CAPÍTULO XV
OS MILAGRES DO EVANGELHO
Superioridade da natureza de Jesus. — Sonhos. — Estrela dos magos. — Dupla vista. — Curas. — Possessos. — Ressurreições. — Jesus caminha sobre a água. — Transfiguração. — Tempestade aplacada. — Bodas de Caná. — Multiplicação dos pães. — Tentação de Jesus. — Prodígios por ocasião da morte de Jesus. — Aparição de Jesus, após sua morte. — Desaparecimento do corpo de Jesus.
Superioridade da natureza de Jesus.
1. Os fatos que o Evangelho relata e que foram até hoje
considerados milagrosos pertencem, na sua maioria, à ordem
dos fenômenos psíquicos, isto é, dos que têm como
causa primária as faculdades e os atributos da alma. Confrontando-os com os que ficaram descritos e explicados no
capítulo precedente, reconhecer-se-á sem dificuldade que
há entre eles identidade de causa e de efeito. A História
registra outros análogos, em todos os tempos e no seio de
todos os povos, pela razão de que, desde que há almas encarnadas
e desencarnadas, os mesmos efeitos forçosamente
se produziram. Pode-se, é certo, contestar, no que
concerne a este ponto, a veracidade da História; mas, hoje,
eles se produzem às nossas vistas e, por assim dizer, à vontade
e por indivíduos que nada têm de excepcionais. O só
fato da reprodução de um fenômeno, em condições idênticas,
basta para provar que ele é possível e se acha submetido
a uma lei, não sendo, portanto, miraculoso.
O princípio dos fenômenos psíquicos repousa, como já
vimos, nas propriedades do fluido perispiritual, que constitui
o agente magnético; nas manifestações da vida espiritual
durante a vida corpórea e depois da morte; e, finalmente,
no estado constitutivo dos Espíritos e no papel que
eles desempenham como força ativa da natureza. Conhecidos
estes elementos e comprovados os seus efeitos, tem-se,
como consequência, de admitir a possibilidade de certos
fatos que eram rejeitados enquanto se lhes atribuía uma
origem sobrenatural.
2. Sem nada prejulgar quanto à natureza do Cristo, natureza
cujo exame não entra no quadro desta obra, considerando-o
apenas um Espírito superior, não podemos deixar
de reconhecê-lo um dos de ordem mais elevada e colocado,
por suas virtudes, muitíssimo acima da humanidade terrestre.
Pelos imensos resultados que produziu, a sua encarnação
neste mundo forçosamente há de ter sido uma dessas missões que a Divindade somente a seus mensageiros
diretos confia, para cumprimento de seus desígnios.
Mesmo sem supor que ele fosse o próprio Deus, mas unicamente
um enviado de Deus para transmitir sua palavra aos
homens, seria mais do que um profeta, porquanto seria um
Messias divino.
Como homem, tinha a organização dos seres carnais;
porém, como Espírito puro, desprendido da matéria, havia
de viver mais da vida espiritual, do que da vida corporal, de
cujas fraquezas não era passível. A sua superioridade com
relação aos homens não derivava das qualidades particulares
do seu corpo, mas das do seu Espírito, que dominava
de modo absoluto a matéria e da do seu perispírito, tirado
da parte mais quintessenciada dos fluidos terrestres (cap.
XIV, n.º 9). Sua alma, provavelmente, não se achava presa
ao corpo, senão pelos laços estritamente indispensáveis.
Constantemente desprendida, ela decerto lhe dava dupla
vista, não só permanente, como de excepcional penetração
e superior de muito à que de ordinário possuem os homens
comuns. O mesmo havia de dar-se, nele, com relação a
todos os fenômenos que dependem dos fluidos perispirituais
ou psíquicos. A qualidade desses fluidos lhe conferia imensa
forca magnética, secundada pelo incessante desejo de
fazer o bem.
Agiria como médium nas curas que operava? Poder-se-á considerá-lo poderoso médium curador? Não, porquanto
o médium é um intermediário, um instrumento de que
se servem os Espíritos desencarnados e o Cristo não precisava
de assistência, pois que era ele quem assistia os outros.
Agia por si mesmo, em virtude do seu poder pessoal, como o podem fazer, em certos casos, os encarnados, na
medida de suas forças. Que Espírito, ao demais, ousaria
insuflar-lhe seus próprios pensamentos e encarregá-lo de
os transmitir? Se algum influxo estranho recebia, esse só
de Deus lhe poderia vir. Segundo definição dada por um
Espírito, ele era médium de Deus.
Sonhos.
3. José, diz o Evangelho, foi avisado por um anjo, que lhe apareceu
em sonho e que lhe aconselhou fugisse para o Egito com o
Menino. (S. Mateus, 2:19–23.)
Os avisos por meio de sonhos desempenham grande
papel nos livros sagrados de todas as religiões. Sem garantir
a exatidão de todos os fatos narrados e sem os discutir, o
fenômeno em si mesmo nada tem de anormal, sabendo-se,
como se sabe, que, durante o sono, é quando o Espírito,
desprendido dos laços da matéria, entra momentaneamente
na vida espiritual, onde se encontra com os que lhe são
conhecidos. É com frequência essa a ocasião que os Espíritos
protetores aproveitam para se manifestar a seus protegidos
e lhes dar conselhos mais diretos. São numerosos os
casos de avisos em sonho, porém, não se deve inferir daí
que todos os sonhos são avisos, nem, ainda menos, que
tem uma significação tudo o que se vê em sonho. Cumpre
se inclua entre as crenças supersticiosas e absurdas a arte
de interpretar os sonhos. (Cap. XIV, n.
os 27 e 28.)
Estrela dos magos.
4. Diz-se que uma estrela apareceu aos magos que foram adorar
a Jesus; que ela lhes ia à frente indicando-lhes o caminho e que
se deteve quando eles chegaram. (S. Mateus, 2:1–12.)
Não se trata de saber se o fato que S. Mateus narra é
real, ou se não passa de uma figura indicativa de que os
magos foram guiados de forma misteriosa ao lugar onde
estava o Menino, dado que não há meio algum de verificação; trata-se de saber se é possível um fato de tal natureza.
O que é certo é que, naquela circunstância, a luz não
podia ser uma estrela. Na época em que o fato ocorreu, era
possível acreditassem que fosse, porquanto então se cria
serem as estrelas pontos luminosos pregados no firmamento
e suscetíveis de cair sobre a Terra; não hoje, quando se
conhece a natureza das estrelas.
Entretanto, por não ter como causa a que lhe atribuíram, não deixa de ser possível o fato da aparição de uma
luz com o aspecto de uma estrela. Um Espírito pode aparecer
sob forma luminosa, ou transformar uma parte do seu
fluido perispirítico em foco luminoso. Muitos fatos desse
gênero, modernos e perfeitamente autênticos, não procedem
de outra causa, que nada apresenta de sobrenatural.
