CAPÍTULO V
ANTIGOS E MODERNOS SISTEMAS DO MUNDO
1. A primeira ideia que os homens formaram da Terra, do
movimento dos astros e da constituição do universo, há
de, a princípio, ter-se baseado unicamente no que os sentidos percebiam. Ignorando as mais elementares leis da física e as forças da natureza, não dispondo senão da vista
como meio de observação, apenas pelas aparências podiam
eles julgar. Vendo o Sol aparecer pela manhã, de um lado do horizonte, e desaparecer, à tarde, do lado oposto, concluíram
naturalmente que ele girava em torno da Terra, conservando-se esta imóvel. Se lhes dissessem então que o contrário
é o que se dá, responderiam não ser possível tal coisa,
objetando: vemos que o Sol muda de lugar e não sentimos
que a Terra se mexa.
2. A pequena extensão das viagens, que naquela época raramente iam além dos limites da tribo ou do vale, não permitia se comprovasse a esfericidade da Terra. Como, ao
demais, haviam de supor que a Terra fosse uma bola? Os
seres, em tal caso, somente no ponto mais elevado poderiam manter-se e, supondo-a habitada em toda a superfície, como viveriam eles no hemisfério oposto, com a cabeça
para baixo e os pés para cima? Ainda menos possível houvera parecido isso com o movimento de rotação. Quando,
mesmo aos nossos dias, em que se conhece a lei de
gravitação, se veem pessoas relativamente esclarecidas não
perceberem esse fenômeno, como nos surpreendermos de
que homens das primeiras idades não o tenham sequer suspeitado? Para eles, pois, a Terra era uma superfície plana e circular, qual uma mó de moinho, estendendo-se a perder de
vista na direção horizontal. Daí a expressão ainda em uso:
Ir ao fim do mundo. Desconheciam-lhe os limites, a espessura, o interior, a face inferior, o que lhe ficava por baixo.*
* “A mitologia hindu ensinava que, ao entardecer, o astro do dia se despojava de sua luz e atravessava o céu durante a noite com uma face obscura. A mitologia grega figurava puxado por quatro cavalos o carro de Apolo. Anaximandro, de Mileto, sustentava, ao que refere Plutarco, que o sol era um carro cheio de fogo muito vivo, que se escapava por uma abertura circular. Epicuro, segundo uns, teria emitido a opinião de que o Sol se acendia pela manhã e se apagava à noite nas águas do oceano; segundo outros, ele considerava esse astro uma pedra-pomes aquecida até à incandescência. Anaxágoras o tomava por um ferro esbraseado, do tamanho do Peloponeso. Coisa singular! os antigos eram tão invencivelmente induzidos a considerar real a grandeza aparente desse astro, que perseguiram o filósofo temerário por haver atribuído aquele volume ao facho do dia, fazendo-se necessária toda a autoridade de Péricles para salvá-lo de uma condenação à morte e para que essa pena fosse comutada na de exílio.” (Flammarion, Estudos e leituras sobre a astronomia, pág. 6.)
Diante de tais ideias, emitidas no quinto século antes do Cristo, ao tempo da maior prosperidade da Grécia, não devem causar espanto aquelas que os homens das primeiras idades faziam sobre o sistema do mundo.
3. Por se mostrar sob forma côncava, o céu, na crença vulgar, era tido como uma abóbada real, cujos bordos inferiores repousavam na Terra e lhe marcavam os confins, vasta
cúpula cuja capacidade o ar enchia completamente. Sem
nenhuma noção do espaço infinito, incapazes mesmo de o
conceberem, imaginavam os homens que essa abóbada era
constituída de matéria sólida, donde a denominação de
firmamento que lhe foi dada e que sobreviveu à crença, significando: firme, resistente (do latim firmamentum, derivado de firmus e do grego herma, hermatos, firme, sustentáculo, suporte, ponto de apoio).
4. As estrelas, de cuja natureza não podiam suspeitar, eram
simplesmente pontos luminosos, de volumes diversos,
engastados na abóbada, como lâmpadas suspensas, dispostas sobre uma única superfície e, por conseguinte, todas à
mesma distância da Terra, tais como as que se veem no interior de certas cúpulas, pintadas de azul, figurando a do céu. Se bem hoje sejam outras as ideias, o uso das expressões antigas se conservou. Ainda se diz, por comparação:
a
abóbada estrelada
; sob a cúpula do céu.
