou infelizes e a sorte
que lhes está reservada, conforme o bem ou o mal que fizerem.
Essas relações iniciam o homem na vida futura, que
ele pode observar em todas as suas fases, em todas as suas
peripécias; o futuro já não é uma vaga esperança: é um fato
positivo, uma certeza matemática. Desde então, a morte
nada mais tem de aterrador, por lhe ser a libertação, a
porta da verdadeira vida.
32. Pelo estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe
que a felicidade e a desdita, na vida espiritual, são inerentes
ao grau de perfeição e de imperfeição; que cada qual
sofre as consequências diretas e naturais de suas faltas,
ou, por outra, que é punido no que pecou; que essas consequências
duram tanto quanto a causa que as produziu;
que, por conseguinte, o culpado sofreria eternamente, se
persistisse no mal, mas que o sofrimento cessa com o arrependimento
e a reparação; ora, como depende de cada um
o seu aperfeiçoamento, todos podem, em virtude do
livre-arbítrio, prolongar ou abreviar seus sofrimentos, como
o doente sofre, pelos seus excessos, enquanto não lhes põe
termo.
33. Se a razão repele, como incompatível com a bondade de
Deus, a ideia das penas irremissíveis, perpétuas e absolutas,
muitas vezes infligidas por uma única falta; a dos suplícios
do inferno, que não podem ser minorados nem sequer
pelo arrependimento mais ardente e mais sincero, a
mesma razão se inclina diante dessa justiça distributiva e
imparcial, que leva tudo em conta, que nunca fecha a porta
ao arrependimento e estende constantemente a mão ao
náufrago, em vez de o empurrar para o abismo.
34. A pluralidade das existências, cujo princípio o Cristo
estabeleceu no Evangelho, sem todavia defini-lo como a
muitos outros, é uma das mais importantes leis reveladas
pelo Espiritismo, pois que lhe demonstra a realidade e a
necessidade para o progresso. Com esta lei, o homem explica
todas as aparentes anomalias da vida humana; as
diferenças de posição social; as mortes prematuras que,
sem a reencarnação, tornariam inúteis à alma as existências
breves; a desigualdade de aptidões intelectuais e morais,
pela ancianidade do Espírito que mais ou menos aprendeu
e progrediu, e traz, nascendo, o que adquiriu em suas
existências anteriores (n.º 5).
35. Com a doutrina da criação da alma no instante do nascimento,
vem-se a cair no sistema das criações privilegiadas;
os homens são estranhos uns aos outros; nada os liga; os laços de família são puramente carnais; não são de nenhum
modo solidários com um passado em que não existiam;
com a doutrina do nada após a morte, todas as relações
cessam com a vida; os seres humanos não são solidários
no futuro. Pela reencarnação, são solidários no passado e
no futuro e, como as suas relações se perpetuam, tanto no
mundo espiritual como no corporal, a fraternidade tem por
base as próprias leis da natureza; o bem tem um objetivo e
o mal consequências inevitáveis.
36. Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de
raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, grande senhor ou proletário, chefe ou
subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos
os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e
da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais
forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da
reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei
da natureza o princípio da fraternidade universal, também
funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e,
por conseguinte, o da liberdade.
37. Tirai ao homem o espírito livre e independente, sobrevivente
à matéria, e fareis dele uma simples máquina organizada,
sem finalidade, nem responsabilidade, sem outro
freio além da lei civil, e própria a ser explorada como um
animal inteligente. Nada esperando depois da morte, nada
obsta a que aumente os gozos do presente; se sofre, só tem
a perspectiva do desespero e o nada como refúgio. Com a
certeza do futuro, com a de encontrar de novo aqueles
a quem amou e com o temor de tornar a ver aqueles a quem
ofendeu, todas as suas ideias mudam. O Espiritismo, ainda
que só fizesse forrar o homem à dúvida relativamente à
vida futura, teria feito mais pelo seu aperfeiçoamento moral
do que todas as leis disciplinares, que o detêm algumas
vezes, mas que o não transformam.
38. Sem a preexistência da alma, a doutrina do pecado
original não seria somente inconciliável com a justiça de
Deus, que tornaria todos os homens responsáveis pela falta
de um só; seria também um contrassenso, e tanto menos
justificável quanto, segundo essa doutrina, a alma não existia
na época a que se pretende fazer que a sua responsabilidade remonte. Com a preexistência, o homem traz, ao
renascer, o gérmen das suas imperfeições, dos defeitos de
que se não corrigiu e que se traduzem pelos instintos naturais
e pelos pendores para tal ou tal vício. É esse o seu
verdadeiro pecado original, cujas consequências naturalmente
sofre, mas com a diferença capital de que sofre a
pena das suas próprias faltas, e não das de outrem; e com
a outra diferença, ao mesmo tempo consoladora, animadora
e soberanamente equitativa, de que cada existência lhe
oferece os meios de se redimir pela reparação e de progredir,
quer despojando-se de alguma imperfeição, quer adquirindo
novos conhecimentos e, assim, até que, suficientemente
purificado, não necessite mais da vida corporal, e possa viver exclusivamente a vida espiritual, eterna e
bem-aventurada.
Pela mesma razão, aquele que progrediu moralmente
traz, ao renascer, qualidades naturais, como o que progrediu
intelectualmente traz ideias inatas; identificado com o
bem, pratica-o sem esforço, sem cálculo e, por assim dizer,
sem pensar. Aquele que é obrigado a combater as suas más
tendências vive ainda em luta; o primeiro já venceu, o segundo
procura vencer. Existe, pois, a virtude original, como
existe o saber original, e o pecado ou, antes, o vício original.