(Cap. XIV, n.
os 13 e seguintes.)
Dupla vista.
— Entrada de Jesus em Jerusalém.
5. Quando eles se aproximaram de Jerusalém e chegaram a
Betfagé, perto do Monte das Oliveiras, Jesus enviou dois de seus discípulos, dizendo-lhes: — Ide a essa aldeia que está à vossa
frente e, lá chegando, encontrareis amarrada uma jumenta e junto
dela o seu jumentinho; desamarrai-a e trazei-mos. — Se alguém
vos disser qualquer coisa, respondei que o Senhor precisa deles e
logo deixará que os conduzais. — Ora, tudo isso se deu, a fim de
que se cumprisse esta palavra do profeta: — Dizei à filha de Sião:
Eis o teu rei, que vem a ti, cheio de doçura, montado numa jumenta
e com o jumentinho da que está sob o jugo. (Zacarias, 9:9–10.)
Os discípulos então foram e fizeram o que Jesus lhes ordenara.
— E, tendo trazido a jumenta e o jumentinho, a cobriram
com suas vestes e o fizeram montar. (S. Mateus, 21:1–7.)
— Beijo de Judas.
6. Levantai-vos, vamos, que já esta perto daqui aquele que me há
de trair. — Ainda não acabara de dizer essas palavras e eis que
Judas, um dos doze, chegou e com ele uma tropa de gente armada
de espadas e paus, enviada pelos príncipes dos sacerdotes e
pelos anciãos do povo. — Ora, o que o traía lhes havia dado um
sinal para o reconhecerem, dizendo-lhes: Aquele a quem eu beijar
é esse mesmo o que procurais; apoderai-vos dele. — Logo,
pois, se aproximou de Jesus e lhe disse: Mestre, eu te saúdo; e o
beijou. — Jesus lhe respondeu: Meu amigo, que vieste fazer aqui?
Ao mesmo tempo, os outros, avançando, se lançaram a Jesus e
dele se apoderaram. (S. Mateus, 26:46–50.)
— Pesca milagrosa.
7. Um dia, estando Jesus à margem do lago de Genesaré, como a
multidão de povo o comprimisse para ouvir a palavra de Deus —
viu ele duas barcas atracadas à borda do lago e das quais os
pescadores haviam desembarcado e lavavam suas redes. — Entrou
numa dessas barcas, que era de Simão, e lhe pediu que a afastasse um pouco da margem; e, tendo-se sentado, ensinava ao
povo de dentro da barca.
Quando acabou de falar, disse a Simão: Avança para o mar
e lança as tuas redes de pescar. — Respondeu-lhe Simão: Mestre,
trabalhamos a noite toda e nada apanhamos; contudo, pois que
mandas, lançarei a rede. — Tendo-a lançado, apanharam tão grande
quantidade de peixes, que a rede se rompeu. — Acenaram
para os companheiros que estavam na outra barca, a fim de que
viessem ajudá-los. Eles vieram e encheram de tal modo as barcas,
que por pouco estas não se submergiram. (S. Lucas, 5:1–7.)
— Vocação de Pedro, André, Tiago, João e Mateus.
8. Caminhando ao longo do mar da Galileia, viu Jesus dois irmãos,
Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão, que lançavam
suas redes ao mar, pois que eram pescadores; — e lhes disse:
Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens. — Logo eles
deixaram suas redes e o seguiram. — Daí, continuando, viu ele dois outros irmãos, Tiago, filho de
Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam numa barca com
Zebedeu, pai de ambos, os quais estavam a consertar suas redes,
e os chamou. — Eles imediatamente deixaram as redes e o pai e o
seguiram. (S. Mateus, 4:18–22.)
Saindo dali, Jesus, ao passar, viu um homem sentado à
banca dos impostos, chamado Mateus, ao qual disse: Segue-me; e o homem logo se levantou e o seguiu. (S. Mateus, 4:9.)
9. Nada apresentam de surpreendentes estes fatos, desde
que se conheça o poder da dupla vista e a causa, muito
natural, dessa faculdade. Jesus a possuía em grau elevado e pode dizer-se que ela constituía o seu estado normal, conforme
o atesta grande número de atos da sua vida, os quais,
hoje, têm a explicá-los os fenômenos magnéticos e o
Espiritismo.
A pesca qualificada de miraculosa igualmente se explica
pela dupla vista. Jesus não produziu espontaneamente
peixes onde não os havia; ele viu, com a vista da alma,
como teria podido fazê-lo um lúcido vígil, o lugar onde se
achavam os peixes e disse com segurança aos pescadores
que lançassem aí suas redes.
A acuidade do pensamento e, por conseguinte, certas
previsões decorrem da vista espiritual. Quando Jesus chama
a si Pedro, André, Tiago, João e Mateus, é que lhes
conhecia as disposições íntimas e sabia que eles o acompanhariam
e que eram capazes de desempenhar a missão que
tencionava confiar-lhes. E mister se fazia que eles próprios
tivessem intuição da missão que iriam desempenhar para,
sem hesitação, atenderem ao chamamento de Jesus. O mesmo
se deu quando, por ocasião da Ceia, ele anunciou que
um dos doze o trairia e o apontou, dizendo ser aquele que
punha a mão no prato; e deu-se também, quando predisse
que Pedro o negaria.
Em muitos passos do Evangelho se lê: “Mas Jesus, conhecendo-lhes
os pensamentos, lhes diz. . .” Ora, como poderia
ele conhecer os pensamentos dos seus interlocutores, senão
pelas irradiações fluídicas desses pensamentos e, ao
mesmo tempo, pela vista espiritual que lhe permitia ler-lhes
no foro íntimo?
Muitas vezes, supondo que um pensamento se acha
sepultado nos refolhos da alma, o homem não suspeita que traz em si um espelho onde se reflete aquele pensamento,
um revelador na sua própria irradiação fluídica, impregnada
dele. Se víssemos o mecanismo do mundo invisível que
nos cerca, as ramificações dos fios condutores do pensamento,
a ligarem todos os seres inteligentes, corporais e
incorpóreos, os eflúvios fluídicos carregados das marcas do
mundo moral, os quais, como correntes aéreas, atravessam
o espaço, muito menos surpreendidos ficaríamos diante
de certos efeitos que a ignorância atribui ao acaso.
(Cap. XIV, n.
os 15, 22 e seguintes.)
Curas.
— Perda de sangue.
