CAPÍTULO III
O BEM E O MAL
Origem do bem e do mal. — O instinto e a inteligência. — Destruição dos seres vivos uns pelos outros.
Origem do bem e do mal.
1. Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo
sabedoria, todo bondade, todo justiça, tudo o que dele procede há de participar dos seus atributos, porquanto o que é
infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que
seja ininteligente, mau e injusto. O mal que observamos
não pode ter nele a sua origem.
2. Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial,
quer se lhe chame Arimane, quer Satanás, ou ele seria igual
a Deus, e, por conseguinte, tão poderoso quanto este, e de
toda a eternidade como ele, ou lhe seria inferior. No primeiro caso, haveria duas potências rivais, incessantemente em luta, procurando cada uma desfazer o que
fizesse a outra, contrariando-se mutuamente, hipótese esta
inconciliável com a unidade de vistas que se revela na
estrutura do universo. No segundo caso, sendo inferior a Deus, aquele ser lhe
estaria subordinado. Não podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria tido um começo. Se fora criado, só o poderia ter sido por Deus, que, então, houvera criado o Espírito do mal, o que implicaria
negação da bondade infinita. (Veja-se:
O Céu e o Inferno,
cap. IX: “Os demônios”.)
3. Entretanto, o mal existe e tem uma causa. Os males de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a humanidade, formam duas categorias que importa
distinguir: a dos males que o homem pode evitar e a dos
que lhe independem da vontade. Entre os últimos, cumpre
se incluam os flagelos naturais. O homem, cujas faculdades são restritas, não pode penetrar, nem abarcar o conjunto dos desígnios do Criador;
aprecia as coisas do ponto de vista da sua personalidade,
dos interesses factícios e convencionais que criou para si
mesmo e que não se compreendem na ordem da natureza.
Por isso é que, muitas vezes, se lhe afigura mau e injusto
aquilo que consideraria justo e admirável, se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a
razão de ser e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo
traz o sinete da sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao que lhe não seja compreensível.
4. O homem recebeu em partilha uma inteligência com cujo
auxílio lhe é possível conjurar, ou, pelo menos, atenuar os efeitos de todos os flagelos naturais. Quanto mais saber ele
adquire e mais se adianta em civilização, tanto menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma organização sábia e previdente, chegará mesmo a lhes neutralizar as consequências, quando não possam ser inteiramente evitados.
Assim, com referência, até, aos flagelos que têm certa utilidade para a ordem geral da natureza e para o futuro, mas
que, no presente, causam danos, facultou Deus ao homem
os meios de lhes paralisar os efeitos. Assim é que ele saneia as regiões insalubres, imuniza
contra os miasmas pestíferos, fertiliza terras áridas e se
industria em preservá-las das inundações; constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à purificação da atmosfera e se coloca
ao abrigo das intempéries. É assim, finalmente, que, pouco
a pouco, a necessidade lhe fez criar as ciências, por meio
das quais melhora as condições de habitabilidade do globo
e aumenta o seu próprio bem-estar.
5. Tendo o homem que progredir, os males a que se acha
exposto são um estimulante para o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de evitá-los. Se ele nada houvesse de temer, nenhuma necessidade o induziria a procurar
o melhor; o espírito se lhe entorpeceria na inatividade; nada
inventaria, nem descobriria.
A dor é o aguilhão que o impele para a frente, na senda do progresso.
6. Porém, os males mais numerosos são os que o homem
cria pelos seus vícios, os que provêm do seu orgulho, do
seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí a causa das guerras e das calamidades
que estas acarretam, das dissenções, das injustiças, da
opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das
enfermidades. Deus promulgou leis plenas de sabedoria, tendo por
único objetivo o bem. Em si mesmo encontra o homem tudo
o que lhe é necessário para cumpri-las. A consciência lhe
traça a rota, a lei divina lhe está gravada no coração e, ao
demais, Deus lha lembra constantemente por intermédio
de seus messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos, pela multidão dos Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte.