39. O Espiritismo experimental estudou as propriedades
dos fluidos espirituais e a ação deles sobre a matéria. Demonstrou
a existência do perispírito, suspeitado desde a
antiguidade e designado por São Paulo sob o nome de corpo
espiritual, isto é, corpo fluídico da alma, depois da destruição do corpo tangível. Sabe-se hoje que esse invólucro é
inseparável da alma; forma um dos elementos constitutivos do ser humano; é o veículo da transmissão do pensamento;
e, durante a vida do corpo, serve de laço entre o
Espírito e a matéria. O perispírito representa importantíssimo
papel no organismo e numa multidão de afecções, que
se ligam à fisiologia, assim como à psicologia.
40. O estudo das propriedades do perispírito, dos fluidos
espirituais e dos atributos fisiológicos da alma abre novos
horizontes à ciência e dá a chave de uma multidão de fenômenos incompreendidos até então, por falta de conhecimento
da lei que os rege — fenômenos negados pelo materialismo,
por se prenderem à espiritualidade, e qualificados
como milagres ou sortilégios por outras crenças. Tais são,
entre muitos, os fenômenos da vista dupla, da visão a distância,
do sonambulismo natural e artificial, dos efeitos
psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos
pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da
transmissão do pensamento, da fascinação, das curas instantâneas,
das obsessões e possessões, etc. Demonstrando
que esses fenômenos repousam em leis naturais, como os
fenômenos elétricos, e em que condições normais se podem
reproduzir, o Espiritismo derroca o império do maravilhoso
e do sobrenatural e, conseguintemente, a fonte da maior
parte das superstições. Se faz se creia na possibilidade de
certas coisas consideradas por alguns como quiméricas,
também impede que se creia em muitas outras, das quais
ele demonstra a impossibilidade e a irracionalidade.
41. O Espiritismo, longe de negar ou destruir o Evangelho,
vem, ao contrário, confirmar, explicar e desenvolver, pelas
novas leis da natureza, que revela, tudo quanto o Cristo disse e fez; elucida os pontos obscuros do ensino cristão,
de tal sorte que aqueles para quem eram ininteligíveis certas
partes do Evangelho, ou pareciam inadmissíveis, as
compreendem e admitem, sem dificuldade, com o auxílio
desta doutrina; veem melhor o seu alcance e podem distinguir
entre a realidade e a alegoria; o Cristo lhes parece maior:
já não é simplesmente um filósofo — é um Messias divino.
42. Demais, se se considerar o poder moralizador do Espiritismo,
pela finalidade que assina a todas as ações da vida,
por tornar quase tangíveis as consequências do bem e do
mal, pela força moral, a coragem e as consolações que dá
nas aflições, mediante inalterável confiança no futuro, pela
ideia de ter cada um perto de si os seres a quem amou, a
certeza de os rever, a possibilidade de confabular com eles;
enfim, pela certeza de que tudo quanto se fez, quanto se
adquiriu em inteligência, sabedoria, moralidade, até à última
hora da vida, não fica perdido, que tudo aproveita ao
adiantamento do Espírito, reconhece-se que o Espiritismo
realiza todas as promessas do Cristo a respeito do
Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade
que preside ao grande movimento da regeneração, a promessa
da sua vinda se acha por essa forma cumprida,
porque, de fato, é ele o verdadeiro Consolador.*
* Muitos pais deploram a morte prematura dos filhos, para cuja educação
fizeram grandes sacrifícios, e dizem consigo mesmos que tudo
foi em pura perda. À luz do Espiritismo, porém, não lamentam esses
sacrifícios e estariam prontos a fazê-los, mesmo tendo a certeza
de que veriam morrer seus filhos, porque sabem que se estes não a
aproveitam na vida presente, essa educação servirá, primeiro que tudo, para o seu adiantamento espiritual; e, mais, que serão aquisições
novas para outra existência e que, quando voltarem a este
mundo, terão um patrimônio intelectual que os tornará mais aptos
a adquirirem novos conhecimentos.
Tais essas crianças que trazem, ao nascer, ideias inatas — que
sabem, por assim dizer, sem precisarem aprender.
Se os pais não têm a satisfação imediata de ver os filhos aproveitarem
da educação que lhes deram, gozá-la-ão certamente mais
tarde, quer como Espíritos, quer como homens. Talvez sejam eles
de novo os pais desses mesmos filhos, que se apontam como afortunadamente
dotados pela natureza e que devem as suas aptidões a
uma educação precedente; assim também, se os filhos se desviam
para o mal, pela negligência dos pais, estes podem vir a sofrer mais
tarde desgostos e pesares que aqueles suscitarão em nova existência.
(
O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, n.º 21, “Mortes prematuras”.)
43. Se a estes resultados adicionarmos a rapidez prodigiosa
da propagação do Espiritismo, apesar de tudo quanto
fazem por abatê-lo, não se poderá negar que a sua vinda
seja providencial, visto como ele triunfa de todas as forças
e de toda a má vontade dos homens. A facilidade com que é
aceito por grande número de pessoas, sem constrangimento,
apenas pelo poder da ideia, prova que ele corresponde a
uma necessidade, qual a de crer o homem em alguma coisa
para encher o vácuo aberto pela incredulidade e que,
portanto, veio no momento preciso.
44. São em grande número os aflitos; não é, pois, de admirar
que tanta gente acolha uma doutrina que consola, de
preferência às que desesperam, porque aos deserdados, mais
do que aos felizes do mundo, é que o Espiritismo se dirige.
O doente vê chegar o médico com maior satisfação do que
aquele que está bem de saúde; ora, os aflitos são os
doentes e o Consolador é o médico.
Vós que combateis o Espiritismo, se quereis que o abandonemos
para vos seguir, dai-nos mais e melhor do que ele;
curai com maior segurança as feridas da alma. Dai
mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, maiores certezas; fazei do futuro um
quadro mais racional, mais sedutor; não julgueis, porém,
vencê-lo com a perspectiva do nada, com a alternativa das
chamas do inferno, ou com a inútil contemplação perpétua.
45. A primeira revelação teve a sua personificação em Moisés,
a segunda no Cristo; a terceira não na tem em indivíduo
algum. As duas primeiras foram individuais; a terceira é coletiva; e aí está um caráter essencial de grande importância.