10. Então, uma mulher, que havia doze anos sofria de uma hemorragia;
— que sofrera muito nas mãos dos médicos e que, tendo
gasto todos os seus haveres, nenhum alívio conseguira — como
ouvisse falar de Jesus, veio com a multidão atrás dele e lhe tocou
as vestes, porquanto, dizia: Se eu conseguir ao menos lhe tocar
nas vestes, ficarei curada. — No mesmo instante o fluxo sanguíneo lhe cessou e ela sentiu em seu corpo que estava curada
daquela enfermidade.
Logo, Jesus, conhecendo em si mesmo a virtude que dele
saíra, se voltou no meio da multidão e disse: Quem me tocou as
vestes? — Seus discípulos lhe disseram: Vês que a multidão te
aperta de todos os lados e perguntas quem te tocou? — Ele
olhava em torno de si à procura daquela que o tocara.
A mulher, que sabia o que se passara em si, tomada de medo
e pavor, veio lançar-se-lhe aos pés e lhe declarou toda a verdade.
— Disse-lhe Jesus: Minha filha, tua fé te salvou; vai em paz e fica
curada da tua enfermidade. (S. Marcos, 5:25–34.)
11. Estas palavras: conhecendo em si mesmo a virtude que
dele saíra, são significativas. Exprimem o movimento fluídico
que se operara de Jesus para a doente; ambos experimentaram
a ação que acabara de produzir-se. É de notar-se
que o efeito não foi provocado por nenhum ato da vontade
de Jesus; não houve magnetização, nem imposição das mãos.
Bastou a irradiação fluídica normal para realizar a cura.
Mas, por que essa irradiação se dirigiu para aquela
mulher e não para outras pessoas, uma vez que Jesus não
pensava nela e tinha a cercá-lo a multidão?
É bem simples a razão. Considerado como matéria terapêutica,
o fluido tem que atingir a matéria orgânica, a
fim de repará-la; pode então ser dirigido sobre o mal pela
vontade do curador, ou atraído pelo desejo ardente, pela
confiança, numa palavra: pela fé do doente. Com relação à
corrente fluídica, o primeiro age como uma bomba calcante
e o segundo como uma bomba aspirante. Algumas vezes, é
necessária a simultaneidade das duas ações; doutras, basta
uma só. O segundo caso foi o que ocorreu na circunstância
de que tratamos.
Razão, pois, tinha Jesus para dizer: Tua fé te salvou.
Compreende-se que a fé a que ele se referia não é uma
virtude mística, qual a entendem muitas pessoas, mas uma
verdadeira força atrativa, de sorte que aquele que não a
possui opõe à corrente fluídica uma força repulsiva, ou,
pelo menos, uma força de inércia, que paralisa a ação. Assim
sendo, também, se compreende que, apresentando-se
ao curador dois doentes da mesma enfermidade, possa um ser curado e outro não. É este um dos mais importantes
princípios da mediunidade curadora e que explica certas
anomalias aparentes, apontando-lhes uma causa muito
natural. (Cap. XIV, n.
os 31, 32 e 33.)
— Cego de Betsaida.
12. Tendo chegado a Betsaida, trouxeram-lhe um cego e lhe pediam
que o tocasse. Tomando o cego pela mão, ele o levou para
fora do burgo, passou-lhe saliva nos olhos e, havendo-lhe imposto
as mãos, lhe perguntou se via alguma coisa. — O homem,
olhando, disse: Vejo a andar homens que me parecem árvores. —
Jesus lhe colocou de novo as mãos sobre os olhos e ele começou a
ver melhor. Afinal, ficou tão perfeitamente curado, que via distintamente
todas as coisas. — Ele o mandou para casa, dizendo-lhe:
Vai para tua casa; se entrares no burgo, a ninguém digas o que se
deu contigo. (S. Marcos, 8:22–26.)
13. Aqui, é evidente o efeito magnético; a cura não foi instantânea,
porém gradual e consequente a uma ação prolongada
e reiterada, se bem que mais rápida do que na
magnetização ordinária. A primeira sensação que o homem
teve foi exatamente a que experimentam os cegos ao recobrarem
a vista. Por um efeito de óptica, os objetos lhes
parecem de tamanho exagerado.
— Paralítico.
14. Tendo subido para uma barca, Jesus atravessou o lago e veio
à sua cidade (Cafarnaum). — Como lhe apresentassem um paralítico deitado em seu leito, Jesus, notando-lhe a fé, disse
ao paralítico: Meu filho, tem confiança; perdoados te são os teus
pecados.
Logo alguns escribas disseram entre si: Este homem blasfema.
— Jesus, tendo percebido o que eles pensavam, perguntou-lhes: Por que alimentais maus pensamentos em vossos corações? — Pois, que é mais fácil dizer: — Teus pecados te são
perdoados, ou dizer: Levanta-te e anda?
Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na Terra o
poder de remitir os pecados: Levanta-te, disse então ao paralítico,
toma o teu leito e vai para tua casa.
O paralítico se levantou imediatamente e foi para sua casa.
Vendo aquele milagre, o povo se encheu de temor e rendeu graças
a Deus, por haver concedido tal poder aos homens. (S. Mateus,
9:1–8.)
15. Que significariam aquelas palavras: “Teus pecados te
são remitidos” e em que podiam elas influir para a cura? O
Espiritismo lhes dá a explicação, como a uma infinidade de
outras palavras incompreendidas até hoje. Por meio da pluralidade
das existências, ele ensina que os males e aflições
da vida são muitas vezes expiações do passado, bem como
que sofremos na vida presente as consequências das faltas
que cometemos em existência anterior e, assim, até que
tenhamos pago a dívida de nossas imperfeições, pois que
as existências são solidárias umas com as outras.
Se, portanto, a enfermidade daquele homem era uma
expiação do mal que ele praticara, o dizer-lhe Jesus: “Teus
pecados te são remitidos” equivalia a dizer-lhe: “Pagaste a tua dívida; a fé que agora possuis elidiu a causa da tua
enfermidade; conseguintemente, mereces ficar livre dela.”
Daí o haver dito aos escribas: “Tão fácil é dizer: Teus pecados
te são perdoados, como: Levanta-te e anda.” Cessada a
causa, o efeito tem que cessar. É precisamente o caso do
encarcerado a quem se declara: “Teu crime está expiado e
perdoado”, o que equivaleria a se lhe dizer: “Podes sair da
prisão.”
— Os dez leprosos.