Se o
homem se conformasse rigorosamente com as leis divinas,
não há duvidar de que se pouparia aos mais agudos males e
viveria ditoso na Terra
. Se assim procede, é por virtude do
seu livre-arbítrio: sofre então as consequências do seu
proceder. (
O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, n.os 4,
5, 6 e seguintes.)
7. Entretanto, Deus, todo bondade, pôs o remédio ao lado
do mal, isto é, faz que do próprio mal saia o remédio. Um
momento chega em que o excesso do mal moral se torna
intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de
vida. Instruído pela experiência, ele se sente compelido a
procurar no bem o remédio, sempre por efeito do seu
livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e porque reconheceu os inconvenientes do outro. A
necessidade, pois, o constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu
a melhorar as condições materiais da sua existência (n.
o 5).
8. Pode dizer-se que o mal é a ausência do bem, como o frio
é a ausência do calor
. Assim como o frio não é um fluido
especial, também o mal não é atributo distinto; um é o negativo do outro
. Onde não existe o bem, forçosamente existe o
mal. Não praticar o mal, já é um princípio do bem.
Deus
somente quer o bem; só do homem procede o mal. Se na criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia
evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em SI MESMO
,
tendo simultaneamente o livre-arbítrio e por guia as leis divinas, evitá-lo-á sempre que o queira.
Tomemos para termo de comparação um fato vulgar.
Sabe um proprietário que nos confins de suas terras há um
lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se quem por
lá se aventurasse. Que faz, a fim de prevenir os acidentes?
Manda colocar perto um aviso, tornando defeso ao transeunte ir mais longe, por motivo do perigo. Aí está a lei, que
é sábia e previdente. Se, apesar de tudo, um imprudente
desatende o aviso, vai além do ponto onde este se encontra e
sai-se mal, de quem se pode ele queixar, senão de si próprio? Outro tanto se dá com o mal: evitá-lo-ia o homem, se
cumprisse as leis divinas. Por exemplo: Deus pôs limite à
satisfação das necessidades: desse limite a saciedade adverte o homem; se este o ultrapassa, fá-lo voluntariamente.
As doenças, as enfermidades, a morte, que daí podem
resultar, provêm da sua imprevidência, não de Deus.
9. Decorrendo, o mal, das imperfeições do homem, e tendo
sido este criado por Deus, dir-se-á, Deus não deixa de ter
criado, se não o mal, pelo menos, a causa do mal; se
houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria. Se fora criado perfeito, o homem fatalmente penderia
para o bem. Ora, em virtude do seu livre-arbítrio, ele não
pende fatalmente nem para o bem, nem para o mal. Quis
Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso resulte do seu trabalho, a fim de que lhe pertença o
fruto deste, da mesma maneira que lhe cabe a responsabilidade do mal que por sua vontade pratique. A questão,
pois, consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da
sua propensão para o mal. *
* O erro está em pretender-se que a alma haja saído perfeita das
mãos do Criador, quando este, ao contrário, quis que a perfeição
resulte da depuração gradual do Espírito e seja obra sua. Houve
Deus por bem que a alma, dotada de livre-arbítrio, pudesse optar
entre o bem e o mal e chegasse a suas finalidades últimas de forma
militante e resistindo ao mal. Se houvera criado a alma tão perfeita
quanto ele e, ao sair-lhe ela das mãos, a houvesse associado à sua
beatitude eterna, Deus tê-la-ia feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio. (Bonnamy,
A Razão do Espiritismo, cap. VI.)
10. Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se que as raízes de umas e outros se acham no instinto de conservação, instinto que se encontra em toda a pujança nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por não ter ainda o ser nascido para a vida intelectual. O instinto se enfraquece, à medida que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.
O Espírito tem por destino a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua existência corpórea, somente
às exigências materiais lhe cumpre satisfazer e, para tal, o
exercício das paixões constitui uma necessidade para o efeito
da conservação da espécie e dos indivíduos,
materialmente
falando
. Mas, uma vez saído desse período, outras necessidades se lhe apresentam, a princípio semimorais e
semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que
o Espírito exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo,
avança pela senda providencial que se lhe acha traçada e
se aproxima do seu destino final. Se, ao contrário, ele se
deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica com o
bruto. Nessa situação,
o que era outrora um bem, porque
era uma necessidade da sua natureza, transforma-se num
mal, não só porque já não constitui uma necessidade, como
porque se torna prejudicial à espiritualização do ser
. Muita
coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. O mal é, pois, relativo, e a responsabilidade é proporcionada ao grau de adiantamento.