Ela é coletiva no sentido de não ser feita ou dada como
privilégio a pessoa alguma; ninguém, por consequência, pode
inculcar-se como seu profeta exclusivo; foi espalhada
simultaneamente, por sobre a Terra, a milhões de pessoas,
de todas as idades e condições, desde a mais baixa até a
mais alta da escala, conforme esta predição registrada pelo
autor dos Atos dos Apóstolos: “Nos últimos tempos, disse o
Senhor, derramarei o meu espírito sobre toda a carne; os
vossos filhos e filhas profetizarão, os mancebos terão
visões, e os velhos, sonhos.” (Atos, 2:17–18.) Ela não
proveio de nenhum culto especial, a fim de servir um dia, a
todos, de ponto de ligação.*
* O nosso papel pessoal, no grande movimento de ideias que se prepara
pelo Espiritismo, e que começa a operar-se, é o de um observador
atento, que estuda os fatos para lhes descobrir a causa e tirar-lhes as consequências. Confrontamos todos os que nos têm sido
possível reunir, comparamos e comentamos as instruções dadas
pelos Espíritos em todos os pontos do globo e depois coordenamos
metodicamente o conjunto; em suma, estudamos e demos ao público o fruto das nossas indagações, sem atribuirmos aos nossos
trabalhos valor maior do que o de uma obra filosófica deduzida da
observação e da experiência, sem nunca nos considerarmos chefe
da doutrina, nem procurarmos impor as nossas ideias a quem quer
que seja. Publicando-as, usamos de um direito comum, e aqueles
que as aceitaram o fizeram livremente. Se essas ideias acharam
numerosas simpatias, é porque tiveram a vantagem de corresponder
às aspirações de avultado número de criaturas, mas disso não
colhemos vaidade alguma, dado que a sua origem não nos pertence.
O nosso maior mérito é a perseverança e a dedicação à causa
que abraçamos. Em tudo isso, fizemos o que outro qualquer poderia
ter feito como nós, razão pela qual nunca tivemos a pretensão
de nos julgarmos profeta ou messias, nem, ainda menos, de nos
apresentarmos como tal.
46. As duas primeiras revelações sendo fruto do ensino
pessoal, ficaram forçosamente localizadas, isto é, apareceram
num só ponto, em torno do qual a ideia se propagou
pouco a pouco; mas, foram precisos muitos séculos para
que atingissem as extremidades do mundo, sem mesmo o
invadirem inteiramente. A terceira tem isto de particular:
não estando personificada em um só indivíduo, surgiu simultaneamente
em milhares de pontos diferentes, que se
tornaram centros ou focos de irradiação. Multiplicando-se
esses centros, seus raios se reúnem pouco a pouco, como
os círculos formados por uma multidão de pedras lançadas
na água, de tal sorte que, em dado tempo, acabarão por
cobrir toda a superfície do globo. Essa uma das causas da rápida propagação da
doutrina. Se ela tivesse surgido num só ponto, se fosse obra exclusiva de um homem, houvera formado seitas em
torno dela; e talvez decorresse meio século sem que ela
atingisse os limites do país onde começara, ao passo que,
após dez anos, já estende raízes de um polo a outro.
47. Esta circunstância, inaudita na história das doutrinas,
lhe dá força excepcional e irresistível poder de ação; de fato,
se a perseguirem num ponto, em determinado país, será
materialmente impossível que a persigam em toda parte e
em todos os países. Em contraposição a um lugar onde lhe
embaracem a marcha, haverá mil outros em que florescerá.
Ainda mais: se a ferirem num indivíduo, não poderão feri-la
nos Espíritos, que são a fonte donde ela promana. Ora,
como os Espíritos estão em toda parte e existirão sempre,
se, por um acaso impossível, conseguissem sufocá-la em
todo o globo, ela reapareceria pouco tempo depois, porque
repousa sobre um fato que está na natureza e não se podem
suprimir as leis da natureza. Eis aí o de que se devem
persuadir aqueles que sonham com o aniquilamento do
Espiritismo. (
Revista espírita, n.º de fevereiro de 1865: “Da perpetuidade
do Espiritismo”.)
48. Entretanto, disseminados os centros, poderiam ainda
permanecer por muito tempo isolados uns dos outros, confinados
como estão alguns em países longínquos. Faltava
entre eles uma ligação, que os pusesse em comunhão de
ideias com seus irmãos em crença, informando-os do que
se fazia algures. Esse traço de união, que na antiguidade
teria faltado ao Espiritismo, hoje existe nas publicações que
vão a toda parte, condensando, sob uma forma única, concisa e metódica, o ensino dado universalmente sob formas
múltiplas e nas diversas línguas.
49. As duas primeiras revelações só podiam resultar de um
ensino direto; como os homens não estivessem ainda bastante
adiantados a fim de concorrerem para a sua elaboração, elas tinham que ser impostas pela fé, sob a autoridade
da palavra do Mestre.
Contudo, notam-se entre as duas bem sensível diferença,
devida ao progresso dos costumes e das ideias, se
bem que feitas ao mesmo povo e no mesmo meio, mas com
dezoito séculos de intervalo. A doutrina de Moisés é absoluta,
despótica; não admite discussão e se impõe ao povo
pela força. A de Jesus é essencialmente conselheira; é livremente
aceita e só se impõe pela persuasão; foi controvertida
desde o tempo do seu fundador, que não desdenhava de
discutir com os seus adversários.