5. Igualmente desconhecida era então a formação das nuvens pela evaporação das águas da Terra. A ninguém podia
acudir a ideia de que a chuva, que cai do céu, tivesse origem na Terra, donde ninguém a via subir. Daí a crença na
existência de
águas superiores e de águas inferiores, de fontes celestes e de fontes terrestres, de reservatórios colocados nas altas regiões — suposição que concordava perfeitamente com a ideia de uma abóbada sólida, capaz de os
sustentar. As águas superiores, escapando-se pelas frestas da abóbada, caíam em chuva e, conforme fossem mais ou
menos largas as frestas, a chuva era branda, torrencial ou
diluviana.
6. A ignorância completa do conjunto do universo e das
leis que o regem, da natureza, da constituição e da destinação dos astros, que, aliás, pareciam tão pequenos, comparativamente à Terra, fez necessariamente fosse esta considerada como a coisa principal, o fim único da criação e os
astros como acessórios, exclusivamente criados em intenção dos seus habitantes. Esse preconceito se perpetuou até
aos nossos dias, apesar das descobertas da ciência, que
mudaram, para o homem, o aspecto do mundo. Quanta
gente ainda acredita que as estrelas são ornamentos do
céu, destinados a recrear a vista dos habitantes da Terra!
7. Não tardou, porém, se apercebessem do movimento aparente das estrelas, que se deslocam em massa do oriente
para o ocidente, despontando ao anoitecer e ocultando-se
pela manhã, e conservando suas respectivas posições. Semelhante observação, contudo, não teve, durante longo tempo, outra consequência que não fosse a de confirmar a ideia de uma abóbada sólida, a arrastar consigo as estrelas, no
seu movimento de rotação. Essas ideias primárias, simplistas, constituíram, no
curso de largos períodos seculares, o fundo das crenças religiosas e serviram de base a todas as cosmogonias antigas.
8. Mais tarde, pela direção do movimento das estrelas e pelo
periódico retorno delas, na mesma ordem, percebeu-se
que a abóbada celeste não podia ser apenas uma semiesfera posta sobre a Terra, mas uma esfera inteira, oca, em
cujo centro se achava a Terra, sempre chata, ou, quando
muito, convexa e habitada somente na superfície superior.
Já era um progresso.
Mas, qual o suporte da Terra? Fora inútil mencionar
todas as suposições ridículas, geradas pela imaginação,
desde a dos indianos, que a diziam suportada por quatro
elefantes brancos, pousados estes sobre as asas de um
imenso abutre. Os mais sensatos confessavam que nada
sabiam a respeito.
9. Entretanto, uma opinião geralmente espalhada nas teogonias pagãs situava nos lugares baixos, ou, por outra, nas
profundezas da Terra, ou debaixo desta, não sabia bem, a
morada dos réprobos, chamada
inferno, isto é, lugares inferiores, e nos lugares altos, além da região das estrelas, a
morada dos bem-aventurados. A palavra
inferno se conservou até aos nossos dias, se bem haja perdido a significação
etimológica, desde que a geologia retirou das entranhas da
Terra o lugar dos suplícios eternos e a astronomia demonstrou que no espaço infinito não há baixo nem alto.
10. Sob o céu puro da Caldéia, da Índia e do Egito, berço
das mais antigas civilizações, o movimento dos astros foi
observado com tanta exatidão quanta o permitia a falta de
instrumentos especiais. Notou-se, primeiramente, que certas estrelas tinham movimento próprio, independente da
mesma, o que não consentia a suposição de que se achassem presas à abóbada. Chamaram-lhes
estrelas errantes
ou planetas, para distingui-las das estrelas fixas. Calcularam-se-lhes os movimentos e os retornos periódicos.
No movimento diurno da esfera estrelada, foi notada a
imobilidade da estrela Polar, em cujo derredor as outras
descreviam, em vinte e quatro horas, círculos oblíquos paralelos, uns maiores, outros menores, conforme a distância em que se encontravam da estrela central. Foi o primeiro passo para o conhecimento da obliquidade do eixo do
mundo. Viagens mais longas deram lugar a que se observasse a diferença dos aspectos do céu, segundo as latitudes e as estações. A verificação de que a elevação da Estrela
Polar acima do horizonte variava com a latitude, abriu
caminho para a percepção da redondeza da Terra. Foi assim que, pouco a pouco, chegaram a fazer uma ideia mais
exata do sistema do mundo.