Todas as paixões têm, portanto, uma utilidade providencial, visto que, a não ser assim, Deus teria feito coisas
inúteis e, até, nocivas. No abuso é que reside o mal e o
homem abusa em virtude do seu livre-arbítrio. Mais tarde,
esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe
entre o bem e o mal.
O instinto e a inteligência.
11. Qual a diferença entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e o outro começa? Será o instinto uma inteligência rudimentar, ou será uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria? O instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos
a atos espontâneos e involuntários, tendo em vista a conservação deles
. Nos atos instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o
ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para
a terra nutriente; que a flor se abre e fecha alternativamente, conforme se lhe faz necessário; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio,
ou se lhe agarram com as gavinhas. É pelo instinto que os
animais são avisados do que lhes convém ou prejudica; que
buscam, conforme a estação, os climas propícios;
que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos arte,
segundo as espécies, leitos macios e abrigos para as suas
progênies, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam destramente as armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se aproximam;
que a mãe choca os filhos e que estes procuram o seio materno. No homem, só em começo da vida o instinto domina
com exclusividade; é por instinto que a criança faz os primeiros movimentos, que toma o alimento, que grita para
exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que
tenta falar e andar. No próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um
risco, para fugir a um perigo, para manter o equilíbrio do
corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar o
brilho da luz, o abrir maquinal da boca para respirar, etc.
12. A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos,
premeditados, combinados, de acordo com a oportunidade
das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo
exclusivo da alma.
Todo ato maquinal é instintivo; o ato que denota reflexão, combinação, deliberação é inteligente. Um é livre, o outro
não o é
. O instinto é guia seguro, que nunca se engana; a inteligência, pelo simples fato de ser livre, está, por vezes,
sujeita a errar. Ao ato instintivo falta o caráter do ato inteligente; revela,
entretanto,
uma causa inteligente, essencialmente apta a prever. Se se admitir que o instinto procede da matéria, ter-se-á
de admitir que a matéria é inteligente, até mesmo bem mais
inteligente e previdente do que a alma, pois que o instinto
não se engana, ao passo que a inteligência se equivoca. Se se considerar o instinto uma inteligência rudimentar, como se há de explicar que, em certos casos, seja superior à inteligência que raciocina? Como explicar que torne
possível se executem atos que esta não pode realizar?
Se ele é atributo de um princípio espiritual de especial natureza, qual vem a ser esse princípio? Pois que o instinto se
apaga, dar-se-á que esse princípio se destrua? Se os
animais são dotados apenas de instinto, não tem solução o
destino deles e nenhuma compensação os seus sofrimentos,
o que não estaria de acordo nem com a justiça, nem com a
bondade de Deus. (Cap. II, 19.)
13. Segundo outros sistemas, o instinto e a inteligência procederiam de um único princípio. Chegado a certo grau de
desenvolvimento, esse princípio, que primeiramente apenas tivera as qualidades do instinto, passaria por uma transformação que lhe daria as da inteligência livre. Se fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e entra a ser guiado exclusivamente pelo instinto, a
inteligência voltaria ao seu estado primitivo e, quando o
homem recobrasse a razão, o instinto se tornaria inteligência e assim alternativamente, a cada acesso, o que não é
admissível.
Aliás, é frequente o instinto e a inteligência se revelarem simultaneamente no mesmo ato. No caminhar, por
exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem
põe maquinalmente um pé à frente do outro, sem nisso
pensar; quando, porém, ele quer acelerar ou demorar o passo, levantar o pé ou desviar-se de um tropeço, há cálculo,
combinação; ele age com deliberado propósito
. A impulsão
involuntária do movimento é o ato instintivo; a calculada direção do movimento é o ato inteligente
. O animal carnívoro é
impelido pelo instinto a se alimentar de carne, mas as precauções que toma e que variam conforme as circunstâncias, para segurar a presa, a sua previdência das eventualidades são atos da inteligência.