50. A terceira revelação, vinda numa época de emancipação e madureza intelectual, em que a inteligência, já desenvolvida,
não se resigna a representar papel passivo; em
que o homem nada aceita às cegas, mas quer ver aonde o
conduzem, quer saber o porquê e o como de cada coisa —
tinha ela que ser ao mesmo tempo o produto de um ensino
e o fruto do trabalho, da pesquisa e do livre exame. Os Espíritos
não ensinam senão justamente o que é mister para
guiá-lo no caminho da verdade, mas abstêm-se de revelar o
que o homem pode descobrir por si mesmo, deixando-lhe o cuidado de discutir, verificar e submeter tudo ao cadinho
da razão, deixando mesmo, muitas vezes, que adquira experiência
à sua custa. Fornecem-lhe o princípio, os materiais;
cabe-lhe a ele aproveitá-los e pô-los em obra (n.º 15).
51. Tendo sido os elementos da revelação espírita ministrados
simultaneamente em muitos pontos, a homens de
todas as condições sociais e de diversos graus de instrução, é claro que as observações não podiam ser feitas em
toda parte com o mesmo resultado; que as consequências a
tirar, a dedução das leis que regem esta ordem de fenômenos,
em suma, a conclusão sobre que haviam de firmar-se
as ideias não podiam sair senão do conjunto e da correlação dos fatos. Ora, cada centro isolado, circunscrito dentro
de um círculo restrito, não vendo as mais das vezes senão
uma ordem particular de fatos, não raro contraditórios na
aparência, geralmente provindo de uma mesma categoria
de Espíritos e, ao demais, embaraçados por influências locais
e pelo espírito de partido, se achava na impossibilidade
material de abranger o conjunto e, por isso mesmo, incapaz
de conjugar as observações isoladas a um princípio
comum. Apreciando cada qual os fatos sob o ponto de vista
dos seus conhecimentos e crenças anteriores, ou da opinião
especial dos Espíritos que se manifestassem, bem cedo
teriam surgido tantas teorias e sistemas, quantos fossem
os centros, todos incompletos por falta de elementos de
comparação e exame. Numa palavra, cada qual se teria
imobilizado na sua revelação parcial, julgando possuir toda
a verdade, ignorando que em cem outros lugares se
obtinha mais ou melhor.
52. Além disso, convém notar que em parte alguma o ensino
espírita foi dado integralmente; ele diz respeito a tão
grande número de observações, a assuntos tão diferentes,
exigindo conhecimentos e aptidões mediúnicas especiais,
que impossível era acharem-se reunidas num mesmo ponto
todas as condições necessárias. Tendo o ensino que ser
coletivo e não individual, os Espíritos dividiram o trabalho,
disseminando os assuntos de estudo e observação como,
em algumas fábricas, a confecção de cada parte de um
mesmo objeto é repartida por diversos operários.
A revelação fez-se assim parcialmente em diversos lugares
e por uma multidão de intermediários e é dessa maneira
que prossegue ainda, pois que nem tudo foi revelado.
Cada centro encontra nos outros centros o complemento
do que obtém, e foi o conjunto, a coordenação de todos os
ensinos parciais que constituíram a doutrina espírita. Era, pois, necessário grupar os fatos espalhados, para
se lhes apreender a correlação, reunir os documentos diversos,
as instruções dadas pelos Espíritos sobre todos os pontos
e sobre todos os assuntos, para as comparar, analisar,
estudar-lhes as analogias e as diferenças. Vindo as comunicações
de Espíritos de todas as ordens, mais ou menos esclarecidos,
era preciso apreciar o grau de confiança que a
razão permitia conceder-lhes, distinguir as ideias sistemáticas
individuais ou isoladas das que tinham a sanção do ensino
geral dos Espíritos, as utopias das ideias práticas, afastar
as que eram notoriamente desmentidas pelos dados da
ciência positiva e da lógica, utilizar igualmente os erros, as
informações fornecidas pelos Espíritos, mesmo os da mais
baixa categoria, para conhecimento do estado do mundo
invisível e formar com isso um todo homogêneo.
Era preciso, numa palavra, um centro de elaboração,
independente de qualquer ideia preconcebida, de todo prejuízo
de seita, resolvido a aceitar a verdade tornada evidente,
embora contrária às opiniões pessoais. Este centro se
formou por si mesmo, pela força das coisas e sem desígnio
premeditado.*
* O Livro dos Espíritos, a primeira obra que levou o Espiritismo a ser
considerado de um ponto de vista filosófico, pela dedução das consequências
morais dos fatos; que considerou todas as partes da doutrina,
tocando nas questões mais importantes que ela suscita, foi,
desde o seu aparecimento, o ponto para onde convergiram espontaneamente
os trabalhos individuais. É notório que da publicação
desse livro data a era do Espiritismo filosófico, até então conservado
no domínio das experiências curiosas. Se esse livro conquistou
as simpatias da maioria é que exprimia os sentimentos dela,
correspondia às suas aspirações e encerrava também a confirmação e a explicação racional do que cada um obtinha em particular.
Se estivesse em desacordo com o ensino geral dos Espíritos, teria
caído no descrédito e no esquecimento. Ora, qual foi aquele ponto
de convergência? Decerto não foi o homem, que nada vale por si
mesmo, que morre e desaparece; mas, a ideia, que não fenece quando
emana de uma fonte superior ao homem.
Essa espontânea concentração de forças dispersas deu lugar a
uma amplíssima correspondência, monumento único no mundo,
quadro vivo da verdadeira história do Espiritismo moderno, onde
se refletem ao mesmo tempo os trabalhos parciais, os sentimentos
múltiplos que a doutrina fez nascer, os resultados morais, as dedicações,
os desfalecimentos; arquivos preciosos para a posteridade,
que poderá julgar os homens e as coisas através de documentos
autênticos. Em presença desses testemunhos inexpugnáveis, a que
se reduzirão, com o tempo, todas as falsas alegações da inveja e do ciúme?. . .
53. De todas essas coisas, originou-se dupla corrente de
ideias: umas, dirigindo-se das extremidades para o centro;
as outras encaminhando-se do centro para a circunferência.