16. Um dia, indo ele para Jerusalém, passava pelos confins da
Samaria e da Galileia — e, estando prestes a entrar numa aldeia,
dez leprosos vieram ao seu encontro e, conservando-se afastados,
clamaram em altas vozes: Jesus, Senhor nosso, tem piedade
de nós. — Dando com eles, disse-lhes Jesus: Ide mostrar-vos aos
sacerdotes. Quando iam a caminho, ficaram curados. — Um deles, vendo-se curado, voltou sobre seus passos, glorificando
a Deus em altas vozes; — e foi lançar-se aos pés de
Jesus, com o rosto em terra, a lhe render graças. Esse
era samaritano. — Disse então Jesus: Não foram curados todos dez? Onde estão
os outros nove? — Nenhum deles houve que voltasse e glorificasse
a Deus, a não ser este estrangeiro? — E disse a esse:
Levanta-te; vai; tua fé te salvou. (S. Lucas, 17:11–19.)
17. Os samaritanos eram cismáticos, mais ou menos como
os protestantes com relação aos católicos, e os judeus os
tinham em desprezo, como heréticos. Curando indistintamente
os judeus e os samaritanos, dava Jesus, ao mesmo
tempo, uma lição e um exemplo de tolerância; e fazendo ressaltar que só o samaritano voltara a glorificar a Deus,
mostrava que havia nele maior soma de verdadeira fé e de
reconhecimento, do que nos que se diziam ortodoxos. Acrescentando:
“Tua fé te salvou”, fez ver que Deus considera o
que há no âmago do coração e não a forma exterior da
adoração. Entretanto, também os outros tinham sido curados.
Fora mister que tal se verificasse, para que ele pudesse
dar a lição que tinha em vista e tornar-lhes evidente a
ingratidão. Quem sabe, porém, o que daí lhes haja resultado;
quem sabe se eles terão se beneficiado da graça que lhes
foi concedida? Dizendo ao samaritano: “Tua fé te salvou”, dá
Jesus a entender que o mesmo não aconteceu aos outros.
— Mão seca.
18. Doutra vez entrou Jesus no templo e aí encontrou um homem
que tinha seca uma das mãos. — E eles o observavam para
ver se ele o curaria em dia de sábado, para terem um motivo de o
acusar. — Então, disse ele ao homem que tinha a mão seca: Levanta-te
e coloca-te ali no meio. — Depois, disse-lhes: É permitido
em dia de sábado fazer o bem ou mal, salvar a vida ou tirá-la?
Eles permaneceram em silêncio. — Ele, porém, encarando-os com
indignação, tanto o afligia a dureza de seus corações, disse ao
homem: Estende a tua mão. Ele a estendeu e ela se tornou sã. — Logo os fariseus saíram e se reuniram contra ele em
conciliábulo com os herodianos, sobre o meio de o perderem. —
Mas, Jesus se retirou com seus discípulos para o mar, acompanhando-o
grande multidão de povo da Galileia e da Judéia — de
Jerusalém, da Idumeia e de além Jordão; e os das cercanias de
Tiro e de Sídon, tendo ouvido falar das coisas que ele fazia,
vieram em grande número ao seu encontro. (S. Marcos, 3:1–8.)
— A mulher curvada.
19. Todos os dias de sábado Jesus ensinava numa sinagoga. —
Um dia, viu ali uma mulher possuída de um Espírito que a punha
doente, havia dezoito anos; era tão curvada, que não podia olhar
para cima. — Vendo-a, Jesus a chamou e lhe disse: Mulher, estás
livre da tua enfermidade. — Impôs-lhe ao mesmo tempo as mãos
e ela, endireitando-se, rendeu graças a Deus. — Mas, o chefe da sinagoga, indignado por haver Jesus feito
uma cura em dia de sábado, disse ao povo: Há seis dias destinados
ao trabalho; vinde nesses dias para serdes curados e não nos
dias de sábado. — O Senhor, tomando a palavra, disse-lhe: Hipócrita, qual de
vós não solta da carga o seu boi ou seu jumento em dia de sábado
e não o leva a beber? — Por que então não se deveria libertar, em
dia de sábado, dos laços que a prendiam, esta filha de Abraão,
que Satanás conservara atada durante dezoito anos? — A estas palavras, todos os seus adversários ficaram confusos
e todo o povo encantado de vê-lo praticar tantas ações gloriosas.
(S. Lucas, 13:10–17.)
20. Este fato prova que naquela época a maior parte das
enfermidades era atribuída ao demônio e que todos confundiam,
como ainda hoje, os possessos com os doentes,
mas em sentido inverso, isto é, hoje, os que não acreditam
nos maus Espíritos confundem as obsessões com as
moléstias patológicas.
— O paralítico da piscina.
21. Depois disso, tendo chegado a festa dos judeus, Jesus foi a
Jerusalém. — Ora, havia em Jerusalém a piscina das ovelhas, que se chama em hebreu Betesda, a qual tinha cinco galerias —
onde, em grande número, se achavam deitados doentes, cegos,
coxos e os que tinham ressecados os membros, todos à espera de
que as águas fossem agitadas — Porque, o anjo do Senhor, em
certa época, descia àquela piscina e lhe movimentava a água e
aquele que fosse o primeiro a entrar nela, depois de ter sido movimentada
a água, ficava curado, qualquer que fosse a sua doença. — Ora, estava lá um homem que se achava doente havia trinta
e oito anos. — Jesus, tendo-o visto deitado e sabendo-o doente
desde longo tempo, perguntou-lhe: Queres ficar curado? — O
doente respondeu: Senhor, não tenho ninguém que me lance na
piscina depois que a água for movimentada; e, durante o tempo
que levo para chegar lá, outro desce antes de mim. — Disse-lhe
Jesus: Levanta-te, toma o teu leito e vai-te. — No mesmo instante
o homem se achou curado e, tomando de seu leito, pôs-se a
andar. Ora, aquele dia era um sábado. — Disseram então os judeus ao que fora curado: Não te é permitido
levares o teu leito. — Respondeu o homem: Aquele que me
curou disse: Toma o teu leito e anda. — Perguntaram-lhe eles
então: Quem foi esse que te disse: Toma o teu leito e anda?
— Mas, nem mesmo o que fora curado sabia quem o curara,
porquanto Jesus se retirara do meio da multidão que lá estava. — Depois, encontrando aquele homem no templo, Jesus lhe
disse: Vês que foste curado; não tornes de futuro a pecar, para
que te não aconteça coisa pior. — O homem foi ter com os judeus e lhes disse que fora Jesus
quem o curara. — Era por isso que os judeus perseguiam a Jesus,
porque ele fazia essas coisas em dia de sábado. — Então,
Jesus lhes disse: Meu Pai não cessa de obrar até ao presente e eu
também obro incessantemente. (S. João, 5:1–17.)
22. “Piscina” (da palavra latina piscis, peixe), entre os romanos,
eram chamados os reservatórios ou viveiros onde
se criavam peixes. Mais tarde, o termo se tornou extensivo
aos tanques destinados a banhos em comum.