14. Outra hipótese que, em suma, se conjuga perfeitamente à ideia da unidade de princípio, ressalta do caráter essencialmente previdente do instinto e concorda com o que
o Espiritismo ensina, no tocante às relações do mundo
espiritual com o mundo corpóreo. Sabe-se agora que muitos Espíritos desencarnados têm
por missão velar pelos encarnados, dos quais se constituem protetores e guias; que os envolvem nos seus eflúvios
fluídicos; que o homem age muitas vezes de modo
inconsciente, sob a ação desses eflúvios. Sabe-se, ao demais, que o instinto, que por si mesmo
produz atos inconscientes, predomina nas crianças e, em
geral, nos seres cuja razão é fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria atributo nem da alma, nem da matéria; não pertenceria propriamente ao ser vivo, seria efeito da
ação direta dos protetores invisíveis que supririam
a imperfeição da inteligência, provocando os atos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria qual a
andadeira com que se amparam as crianças que ainda não
sabem andar. Então, do mesmo modo que se deixa gradualmente de usar a andadeira, à medida que a criança se
equilibra sozinha, os Espíritos protetores deixam entregues
a si mesmos os seus protegidos, à medida que estes se
tornam aptos a guiar-se pela própria inteligência. Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, sê-lo-ia de uma inteligência estranha,
na plenitude da sua força, inteligência protetora, supletiva da insuficiência, quer de uma inteligência
mais jovem, que aquela compeliria a fazer, inconscientemente, para seu bem, o que ainda fosse incapaz de fazer
por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém,
momentaneamente tolhida no uso de suas faculdades, como
se dá com o homem na infância e nos casos de idiotia e de
afecções mentais.
Diz-se proverbialmente que há um deus para as crianças, para os loucos e para os ébrios. É mais veraz do que se
supõe esse ditado. Aquele deus, outro não é senão o Espírito protetor, que vela pelo ser incapaz de se proteger, utilizando-se da sua própria razão.
15. Nesta ordem de ideias, ainda mais longe se pode ir. Por
muito racional que seja, essa teoria não resolve todas as
dificuldades da questão. Se observarmos os efeitos do instinto, notaremos, em
primeiro lugar, uma unidade de vistas e de conjunto, uma
segurança de resultados, que cessam logo que a inteligência o substitui. Demais, reconheceremos profunda sabedoria na apropriação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie. Semelhante
unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento e esta é incompatível com a diversidade das aptidões individuais; só ela poderia produzir esse conjunto tão
harmonioso que se realiza desde a origem dos tempos e em
todos os climas, com uma regularidade, uma precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. A uniformidade
no que resulta das faculdades instintivas é um fato característico, que forçosamente implica
a unidade da causa. Se a
causa fosse inerente a cada individualidade, haveria tantas
variedades de instintos quantos fossem os indivíduos, desde a planta até o homem. Um efeito geral, uniforme e constante, há de ter uma causa geral, uniforme e constante;
um efeito que atesta sabedoria e previdência há de ter uma
causa sábia e previdente. Ora, uma causa dessa natureza,
sendo por força inteligente, não pode ser exclusivamente
material. Não se nos deparando nas criaturas, encarnadas ou
desencarnadas, as qualidades necessárias à produção de
tal resultado, temos que subir mais alto, isto é, ao próprio
Criador. Se nos reportamos à explicação dada sobre a maneira por que se pode conceber a ação providencial (cap. II,
n.
o 24); se figurarmos todos os seres penetrados do fluido
divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de vistas que presidem a
todos os movimentos instintivos que se efetuam para o bem
de cada indivíduo. Tanto mais ativa é essa solicitude, quanto
menos recursos tem o indivíduo em si mesmo e na sua inteligência. Por isso é que ela se mostra maior e mais absoluta
nos animais e nos seres inferiores, do que no homem.
Segundo essa teoria, compreende-se que o instinto seja
um guia seguro. O instinto materno, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atrativas da matéria, fica realçado e enobrecido. Em razão das
suas consequências, não devia ele ser entregue às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio.