Pelo ano 600 antes de J.C., Tales, de Mileto (Ásia Menor), descobriu a esfericidade da Terra, a obliquidade da
eclíptica e a causa dos eclipses.
Um século depois, Pitágoras, de Samos, descobre o movimento diurno da Terra, sobre o próprio eixo, seu movimento anual em torno do Sol, e incorpora os planetas e os
cometas ao sistema solar.
Hiparco, de Alexandria (Egito), 160 anos antes de J.C., inventa o astrolábio, calcula e prediz os eclipses, observa
as manchas do Sol, determina o ano trópico, a duração das
revoluções da Lua.
Embora preciosíssimas para o progresso da ciência,
essas descobertas levaram perto de 2.000 anos a se popularizarem. Não dispondo então senão de raros manuscritos
para se propagarem, as ideias novas permaneciam como
patrimônio de alguns filósofos, que as ensinavam a discípulos privilegiados. As massas, que ninguém cuidava de esclarecer, nenhum proveito tiravam delas e continuavam a nutrir-se das velhas crenças.
11. Por cerca do ano 140 da era cristã, Ptolomeu, um dos homens mais ilustres da Escola de Alexandria, combinando
suas próprias ideias com as crenças vulgares e com algumas das mais recentes descobertas astronômicas, compôs
um sistema que se pode qualificar de misto, que traz o seu
nome e que, por perto de quinze séculos, foi o único que o
mundo civilizado adotou.
Segundo o sistema de Ptolomeu, a Terra é uma esfera
posta no centro do universo e composta de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Essa a primeira região, dita
elementar. A segunda região, dita etérea, compreendia onze
céus, ou esferas concêntricas, a girar em torno da Terra, a
saber: o céu da Lua, os de Mercúrio, de Vênus, do Sol, de
Marte, de Júpiter, de Saturno, das estrelas fixas, do primeiro cristalino, esfera sólida transparente; do segundo
cristalino e, finalmente, do primeiro móvel, que dava movimento a todos os céus inferiores e os obrigava a fazer uma
revolução em vinte e quatro horas. Para além dos onze céus
estava o
Empíreo, habitação dos bem-aventurados, denominação tirada do grego pyr ou pur, que significa fogo, porque se acreditava que essa região resplandecia de luz, como
o fogo.
Por longo tempo prevaleceu a crença em muitos céus
superpostos, cujo número, entretanto, variava. O sétimo
era geralmente tido como o mais elevado, donde a expressão:
ser arrebatado ao sétimo céu. São Paulo disse que fora
elevado ao terceiro céu.
Afora o movimento comum, os astros, segundo Ptolomeu, tinham movimentos próprios, mais ou menos dilatados, conforme a distância em que se achavam do centro.
As estrelas fixas faziam uma revolução em 25.816 anos,
avaliação esta que denota conhecimento da precessão dos
equinócios, que se realiza em 25.868 anos.
12. No começo do século dezesseis, Copérnico, astrônomo
célebre, nascido em Thorn (Prússia), no ano de 1472 e morto
no de 1543, reconsiderou as ideias de Pitágoras e concebeu
um sistema que, confirmado todos os dias por novas observações, teve acolhimento favorável e não tardou a
desbancar o de Ptolomeu. Segundo o sistema de Copérnico, o Sol está no centro e ao seu derredor os astros descrevem órbitas circulares, sendo a Lua um satélite da Terra.
Decorrido um século, em 1609, Galileu, natural de Florença, inventa o telescópio; em 1610, descobre os quatro satélites de Júpiter e lhe calcula as revoluções; reconhece
que os planetas não têm luz própria como as estrelas, mas
que são iluminados pelo Sol; que são esferas semelhantes
à Terra; observa-lhes as fases e determina o tempo que duram as rotações deles em torno de seus eixos, oferecendo
assim, por provas materiais, sanção definitiva ao sistema
de Copérnico.