A piscina de Betesda, em Jerusalém, era uma cisterna,
próxima ao Templo, alimentada por uma fonte natural,
cuja água parece ter tido propriedades curativas. Era, sem
dúvida, uma fonte intermitente que, em certas épocas, jorrava
com força, agitando a água. Segundo a crença vulgar,
esse era o momento mais propício às curas. Talvez que, na
realidade, ao brotar da fonte a água, mais ativas fossem as
suas propriedades, ou que a agitação que o jorro produzia
na água fizesse vir à tona a vasa salutar para algumas moléstias.
Tais efeitos são muito naturais e perfeitamente conhecidos
hoje; mas, então, as ciências estavam pouco adiantadas e
à maioria dos fenômenos incompreendidos se atribuíam uma
causa sobrenatural. Os judeus, pois, tinham a agitação da
água como devida à presença de um anjo e tanto mais
fundadas lhes pareciam essas crenças, quanto viam que,
naquelas ocasiões, mais curativa se mostrava a água.
Depois de haver curado aquele paralítico, disse-lhe
Jesus: “Para o futuro não tornes a pecar, a fim de que não
te aconteça coisa pior.” Por essas palavras, deu-lhe a entender
que a sua doença era uma punição e que, se ele não
se melhorasse, poderia vir a ser de novo punido e com mais
rigor, doutrina essa inteiramente conforme à do Espiritismo.
23. Jesus como que fazia questão de operar suas curas em
dia de sábado, para ter ensejo de protestar contra o rigorismo
dos fariseus no tocante à guarda desse dia. Queria mostrar-lhes que a verdadeira piedade não consiste na observância
das práticas exteriores e das formalidades; que a
piedade está nos sentimentos do coração. Justificava-se,
declarando: “Meu Pai não cessa de obrar até ao presente e
eu também obro incessantemente.” Quer dizer: Deus não
interrompe suas obras, nem sua ação sobre as coisas da
natureza, em dia de sábado. Ele não deixa de fazer que se
produza tudo quanto é necessário à vossa alimentação e à
vossa saúde; eu lhe sigo o exemplo.
— Cego de nascença.
24. Ao passar, viu Jesus um homem que era cego desde que
nascera; — e seus discípulos lhe fizeram esta pergunta: Mestre,
foi pecado desse homem, ou dos que o puseram no mundo, que
deu causa a que ele nascesse cego? — Jesus lhes respondeu: Não
é por pecado dele, nem dos que o puseram no mundo; mas, para
que nele se patenteiem as obras do poder de Deus. É preciso que
eu faça as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; vem
depois a noite, na qual ninguém pode fazer obras. — Enquanto
estou no mundo, sou a luz do mundo. — Tendo dito isso, cuspiu no chão e, havendo feito lama com a
sua saliva, ungiu com essa lama os olhos do cego — e lhe disse:
Vai lavar-te na piscina de Siloé, que significa Enviado. Ele foi,
lavou-se e voltou vendo claro. — Seus vizinhos e os que o viam antes a pedir esmolas diziam:
Não é este o que estava assentado e pedia esmola? Uns respondiam:
É ele; outros diziam: Não, é um que se parece com ele. O homem,
porém, lhes dizia: Sou eu mesmo. — Perguntaram-lhe então: Como
se te abriram os olhos? — Ele respondeu: Aquele homem que se
chama Jesus fez um pouco de lama e passou nos meus olhos, dizendo: Vai à piscina de Siloé e lava-te. Fui, lavei-me e vejo. —
Disseram-lhe: Onde está ele? Respondeu o homem: Não sei. — Levaram então aos fariseus o homem que estivera cego. —
Ora, fora num dia de sábado que Jesus fizera aquela lama e lhe
abrira os olhos. — Também os fariseus o interrogaram para saber como recobrara
a vista. Ele lhes disse: Ele me pôs lama nos olhos, eu me
lavei e vejo. — Ao que alguns fariseus retrucaram: Esse homem
não é enviado de Deus, pois que não guarda o sábado. Outros,
porém, diziam: Como poderia um homem mau fazer prodígios tais?
Havia, a propósito, dissensão entre eles. — Disseram de novo ao que fora cego: E tu, que dizes desse
homem que te abriu os olhos? Ele respondeu: Digo que é um
profeta. — Mas, os judeus não acreditaram que aquele homem
houvesse estado cego e que houvesse recobrado a vista, enquanto
não fizeram vir o pai e a mãe dele — e os interrogaram assim:
É este o vosso filho, que dizeis ter nascido cego? Como é que ele
agora vê? — O pai e a mãe responderam: Sabemos que esse é
nosso filho e que nasceu cego; — não sabemos, porém, como agora
vê e tampouco sabemos quem lhe abriu os olhos. Interrogai-o;
ele já tem idade, que responda por si mesmo. — Seu pai e sua mãe falavam desse modo, porque temiam os
judeus, visto que estes já haviam resolvido em comum que quem
quer que reconhecesse a Jesus como sendo o Cristo seria expulso
da sinagoga. — Foi o que obrigou o pai e a mãe do rapaz a responderem:
Ele já tem idade; interrogai-o. — Chamaram pela segunda vez o homem que estivera cego e lhe
disseram: Glorifica a Deus; sabemos que esse homem é um pecador.
Ele lhes respondeu: Se é um pecador, não sei, tudo o que sei é que estava cego e agora vejo. — Tornaram a perguntar-lhe: Que te
fez ele e como te abriu os olhos? — Respondeu o homem: Já vo-lo
disse e bem o ouvistes; por que quereis ouvi-lo segunda vez? Será
que queirais tornar-vos seus discípulos? — Ao que eles o carregaram
de injúrias e lhe disseram: Sê tu seu discípulo; quanto a
nós, somos discípulos de Moisés. — Sabemos que Deus falou a
Moisés, ao passo que este não sabemos donde saiu. — O homem lhes respondeu: É de espantar que não saibais
donde ele é e que ele me tenha aberto os olhos. — Ora, sabemos
que Deus não exalça os pecadores; mas, àquele que o honre e
faça a sua vontade, a esse Deus exalça. — Desde que o mundo
existe, jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a
um cego de nascença. — Se esse homem não fosse um enviado de
Deus, nada poderia fazer de tudo o que tem feito. — Disseram-lhe os fariseus: Tu és todo pecado, desde o ventre
de tua mãe, e queres ensinar-nos a nós? E o expulsaram.
(S. João, 9:1–34.)
25. Esta narrativa, tão simples e singela, traz em si evidente
o cunho da veracidade. Nada aí há de fantasista, nem de
maravilhoso. É uma cena da vida real apanhada em flagrante.