Por intermédio da mãe, o próprio Deus vela pelas suas
criaturas que nascem
.
16. Esta teoria de nenhum modo anula o papel dos Espíritos protetores, cujo concurso é fato observado e comprovado pela experiência; mas, deve-se notar que a ação desses
Espíritos é essencialmente individual; que se modifica segundo as qualidades próprias do protetor e do protegido e
que em parte nenhuma apresenta a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, em sua sabedoria, conduz ele
próprio os cegos, porém confia a inteligências livres o cuidado de guiar os clarividentes, para deixar a cada um a
responsabilidade de seus atos. A missão dos Espíritos protetores constitui um dever que eles aceitam voluntariamente
e lhes é um meio de se adiantarem, dependendo o adiantamento da forma por que o desempenhem.
17. Todas essas maneiras de considerar o instinto são forçosamente hipotéticas e nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para ser tida como solução definitiva.
A questão, sem dúvida, será resolvida um dia, quando se
houverem reunido os elementos de observação que ainda
faltam. Até lá, temos que limitar-nos a submeter as diversas opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar que
a luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade
será decerto a que melhor condiga com os atributos de Deus,
isto é, com a bondade suprema e a suprema justiça. (Cap.
II, n.
o 19.)
18. Sendo o instinto o guia e as paixões as molas da alma
no período inicial do seu desenvolvimento, por vezes aquele
e estas se confundem nos efeitos. Há, contudo, entre
esses dois princípios, diferenças que muito importa se
considerem.
O instinto é guia seguro, sempre bom. Pode, ao cabo
de certo tempo, tornar-se inútil, porém nunca prejudicial.
Enfraquece-se pela predominância da inteligência. As paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto o serem as criaturas solicitadas por
uma força igualmente inconsciente. As paixões nascem principalmente das necessidades do corpo e dependem, mais
do que o instinto, do organismo. O que, acima de tudo, as
distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes; variam,
ao contrário, de intensidade e de natureza, conforme os
indivíduos. São úteis, como estimulante, até à eclosão do
senso moral, que faz nasça de um ser passivo, um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só inúteis, como
nocivas ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização
retardam. Abrandam-se com o desenvolvimento da razão.
19. O homem que só pelo instinto agisse constantemente
poderia ser muito bom, mas conservaria adormecida a sua
inteligência. Seria qual criança que não deixasse as
andadeiras e não soubesse utilizar-se de seus membros.
Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito
inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau.
O instinto
se aniquila por si mesmo; as paixões somente pelo esforço
da vontade podem domar-se.
Destruição dos seres vivos uns pelos outros.
20. A destruição recíproca dos seres vivos é, dentre as leis
da natureza, uma das que, à primeira vista, menos parecem
conciliar-se com a bondade de Deus. Pergunta-se
por que lhes criou ele a necessidade de mutuamente
se destruírem, para se alimentarem uns à custa dos outros. Para quem apenas vê a matéria e restringe à vida presente a sua visão, há de isso, com efeito, parecer uma imperfeição na obra divina. É que, em geral, os homens apreciam
a perfeição de Deus do ponto de vista humano; medindo-lhe
a sabedoria pelo juízo que dela formam, pensam que Deus
não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam.
Não lhes permitindo a curta visão, de que dispõem, apreciar o conjunto, não compreendem que um bem real possa
decorrer de um mal aparente. Só o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua verdadeira essência, e o
da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe
a sabedoria providencial e a harmonia, exatamente onde
apenas vê uma anomalia e uma contradição.
21. A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não
está no invólucro corporal, do mesmo que não está no vestuário. Está no princípio inteligente que preexiste e sobrevive
ao corpo
. Esse princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez mais forte,
mais lúcido e mais apto. Que importa, pois, que o Espírito
mude mais ou menos frequentemente de envoltório?! Não
deixa por isso de ser Espírito. É precisamente como se um
homem mudasse cem vezes no ano as suas vestes. Não
deixaria por isso de ser homem.