Desse modo, a doutrina caminhou rapidamente para a unidade,
malgrado à diversidade das fontes donde promanou;
os sistemas divergentes ruíram pouco a pouco, devido ao
isolamento em que ficaram, diante do ascendente da opinião
da maioria, em a qual não encontraram repercussão
simpática. Desde então, uma comunhão de ideias se estabeleceu
entre os diversos centros parciais. Falando a mesma
linguagem espiritual, eles se entendem e estimam, de
um extremo a outro do mundo. Sentiram-se assim mais fortes os espíritas, lutaram
com mais coragem, caminharam com passo mais firme,
desde que não mais se viram insulados, desde que perceberam
um ponto de apoio, um laço a prendê-los à grande
família. Não mais lhes pareceram singulares, anormais, nem
contraditórios os fenômenos que presenciavam, desde que
puderam conjugá-los a leis gerais e descobrir um fim
grandioso e humanitário em todo o conjunto.* Mas, como se há de saber se um princípio é ensinado por toda parte, ou se apenas exprime uma opinião pessoal? Não estando os grupos independentes em condições de saber o que se diz alhures, necessário se fazia que um centro reunisse todas as instruções, para proceder a uma espécie de apuro das vozes e transmitir a todos a opinião da maioria.**
* Significativo testemunho, tão notável quão tocante, dessa comunhão
de ideias que se estabeleceu entre os espíritas, pela conformidade
de suas crenças, são os pedidos de preces que nos chegam
dos mais distantes países, desde o Peru até as extremidades da
Ásia, feitos por pessoas de religiões e nacionalidades diversas e as
quais nunca vimos. Não é isso um prelúdio da grande unificação
que se prepara? Não é a prova de que por toda parte o Espiritismo
lança raízes fortes? Digno de nota é que, de todos os grupos que se têm formado com
a intenção premeditada de abrir cisão, proclamando princípios
divergentes, do mesmo modo que de todos quantos, apoiando-se em razões de amor-próprio ou outras quaisquer, para não parecer
que se submetem à lei comum, se consideraram fortes o bastante
para caminhar sozinhos, possuidores de luzes suficientes para prescindirem
de conselhos, nenhum chegou a construir uma ideia que
fosse preponderante e viável. Todos se extinguiram ou vegetaram
na sombra. Nem de outro modo poderia ser, dado que, para se
exalçarem, em vez de se esforçarem por proporcionar maior soma
de satisfações, rejeitavam princípios da doutrina, precisamente o
que de mais atraente há nela, o que de mais consolador ela contém
e de mais racional. Se houvessem compreendido a força dos elementos
morais que lhe constituíram a unidade, não se teriam embalado
com ilusões quiméricas. Ao contrário, tomando como se fosse
o universo o pequeno círculo que constituíam, não viram nos
adeptos mais do que uma camarilha facilmente derrubável por outra
camarilha. Era equivocar-se de modo singular, no tocante aos
caracteres essenciais da doutrina e semelhante erro só decepções
podia acarretar. Em lugar de romperem a unidade, quebraram o
único laço que lhes podia dar força e vida. (Veja-se:
Revista espírita,
abril de 1866: “O Espiritismo sem os Espíritos: o
Espiritismo independente”.)
** Esse o objeto das nossas publicações, que se podem considerar o
resultado de um trabalho de apuro. Nelas, todas as opiniões são
discutidas, mas as questões somente são apresentadas em forma
de princípios, depois de haverem recebido a consagração de todas
as comprovações, as quais, só elas, lhes podem imprimir força de
lei e permitir afirmações. Eis por que não preconizamos levianamente
nenhuma teoria e é nisso exatamente que a doutrina, decorrendo
do ensino geral, não representa produto de um sistema
preconcebido. É também donde tira a sua força e o que lhe garante
o futuro.
54. Nenhuma ciência existe que haja saído prontinha do
cérebro de um homem. Todas, sem exceção de nenhuma,
são fruto de observações sucessivas, apoiadas em observações precedentes, como em um ponto conhecido, para chegar
ao desconhecido. Foi assim que os Espíritos procederam,
com relação ao Espiritismo. Daí o ser gradativo o ensino
que ministram. Eles não enfrentam as questões, senão à
medida que os princípios sobre que hajam de apoiar-se estejam
suficientemente elaborados e amadurecida bastante
a opinião para os assimilar. É mesmo de notar-se que, de
todas as vezes que os centros particulares têm querido tratar
de questões prematuras, não obtiveram mais do que
respostas contraditórias, nada concludentes. Quando, ao
contrário, chega o momento oportuno, o ensino se generaliza
e se unifica na quase universalidade dos centros.
Há, todavia, capital diferença entre a marcha do Espiritismo
e a das ciências; a de que estas não atingiram o
ponto que alcançaram, senão após longos intervalos, ao
passo que alguns anos bastaram ao Espiritismo, quando
não a galgar o ponto culminante, pelo menos a recolher
uma soma de observações bem grande para formar uma
doutrina. Decorre esse fato de ser inumerável a multidão
de Espíritos que, por vontade de Deus, se manifestaram
simultaneamente, trazendo cada um o contingente de seus
conhecimentos. Resultou daí que todas as partes da doutrina,
em vez de serem elaboradas sucessivamente durante
longos anos, o foram quase ao mesmo tempo, em alguns
anos apenas, e que bastou reuni-las para que estruturassem
um todo.
Quis Deus fosse assim, primeiro para que o edifício
mais rapidamente chegasse ao ápice; em seguida para que
se pudesse, por meio da comparação, conseguir uma verificação,
a bem dizer imediata e permanente, da universalidade
do ensino, nenhuma de suas partes tendo valor, nem
autoridade, a não ser pela sua conexão com o conjunto,
devendo todos harmonizar-se, colocado cada um no devido
lugar e vindo cada um na hora oportuna.