Ruiu então a construção dos céus superpostos; reconheceu-se que os planetas são mundos semelhantes à Terra e, sem dúvida, habitados, como esta; que as estrelas são inumeráveis sóis, prováveis centros de outros tantos sistemas planetários, sendo o próprio Sol reconhecido como uma
estrela, centro de um turbilhão de planetas que se lhe acham
sujeitos.
As estrelas deixaram de estar confinadas numa zona da
esfera celeste, para estarem irregularmente disseminadas pelo
espaço sem limites, encontrando-se a distâncias incomensuráveis umas das outras as que parecem tocar-se,
sendo as aparentemente menores as mais afastadas de nós
e as maiores as que nos estão mais perto, porém, ainda
assim, a centenas de bilhões de léguas.
Os grupos que tomaram o nome de constelações mais não
são do que agregados aparentes, causados pela distância;
suas figuras não passam de efeitos de perspectiva, como as
que as luzes espalhadas por uma vasta planície, ou as árvores de uma floresta formam, aos olhos de quem as observa colocado num ponto fixo. Na realidade, porém, tais agrupamentos não existem. Se nos pudéssemos transportar para
a reunião dessas constelações, à medida que nos aproximássemos dela, a sua forma se desmancharia e novos
grupos se nos desenhariam à vista.
Ora, não existindo esses agrupamentos senão na aparência, é ilusória a significação que uma supersticiosa crença
vulgar lhe atribui e somente na imaginação pode existir.
Para se distinguirem as constelações, deram-se-lhes
nomes como estes:
Leão, Touro, Gêmeos, Virgem, Balança,
Capricórnio, Câncer, Órion, Hércules, Grande Ursa
ou Carro
de David, Pequena Ursa, Lira,
etc., e, para representá-las,
atribuíram-se-lhes as formas que esses nomes lembram, fantasiosas em sua maioria, e em nenhum caso guardando qualquer relação com os grupos de estrelas assim
chamados. Fora, pois, inútil procurar no céu tais formas.
A crença na influência das constelações, sobretudo das
que constituem os doze signos do zodíaco, proveio da ideia
ligada aos nomes que elas trazem. Se à que se chama
leão
fosse dada o nome de asno ou de ovelha, certamente lhe
teriam atribuído outra influência.
13. A partir de Copérnico e Galileu, as velhas cosmogonias
deixaram para sempre de subsistir. A astronomia só podia
avançar, não recuar. A História diz das lutas que esses homens de gênio tiveram de sustentar contra os preconceitos
e, sobretudo, contra o espírito de seita, interessado em
manter erros sobre os quais se haviam fundado crenças,
supostamente firmadas em bases inabaláveis. Bastou a invenção de um instrumento de óptica para derrocar uma
construção de muitos milhares de anos. Nada, é claro, poderia prevalecer contra uma verdade reconhecida como tal.
Graças à tipografia, o público, iniciado nas novas ideias,
entrou a não se deixar embalar com ilusões e tomou parte
na luta. Já não era contra indivíduos que os sustentadores
das velhas ideias tinham de combater, mas contra a
opinião geral, que esposava a causa da verdade.
Quão grande é o universo em face das mesquinhas
proporções que nossos pais lhe assinavam! Quanto é sublime a obra de Deus, desde que a vemos realizar-se conformemente às eternas leis da natureza! Mas, também, quanto tempo, que de esforços do gênio, que de devotamentos se fizeram necessários para descerrar os olhos às criaturas e arrancar-lhes, afinal, a venda da ignorância!
14. Estava desde então aberto o caminho em que ilustres e
numerosos sábios iam entrar, a fim de completarem a obra
encetada. Na Alemanha, Kepler descobre as célebres leis
que lhe conservam o nome e por meio das quais se reconhece que as órbitas que os planetas descrevem não são
circulares, mas elipses, um de cujos focos o Sol ocupa.
Newton, na Inglaterra, descobre a lei da gravitação universal. Laplace, na França, cria a mecânica celeste. Finalmente, a astronomia deixa de ser um sistema fundado em conjeturas ou probabilidades e torna-se uma ciência assente
nas mais rigorosas bases, as do cálculo e da geometria.
Fica assim lançada uma das pedras fundamentais da
Gênese, cerca de 3.300 anos depois de Moisés.