A linguagem do cego é exatamente a desses homens
simples, nos quais o bom-senso supre a falta de saber
e que retrucam com bonomia aos argumentos de seus
adversários, expendendo razões a que não faltam justeza,
nem oportunidade. O tom dos fariseus, por outro lado, é o
dos orgulhosos que nada admitem acima de suas inteligências
e que se enchem de indignação à só ideia de que um
homem do povo lhes possa fazer observações. Afora a cor
local dos nomes, dir-se-ia ser do nosso tempo o fato.
Ser expulso da sinagoga equivalia a ser posto fora da
Igreja. Era uma espécie de excomunhão. Os espíritas, cuja
doutrina é a do Cristo de acordo com o progresso das luzes
atuais, são tratados como os judeus que reconheciam em
Jesus o Messias. Excomungando-os, a Igreja os põe fora de
seu seio, como fizeram os escribas e os fariseus com os
seguidores do Cristo. Assim, aí está um homem que é expulso
porque não pode admitir seja um possesso do demônio aquele que o curara e porque rende graças a Deus pela
sua cura!
Não é o que fazem com os espíritas? Obter dos Espíritos
salutares conselhos, a reconciliação com Deus e com o
bem, curas, tudo isso é obra do diabo e sobre os que isso
conseguem lança-se anátema. Não se têm visto padres declararem,
do alto do púlpito, que é melhor uma pessoa conservar-se
incrédula do que recobrar a fé por meio do Espiritismo?
Não há os que dizem a doentes que estes não deviam
ter procurado curar-se com os espíritas que possuem esse
dom, porque esse dom é satânico? Não há os que pregam
que os necessitados não devem aceitar o pão que os espíritas
distribuem, por ser do diabo esse pão? Que outra coisa
diziam ou faziam os padres judeus e os fariseus? Aliás,
fomos avisados de que tudo hoje tem que se passar como
ao tempo do Cristo.
A pergunta dos discípulos — Foi algum pecado deste
homem que deu causa a que ele nascesse cego?
— revela que
eles tinham a intuição de uma existência anterior, pois, do
contrário, ela careceria de sentido, visto que um pecado somente pode ser causa de uma enfermidade de nascença,
se cometido antes do nascimento, portanto, numa existência
anterior. Se Jesus considerasse falsa semelhante ideia,
ter-lhes-ia dito: “Como houvera este homem podido pecar
antes de ter nascido?” Em vez disso, porém, diz que aquele
homem estava cego, não por ter pecado, mas para que nele
se patenteasse o poder de Deus, isto é, para que servisse de
instrumento a uma manifestação do poder de Deus. Se não
era uma expiação do passado, era uma provação apropriada
ao progresso daquele Espírito, porquanto Deus, que é
justo, não lhe imporia um sofrimento sem utilidade.
Quanto ao meio empregado para a sua cura, evidentemente
aquela espécie de lama feita de saliva e terra nenhuma
virtude podia encerrar, a não ser pela ação do fluido
curativo de que fora impregnada. É assim que as mais insignificantes
substâncias, como a água, por exemplo, podem
adquirir qualidades poderosas e efetivas, sob a ação
do fluido espiritual ou magnético, ao qual elas servem de
veículo, ou, se quiserem, de reservatório.
— Numerosas curas operadas por Jesus.
26. Jesus ia por toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando
o Evangelho do reino e curando todos os langores e todas
as enfermidades no meio do povo. — Tendo-se a sua reputação
espalhado por toda a Síria; traziam-lhe os que estavam doentes e
afligidos por dores e males diversos, os possessos, os lunáticos,
os paralíticos e ele a todos curava. — Acompanhava-o grande
multidão de povo da Galileia, de Decápolis, de Jerusalém, da
Judeia e de além Jordão. (S. Mateus, 4:23–25.)
27. De todos os fatos que dão testemunho do poder de Jesus,
os mais numerosos são, não há contestar, as curas.
Queria ele provar dessa forma que o verdadeiro poder é o
daquele que faz o bem; que o seu objetivo era ser útil e não
satisfazer à curiosidade dos indiferentes, por meio de
coisas extraordinárias.
Aliviando os sofrimentos, prendia a si as criaturas pelo
coração e fazia prosélitos mais numerosos e sinceros, do
que se apenas os maravilhasse com espetáculos para os
olhos. Daquele modo, fazia-se amado, ao passo que se se
limitasse a produzir surpreendentes fatos materiais, conforme
os fariseus reclamavam, a maioria das pessoas não
teria visto nele senão um feiticeiro, ou um mágico hábil,
que os desocupados iriam apreciar para se distraírem.
Assim, quando João Batista manda, por seus discípulos,
perguntar-lhe se ele era o Cristo, a sua resposta não
foi: “Eu o sou”, como qualquer impostor houvera podido
dizer. Tampouco lhes fala de prodígios, nem de coisas maravilhosas;
responde-lhes simplesmente: “Ide dizer a João:
os cegos veem, os doentes são curados, os surdos ouvem, o
Evangelho é anunciado aos pobres.” O mesmo era que dizer:
“Reconhecei-me pelas minhas obras; julgai da árvore
pelo fruto”, porquanto era esse o verdadeiro caráter da sua
missão divina.
28. O Espiritismo, igualmente, pelo bem que faz é que prova
a sua missão providencial. Ele cura os males físicos,
mas cura, sobretudo, as doenças morais e são esses os
maiores prodígios que lhe atestam a procedência. Seus mais
sinceros adeptos não são os que se sentem tocados pela observação de fenômenos extraordinários, mas os que dele
recebem a consolação para suas almas; os a quem liberta
das torturas da dúvida; aqueles a quem levantou o ânimo
na aflição, que hauriram forças na certeza, que lhes trouxe,
acerca do futuro, no conhecimento do seu ser espiritual
e de seus destinos. Esses os de fé inabalável, porque
sentem e compreendem.
Os que no Espiritismo unicamente procuram efeitos
materiais, não lhe podem compreender a força moral. Daí
vem que os incrédulos, que apenas o conhecem através de
fenômenos cuja causa primária não admitem, consideram
os espíritas meros prestidigitadores e charlatães. Não será,
pois, por meio de prodígios que o Espiritismo triunfará da
incredulidade será pela multiplicação dos seus benefícios
morais, porquanto, se é certo que os incrédulos não admitem
os prodígios, não menos certo é que conhecem, como
toda gente, o sofrimento e as aflições e ninguém recusa
alívio e consolação.
Possessos.
29. Vieram em seguida a Cafarnaum e Jesus, entrando primeiramente,
em dia de sábado, na sinagoga, os instruía. — Admiravam-se
da sua doutrina, porque ele os instruía como tendo autoridade
e não como os escribas. — Ora, achava-se na sinagoga um homem possesso de um
Espírito impuro, que exclamou: — Que há entre ti e nós, Jesus de
Nazaré? Vieste para nos perder? Sei quem és: és o santo de Deus.