Não confiando a um único Espírito o encargo de promulgar
a doutrina, quis Deus, também, que, assim o mais
pequenino, como o maior, tanto entre os Espíritos, quanto
entre os homens, trouxesse sua pedra para o edifício, a fim
de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperativa,
que faltou a todas as doutrinas decorrentes de um
tronco único. Por outro lado, dispondo todo Espírito, como todo homem,
apenas de limitada soma de conhecimentos, não estavam
eles aptos, individualmente, a tratar
ex professo das
inúmeras questões que o Espiritismo envolve. Essa ainda
uma razão por que, em cumprimento dos desígnios do
Criador, não podia a doutrina ser obra nem de um só Espírito, nem de um só médium. Tinha que emergir da coletividade
dos trabalhos, comprovados uns pelos outros.*
* Veja-se, em O Evangelho segundo o Espiritismo, “Introdução”, item
II, e na
Revista espírita, abril de 1864, “Autoridade da doutrina espírita; controle universal do ensino dos Espíritos”.
55. Um último caráter da revelação espírita, a ressaltar das
condições mesmas em que ela se produz, é que, apoiando-se
em fatos, tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente
progressiva, como todas as ciências de observação.
Pela sua substância, alia-se à ciência que, sendo a exposição das leis da natureza, com relação a certa ordem de
fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas
leis. As descobertas que a ciência realiza, longe de o rebaixarem,
glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens
edificaram sobre as falsas ideias que formaram de Deus.
O Espiritismo, pois, não estabelece como princípio absoluto
senão o que se acha evidentemente demonstrado, ou o
que ressalta logicamente da observação. Entendendo com todos
os ramos da economia social, aos quais dá o apoio das
suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas
progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que
hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado
o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria. Deixando de
ser o que é, mentiria à sua origem e ao seu fim providencial.
Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais
será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem
estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se
modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar,
ele a aceitará. *
* Diante de declarações tão nítidas e tão categóricas, quais as que se
contêm neste capítulo, caem por terra todas as alegações de tendências
ao absolutismo e à autocracia dos princípios, bem como
todas as falsas assimilações que algumas pessoas prevenidas ou
mal informadas emprestam à doutrina. Não são novas, aliás, estas
declarações; temo-las repetido muitíssimas vezes nos nossos escritos,
para que nenhuma dúvida persista a tal respeito. Elas, ao
demais, assinalam o verdadeiro papel que nos cabe, único que
ambicionamos: o de mero trabalhador.
56. Qual a utilidade da doutrina moral dos Espíritos,
uma vez que não difere da do Cristo? Precisa o homem de
uma revelação? Não pode achar em si próprio tudo o que lhe é
necessário para conduzir-se?
Do ponto de vista moral, é fora de dúvida que Deus
outorgou ao homem um guia, dando-lhe a consciência, que
lhe diz: “Não faças a outrem o que não quererias te fizessem.”
A moral natural está positivamente inscrita no coração dos homens; porém, sabem todos lê-la nesse livro?
Nunca lhe desprezaram os sábios preceitos? Que fizeram
da moral do Cristo? Como a praticam mesmo aqueles que a
ensinam? Reprovareis que um pai repita a seus filhos dez
vezes, cem vezes as mesmas instruções, desde que eles não
as sigam? Por que haveria Deus de fazer menos do que um
pai de família? Por que não enviaria, de tempos a tempos,
mensageiros especiais aos homens, para lhes lembrar os
deveres e reconduzi-los ao bom caminho, quando deste se
afastam; para abrir os olhos da inteligência aos que os trazem
fechados, assim como os homens mais adiantados
enviam missionários aos selvagens e aos bárbaros?
A moral que os Espíritos ensinam é a do Cristo, pela
razão de que não há outra melhor. Mas, então, de que serve
o ensino deles, se apenas repisam o que já sabemos? Outro
tanto se poderia dizer da moral do Cristo, que já Sócrates e
Platão ensinaram quinhentos anos antes e em termos quase
idênticos. O mesmo se poderia dizer também das de todos
os moralistas, que nada mais fazem do que repetir a
mesma coisa em todos os tons e sob todas as formas. Pois
bem! os Espíritos vêm, muito simplesmente, aumentar o número dos moralistas, com a diferença de que, manifestando-se
por toda parte, tanto se fazem ouvir na choupana,
como no palácio, assim pelos ignorantes, como pelos
instruídos.
O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do
Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam
as noções vagas que se tinham da alma, de seu passado e
de seu futuro, dando por sanção à doutrina cristã as próprias leis da natureza. Com o auxílio das novas luzes que o
Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem se reconhece
solidário com todos os seres e compreende essa solidariedade;
a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade
social; ele faz por convicção o que fazia unicamente
por dever, e o faz melhor.
Somente quando praticarem a moral do Cristo, poderão
os homens dizer que não mais precisam de moralistas
encarnados ou desencarnados. Mas, também, Deus,
então, já não lhos enviará.
57. Uma das questões mais importantes, entre as propostas
no começo deste capítulo, é a seguinte: Que autoridade
tem a revelação espírita, uma vez que emana de seres de
limitadas luzes e não infalíveis?
A objeção seria ponderosa, se essa revelação consistisse
apenas no ensino dos Espíritos, se deles exclusivamente
a devêssemos receber e houvéssemos de aceitá-la de olhos
fechados. Perde, porém, todo valor, desde que o homem
concorra para a revelação com o seu raciocínio e o seu critério;
desde que os Espíritos se limitam a pô-lo no caminho
das deduções que ele pode tirar da observação dos fatos.
Ora, as manifestações, nas suas inumeráveis modalidades,
são fatos que o homem estuda para lhes deduzir a lei, auxiliado nesse trabalho por Espíritos de todas as categorias,
que, de tal modo, são mais colaboradores seus do que
reveladores, no sentido usual do termo. Ele lhes submete
os dizeres ao cadinho da lógica e do bom senso: desta maneira
se beneficia dos conhecimentos especiais de que os
Espíritos dispõem pela posição em que se acham, sem
abdicar o uso da própria razão.