Por meio do incessante espetáculo da destruição, ensina Deus aos homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual,
fazendo que a desejem como uma compensação. Objetar-se-á: não podia Deus chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se
entredestruírem? Desde que na sua obra tudo é sabedoria,
devemos supor que esta não existirá mais num ponto do que noutros; se não o compreendemos assim, devemos atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, podemos
tentar a pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso,
tomando por bússola este princípio:
Deus há de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em tudo, a
sua justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos diante do que
ultrapasse o nosso entendimento.
22. Uma primeira utilidade, que se apresenta de tal destruição, utilidade, sem dúvida, puramente física, é esta: os
corpos orgânicos só se conservam com o auxílio das matérias orgânicas, matérias que só elas contêm os elementos
nutritivos necessários à transformação deles. Como instrumentos de ação para o princípio inteligente, precisando
os corpos ser constantemente renovados, a Providência faz
que sirvam ao seu mútuo entretenimento. Eis por que os
seres se nutrem uns dos outros. Mas, então, é o corpo que
se nutre do corpo, sem que o Espírito se aniquile ou altere.
Fica apenas despojado do seu envoltório.*
* Veja-se:
Revue spirite, agosto de 1864, pág. 241, “Extinção das raças”.
23. Há também considerações morais de ordem elevada. — É necessária a luta para o desenvolvimento do Espírito. Na luta é que ele exercita suas faculdades. O que ataca
em busca do alimento e o que se defende para conservar a
vida usam de habilidade e inteligência, aumentando, em
consequência, suas forças intelectuais. Um dos dois sucumbe; mas, em realidade, que foi o que o mais forte ou o
mais destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais; ulteriormente, o Espírito, que não morreu, tomará
outra.
24. Nos seres inferiores da criação, naqueles a quem ainda
falta o senso moral, em os quais a inteligência ainda não
substituiu o instinto, a luta não pode ter por móvel senão a
satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das mais
imperiosas dessas necessidades é a da alimentação. Eles,
pois, lutam unicamente para viver, isto é, para fazer ou
defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado
os poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma
se elabora e ensaia para a vida.
No homem, há um período de transição em que ele mal
se distingue do bruto. Nas primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda tem por móvel a satisfação das
necessidades materiais. Mais tarde, contrabalançam-se
o instinto animal e o sentimento moral; luta então o homem, não mais para se alimentar, porém, para satisfazer à
sua ambição, ao seu orgulho, à necessidade, que experimenta, de dominar. Para isso, ainda lhe é preciso destruir.
Todavia, à medida que o senso moral prepondera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de destruir,
acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa.
O homem ganha horror ao sangue.
Contudo, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito, pois, mesmo chegando a esse ponto,
que parece culminante, ele ainda está longe de ser perfeito.
Só à custa de muita atividade adquire conhecimento, experiência e se despoja dos últimos vestígios da animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e brutal que era,
se torna puramente intelectual. O homem luta contra as
dificuldades, não mais contra os seus semelhantes.*
* Sem prejulgar das consequências que se possam tirar desse princípio, apenas quisemos demonstrar, mediante essa explicação, que a
destruição de uns seres vivos por outros em nada infirma a sabedoria divina e que, nas leis da natureza, tudo se encadeia. Esse
encadeamento forçosamente se quebra, desde que se abstraia do
princípio espiritual. Muitas questões permanecem insolúveis, por
só se levar em conta a matéria.
As doutrinas materialistas trazem em si o princípio de sua própria destruição. Têm contra si não só o antagonismo em que se
acham com as aspirações da universalidade dos homens e suas
consequências morais, que farão sejam elas repelidas como
dissolventes da sociedade, mas também a necessidade que o homem experimenta de se inteirar de tudo o que resulta do progresso.
O desenvolvimento intelectual conduz o homem à pesquisa das
causas. Ora, por pouco que ele reflita, não tardará a reconhecer a
impotência do materialismo para tudo explicar. Como é possível
que doutrinas que não satisfazem ao coração, nem à razão, nem à
inteligência, que deixam problemáticas as mais vitais questões,
venham a prevalecer? O progresso das ideias matará o materialismo,
como matou o fanatismo.