— Jesus, porém, falando-lhe ameaçadoramente, disse: Cala-te e
sai desse homem. — Então, o Espírito impuro, agitando o homem
em violentas convulsões, saiu dele. — Ficaram todos tão surpreendidos que uns aos outros perguntavam:
Que é isto? Que nova doutrina é esta? Ele dá ordem
com império, até aos Espíritos impuros, e estes lhe obedecem.
(S. Marcos, 1:21–27.)
30. Tendo eles saído, apresentaram-lhe um homem mudo, possesso
do demônio. — Expulso o demônio o mudo falou e o povo,
tomado de admiração, dizia: Jamais se viu coisa semelhante em
Israel. — Mas os fariseus, ao contrário, diziam: É pelo príncipe dos
demônios que ele expele os demônios. (S. Mateus, 9:32–34.)
31. Quando ele foi vindo ao lugar onde estavam os outros discípulos, viu em torno destes uma grande multidão de pessoas e
muitos escribas que com eles disputavam. — Logo que deu com
Jesus, todo o povo se tomou de espanto e temor e correram todos
a saudá-lo. — Perguntou ele então: Sobre que disputáveis em assembleia?
— Um homem, do meio do povo, tomando a palavra, disse: Mestre,
trouxe-te meu filho, que está possesso de um Espírito mudo;
— em todo lugar onde dele se apossa, atira-o por terra e o menino
espuma, rilha os dentes e se torna todo seco. Pedi a teus discípulos
que o expulsassem, mas eles não puderam. — Disse-lhes Jesus: Oh! gente incrédula, até quando estarei
convosco? Até quando vos suportarei? Trazei-mo. — Trouxeram-lho
e ainda não havia ele posto os olhos em Jesus, e o Espírito entrou
a agitá-lo violentamente; ele caiu no chão e se pôs a rolar
espumando. — Jesus perguntou ao pai do menino: Desde quando isto lhe
sucede? — Desde pequenino, diz o pai. — E o Espírito o tem lançado, muitas vezes, ora à água, ora ao fogo, para fazê-lo perecer; se
alguma coisa puderes, tem compaixão de nós e socorre-nos. — Respondeu-lhe Jesus: Se puderes crer, tudo é possível àquele
que crê. — Logo exclamou o pai do menino, banhado em lágrimas:
Senhor, creio, ajuda-me na minha incredulidade. — Jesus, vendo que o povo acorria em multidão, falou em tom
de ameaça ao Espírito impuro, dizendo-lhe: Espírito surdo e mudo
sai desse menino e não entres mais nele. — Então, o Espírito,
soltando grande grito e agitando o menino em violentas convulsões,
saiu, ficando como morto o menino, de sorte que muitos
diziam que ele morrera. — Mas Jesus, tomando-lhe as mãos e
amparando-o, fê-lo levantar-se. — Quando Jesus voltou para casa, seus discípulos lhe perguntaram,
em particular: Por que não pudemos nós expulsar esse demônio?
— Ele respondeu: Os demônios desta espécie não podem
ser expulsos senão pela prece e pelo jejum. (S. Marcos, 9:13–28.)
32. Apresentaram-lhe então um possesso cego e mudo e ele o
curou, de modo que o possesso começou a falar e a ver: — Todo o
povo ficou presa de admiração e dizia: Não é esse o filho de David? — Mas os fariseus, isso ouvindo, diziam: Este homem expulsa
os demônios com o auxílio de Belzebu, príncipe dos demônios. — Jesus, conhecendo-lhes os pensamentos, disse-lhes: Todo
reino que se dividir contra si mesmo será arruinado e toda cidade
ou casa que se divide contra si mesma não pode subsistir. — Se
Satanás expulsa a Satanás, ele está dividido contra si mesmo,
como, pois, o seu reino poderá subsistir? — E, se é por Belzebu
que eu expulso os demônios, por quem os expulsarão vossos filhos?
Por isso, eles próprios serão os vossos juízes. — Se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, é que o reino de Deus
veio até vós. (S. Mateus, 12:22–28.)
33. Com as curas, as libertações de possessos figuram entre
os mais numerosos atos de Jesus. Alguns há, entre os
fatos dessa natureza, como os acima narrados, no n.º 30,
em que a possessão não é evidente. Provavelmente, naquela
época, como ainda hoje acontece, atribuía-se à influência
dos demônios todas as enfermidades cuja causa se não
conhecia, principalmente a mudez, a epilepsia e a catalepsia.
Outros há, todavia, em que nada tem de duvidosa a ação
dos maus Espíritos, casos esses que guardam com os de
que somos testemunhas tão frisante analogia, que neles se
reconhecem todos os sintomas de tal gênero de afecção. A
prova da participação de uma inteligência oculta, em tal
caso, ressalta de um fato material: são as múltiplas curas
radicais obtidas, nalguns centros espíritas, pela só evocação e doutrinação dos Espíritos obsessores, sem magnetização,
nem medicamentos e, muitas vezes, na ausência do
paciente e a grande distância deste. A imensa superioridade
do Cristo lhe dava tal autoridade sobre os Espíritos
imperfeitos, chamados então demônios, que lhe bastava
ordenar se retirassem para que não pudessem resistir a
essa injunção. (Cap. XIV, n.º 46.)
34. O fato de serem alguns maus Espíritos mandados meter-se
em corpos de porcos é o que pode haver de menos
provável. Aliás, seria difícil explicar a existência de tão numeroso
rebanho de porcos num país onde esse animal era
tido em horror e nenhuma utilidade oferecia para a alimentação.
Um Espírito, porque mau, não deixa de ser um Espírito humano, embora tão imperfeito que continue a fazer
mal, depois de desencarnar, como o fazia antes, e é contra
todas as leis da natureza que lhe seja possível fazer morada
no corpo de um animal. No fato, pois, a que nos referimos,
temos que reconhecer a existência de uma dessas
ampliações tão comuns nos tempos de ignorância e de superstição;
ou, então, será uma alegoria destinada a caracterizar
os pendores imundos de certos Espíritos.
35. Parece que, ao tempo de Jesus, eram em grande número,
na Judeia, os obsidiados e os possessos, donde a oportunidade
que ele teve de curar a muitos. Sem dúvida, os
Espíritos maus haviam invadido aquele país e causado uma
epidemia de possessões. (Cap. XlV, n.º 49.)
Sem apresentarem caráter epidêmico, as obsessões
individuais são muitíssimo frequentes e se apresentam sob
os mais variados aspectos que, entretanto, por um conhecimento
amplo do Espiritismo, facilmente se descobrem.