Sendo os Espíritos unicamente as almas dos homens,
comunicando-nos com eles não saímos fora da humanidade,
circunstância capital a considerar-se. Os homens de
gênio, que foram fachos da humanidade, vieram do mundo
dos Espíritos e para lá voltaram, ao deixarem a Terra. Dado
que os Espíritos podem comunicar-se com os homens, esses
mesmos gênios podem dar-lhes instruções sob a forma
espiritual, como o fizeram sob a forma corpórea. Podem
instruir-nos, depois de terem morrido, tal qual faziam quando
vivos; apenas, são invisíveis, em vez de serem visíveis;
essa a única diferença. Não devem ser menores do que eram
a experiência e o saber que possuem e, se a palavra deles,
como homens, tinha autoridade, não na pode ter menos somente por estarem no mundo dos Espíritos.
58. Mas, nem só os Espíritos superiores se manifestam;
fazem-no igualmente os de todas as categorias e preciso
era que assim acontecesse, para nos iniciarmos no que respeita
ao verdadeiro caráter do mundo espiritual, apresentando-se-nos
este por todas as suas faces. Daí resulta serem
mais íntimas as relações entre o mundo visível e o
mundo invisível e mais evidente a conexidade entre os dois.
Vemos assim mais claramente donde procedemos e para onde
iremos. Esse o objeto essencial das manifestações. Todos os
Espíritos, pois, qualquer que seja o grau de elevação em que
se encontrem, alguma coisa nos ensinam; cabe-nos,
porém, a nós, visto que eles são mais ou menos esclarecidos,
discernir o que há de bom ou de mau no que nos digam
e tirar, do ensino que nos deem, o proveito possível.
Ora, todos, quaisquer que sejam, nos podem ensinar ou
revelar coisas que ignoramos e que sem eles nunca
saberíamos.
59. Os grandes Espíritos encarnados são, sem contradita,
individualidades poderosas, mas de ação restrita e de lenta
propagação. Viesse um só dentre eles, embora fosse Elias
ou Moisés, Sócrates ou Platão, revelar, nos tempos modernos,
aos homens, as condições do mundo espiritual, quem
provaria a veracidade das suas asserções, nesta época de
cepticismo? Não o tomariam por sonhador ou utopista?
Mesmo que fosse verdade absoluta o que dissesse, séculos
se escoariam antes que as massas humanas lhe aceitassem
as ideias. Deus, em sua sabedoria, não quis que assim
acontecesse; quis que o ensino fosse dado pelos próprios
Espíritos, não por encarnados, a fim de que aqueles convencessem
da sua existência a estes últimos e quis que
isso ocorresse por toda a Terra simultaneamente, quer para
que o ensino se propagasse com maior rapidez, quer
para que, coincidindo em toda parte, constituísse uma prova
da verdade, tendo assim cada um o meio de convencer-se
a si próprio.
60. Os Espíritos não se manifestam para libertar do estudo
e das pesquisas o homem, nem para lhe transmitirem, inteiramente
pronta, nenhuma ciência. Com relação ao que o
homem pode achar por si mesmo, eles o deixam entregue
às suas próprias forças. Isso sabem-no hoje perfeitamente
os espíritas. De há muito, a experiência há demonstrado
ser errôneo atribuir-se aos Espíritos todo o saber e toda a
sabedoria e supor-se que baste a quem quer que seja dirigir-se
ao primeiro Espírito que se apresente para conhecer
todas as coisas. Saídos da humanidade, eles constituem
uma de suas faces. Assim como na Terra, no plano invisível
também os há superiores e vulgares; muitos, pois, que,
científica e filosoficamente, sabem menos do que certos
homens; eles dizem o que sabem, nem mais, nem menos.
Do mesmo modo que os homens, os Espíritos mais adiantados
podem instruir-nos sobre maior porção de coisas,
dar-nos opiniões mais judiciosas, do que os atrasados. Pedir
o homem conselhos aos Espíritos não é entrar em entendimento
com potências sobrenaturais; é tratar com seus
iguais, com aqueles mesmos a quem ele se dirigiria neste
mundo; a seus parentes, seus amigos, ou a indivíduos mais
esclarecidos do que ele. Disto é que importa se convençam
todos e é o que ignoram os que, não tendo estudado o Espiritismo,
fazem ideia completamente falsa da natureza do
mundo dos Espíritos e das relações com o além-túmulo.
61. Qual, então, a utilidade dessas manifestações, ou, se o
preferirem, dessa revelação, uma vez que os Espíritos não
sabem mais do que nós, ou não nos dizem tudo o que sabem?
Primeiramente, como já o declaramos, eles se abstém
de nos dar o que podemos adquirir pelo trabalho; em segundo
lugar, há coisas cuja revelação não lhes é permitida,
porque o grau do nosso adiantamento não nas comporta.
Afora isto, as condições da nova existência em que se acham
lhes dilatam o círculo das percepções: eles veem o que não
viam na Terra; libertos dos entraves da matéria, isentos
dos cuidados da vida corpórea, apreciam as coisas de um
ponto de vista mais elevado e, portanto, mais são; a perspicácia
de que gozam abrange mais vasto horizonte; compreendem
seus erros, retificam suas ideias e se desembaraçam
dos prejuízos humanos. É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos com
relação à humanidade corpórea e daí vem a possibilidade
de serem seus conselhos, segundo o grau de adiantamento
que alcançaram, mais judiciosos e desinteressados do que
os dos encarnados. O meio em que se encontram lhes permite,
ao demais, iniciar-nos nas coisas, que ignoramos,
relativas à vida futura e que não podemos aprender no meio
em que estamos. Até ao presente, o homem apenas formulara
hipóteses sobre o seu porvir; tal a razão por que suas
crenças a esse respeito se fracionaram em tão numerosos e
divergentes sistemas, desde o nadismo até as concepções
fantásticas do inferno e do paraíso. Hoje, são as testemunhas
oculares, os próprios atores da vida de além-túmulo
que nos vêm dizer em que se tornaram e só eles o podiam
fazer. Suas manifestações, conseguintemente, serviram para
dar-nos a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e do
qual nem suspeitávamos e só esse conhecimento seria de capital importância, dado mesmo que nada mais pudessem
os Espíritos ensinar-nos.
Se fordes a um país que ainda não conheçais, recusareis
as informações que vos dê o mais humilde campônio que
encontrardes? Deixareis de interrogá-lo sobre o estado dos
caminhos, simplesmente por ser ele um camponês? Certamente
não esperareis obter, por seu intermédio, esclarecimentos
de grande alcance, mas, de acordo com o que ele é
na sua esfera, poderá, sobre alguns pontos, informar-vos
melhor do que um sábio, que não conheça o país. Tirareis
das suas indicações deduções que ele próprio não tiraria,
sem que por isso deixe de ser um instrumento útil às vossas
observações, embora apenas servisse para vos informar
acerca dos costumes dos camponeses. Outro tanto se
dá no que concerne às nossas relações com os Espíritos,
entre os quais o menos qualificado pode servir para nos
ensinar alguma coisa.
62. Uma comparação vulgar tornará ainda melhor
compreensível a situação.
Parte para destino longínquo um navio carregado de
emigrantes. Leva homens de todas as condições, parentes
e amigos dos que ficam. Vem-se a saber que esse navio
naufragou. Nenhum vestígio resta dele, nenhuma notícia
chega sobre a sua sorte. Acredita-se que todos os passageiros
pereceram e o luto penetra em todas as suas famílias.
Entretanto, a equipagem inteira, sem faltar um único homem,
foi ter a uma ilha desconhecida, abundante e fértil, onde todos passam a viver ditosos, sob um céu clemente.
Ninguém, todavia, sabe disso. Ora, um belo dia, outro navio
aporta a essa terra e lá encontra sãos e salvos os náufragos.
A feliz nova se espalha com a rapidez do relâmpago.
Exclamam todos: “Não estão perdidos os nossos amigos!” E
rendem graças a Deus. Não podem ver-se uns aos outros,
mas correspondem-se; permutam demonstrações de afeto
e, assim, a alegria substitui a tristeza.
Tal a imagem da vida terrena e da vida de além-túmulo,
antes e depois da revelação moderna. A última, semelhante
ao segundo navio, nos traz a boa-nova da sobrevivência
dos que nos são caros e a certeza de que a eles nos reuniremos
um dia. Deixa de existir a dúvida sobre a sorte deles e
a nossa. O desânimo se desfaz diante da esperança. Mas, outros resultados fecundam essa revelação.
Achando madura a humanidade para penetrar o mistério
do seu destino e contemplar, a sangue-frio, novas maravilhas,
permitiu Deus fosse erguido o véu que ocultava o
mundo invisível ao mundo visível. Nada têm de extra-humanas
as manifestações; é a humanidade espiritual que vem
conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe: “Nós existimos, logo, o nada não existe; eis o que somos
e o que sereis; o futuro vos pertence, como a nós.
Caminhais nas trevas, vimos clarear-vos o caminho e traçar-vos o roteiro; andais ao acaso, vimos apontar-vos a
meta. A vida terrena era, para vós, tudo, porque nada víeis
além dela; vimos dizer-vos, mostrando a vida espiritual: a
vida terrestre nada é. A vossa visão se detinha no túmulo, nós vos desvendamos, para lá deste, um esplêndido horizonte.
Não sabíeis por que sofreis na Terra; agora, no
sofrimento, vedes a justiça de Deus. O bem nenhum fruto
aparente produzia para o futuro. Doravante, ele terá
uma finalidade e constituirá uma necessidade; a fraternidade,
que não passava de bela teoria, assenta agora
numa lei da natureza. Sob o domínio da crença de que
tudo acaba com a vida, a imensidade é o vazio, o egoísmo
reina soberano entre vós e a vossa palavra de ordem é:
“Cada um por si.” Com a certeza do porvir, os espaços
infinitos se povoam ao infinito, em parte alguma há o
vazio e a solidão; a solidariedade liga todos os seres,
aquém e além da tumba. É o reino da caridade, sob a
divisa: “Um por todos e todos por um.” Enfim, ao termo
da vida, dizíeis eterno adeus aos que vos são caros;
agora, dir-lhes-eis: ‘Até breve!’”
Tais, em resumo, os resultados da revelação nova,
que veio encher o vácuo que a incredulidade cavara, levantar
os ânimos abatidos pela dúvida ou pela perspectiva
do nada e imprimir a todas as coisas uma razão de
ser. Carecerá de importância esse resultado, apenas porque
os Espíritos não vêm resolver os problemas da ciência,
dar saber aos ignorantes e aos preguiçosos os meios
de se enriquecerem sem trabalho? Nem só, entretanto, à
vida futura dizem respeito os frutos que o homem deve
colher dela. Ele os saboreará na Terra, pela transformação que estas novas crenças hão de necessariamente
operar no seu caráter, nos seus gostos, nas suas tendências
e, por conseguinte, nos hábitos e nas relações sociais. Pondo fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da
incredulidade, elas preparam o do bem, que é o reino de
Deus, anunciado pelo Cristo.*
* A anteposição do artigo à palavra Cristo (do grego Christos, ungido),
empregada em sentido absoluto, é mais correta, atento que
essa palavra não é o nome do Messias de Nazaré, mas uma qualidade
tomada substantivamente. Dir-se-á, pois:
Jesus era Cristo;
era o
Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de
Cristo, ao passo que se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em
Jesus-Cristo, as duas palavras reunidas formam um só nome próprio. É pela mesma razão que se diz: o Buda; Gautama conquistou
a dignidade de
Buda por suas virtudes e austeridades. Diz-se: a vida
do Buda, do mesmo modo que: o exército do Faraó e não de Faraó;
Henrique IV era
rei; o título de rei; a morte do rei e não de rei.