Podem, não raro, trazer consequências danosas à saúde,
seja agravando afecções orgânicas já existentes, seja
ocasionando-as. Um dia, virão a ser, incontestavelmente,
arroladas entre as causas patológicas que requerem, pela
sua natureza especial, especiais meios de tratamento.
Revelando a causa do mal, o Espiritismo rasga nova senda
à arte de curar e fornece à ciência meio de alcançar êxito
onde até hoje quase sempre vê malogrados seus esforços,
pela razão de não atender à primordial causa do mal.
(
O Livro dos Médiuns, 2.ª Parte, cap. XXIII.)
36. Os fariseus diziam que por influência dos demônios é
que Jesus expulsava os demônios; segundo eles, o bem que Jesus fazia era obra de Satanás; não refletiam que, se Satanás
expulsasse a si mesmo, praticaria rematada insensatez.
É de notar-se que os fariseus daquele tempo já pretendessem
que toda faculdade transcendente e, por esse motivo,
reputada sobrenatural, era obra do demônio, pois que, na
opinião deles, era do demônio que Jesus recebia o poder de
que dispunha. É esse mais um ponto de semelhança daquela
com a época atual e tal doutrina é ainda a que a
Igreja procura fazer que prevaleça hoje, contra as manifestações
espíritas.*
* Nem todos os teólogos, porém, adotam opiniões tão absolutas sobre
a doutrina demoníaca. Aqui está uma cujo valor o clero não pode
contestar, emitida por um eclesiástico, Monsenhor Freyssinous, bispo
de Hermópolis, na seguinte passagem das suas Conferências
sobre a religião, tomo 2.º, p. 341 (Paris, 1825):
“Se Jesus operasse seus milagres pelo poder do demônio, este
houvera trabalhado pela destruição do seu império e teria empregado
contra si próprio o seu poder. Certamente, um demônio que
procurasse destruir o reinado do vício para implantar o da virtude,
seria um demônio muito singular. Eis por que Jesus, para
repelir a absurda acusação dos judeus, lhes dizia: “Se opero prodígios em nome do demônio, o demônio está dividido consigo mesmo,
trabalha, conseguintemente, por se destruir a si próprio!” resposta
que não admite réplica.
É precisamente o argumento que os espíritas opõem aos que
atribuem ao demônio os bons conselhos que os Espíritos lhes dão.
O demônio agiria então como um ladrão profissional que restituísse
tudo o que houvesse roubado e exortasse os outros ladrões a se
tornarem pessoas honestas.
Ressurreições.
— A filha de Jairo.
37. Tendo Jesus passado novamente, de barca, para a outra
margem, logo que desembarcou, grande multidão se lhe apinhou
ao derredor. Então, um chefe de sinagoga, chamado Jairo veio ao
seu encontro e, ao aproximar-se dele, se lhe lançou aos pés, — a
suplicar com grande instância, dizendo: Tenho uma filha que está
no momento extremo; vem impor-lhe as mãos para a curar e lhe
salvar a vida. — Jesus foi com ele, acompanhado de grande multidão, que o
comprimia. — Quando Jairo ainda falava, vieram pessoas que lhe eram
subordinadas e lhe disseram: Tua filha está morta; por que hás
de dar ao Mestre o incômodo de ir mais longe? — Jesus, porém,
ouvindo isso, disse ao chefe da sinagoga: Não te aflijas, crê apenas.
— E a ninguém permitiu que o acompanhasse, senão a Pedro,
Tiago e João, irmão de Tiago. — Chegando à casa do chefe da sinagoga, viu ele uma aglomeração
confusa de pessoas que choravam e soltavam grandes gritos.
— Entrando, disse-lhes ele: Por que fazeis tanto alarido e por
que chorais? Esta menina não está morta, está apenas adormecida.
— Zombavam dele. Tendo feito que toda a gente saísse, chamou
o pai e mãe da menina e os que tinham vindo em sua companhia
e entrou no lugar onde a menina se achava deitada. —
Tomou-lhe a mão e disse: Talitha cumi, isto é: Minha filha, levanta-te,
eu to ordeno. — No mesmo instante a menina se levantou e
se pôs a andar, pois contava doze anos, e ficaram todos maravilhados
e espantados. (S. Marcos, 5:21–43.)
— O filho da viúva de Naim.
38. No dia seguinte, dirigiu-se Jesus para uma cidade chamada
Naim; acompanhavam-no seus discípulos e grande multidão de
povo. — Quando estava perto da porta da cidade, aconteceu que
levavam a sepultar um morto, que era filho único de sua mãe e
essa mulher era viúva; estava com ela grande número de pessoas
da cidade. — Tendo-a visto, o Senhor se tomou de compaixão
para com ela e lhe disse: Não chores. — Depois, aproximando-se,
tocou o esquife e os que o conduziam pararam. Então, disse ele:
Mancebo, levanta-te, eu o ordeno. — Imediatamente, o moço se
sentou e começou a falar. E Jesus o restituiu à sua mãe. — Todos os que estavam presentes ficaram tomados de espanto
e glorificavam a Deus, dizendo: Um grande profeta surgiu entre nós
e Deus visitou o seu povo. — O rumor desse milagre que ele fizera se
espalhou por toda a Judeia e por todas as regiões circunvizinhas.
(S. Lucas, 7:11–17.)
39. Contrário seria às leis da natureza e, portanto, milagroso,
o fato de voltar à vida corpórea um indivíduo que se
achasse realmente morto. Ora, não há mister se recorra a
essa ordem de fatos, para ter-se a explicação das ressurreições que Jesus operou.
Se, mesmo na atualidade, as aparências enganam por
vezes os profissionais, quão mais frequentes não haviam
de ser os acidentes daquela natureza, num país onde nenhuma
precaução se tomava contra eles e onde o sepultamento
era imediato*. É, pois, de todo ponto provável que, nos dois casos acima, apenas síncope ou letargia houvesse.
O próprio Jesus declara positivamente, com relação à
filha de Jairo: Esta menina, disse ele, não está morta, está
apenas adormecida.
Dado o poder fluídico que ele possuía, nada de espantoso
há em que esse fluido vivificante, acionado por uma
vontade forte, haja reanimado os sentidos em torpor; que
haja mesmo feito voltar ao corpo o Espírito, prestes a
abandoná-lo, uma vez que o laço perispirítico ainda se não
rompera definitivamente. Para os homens daquela época,
que consideravam morto o indivíduo desde que deixara de
respirar, havia ressurreição em casos tais; mas, o que na
realidade havia era cura e não ressurreição, na acepção
legítima do termo.
* Uma prova desse costume se nos depara nos Atos dos Apóstolos,
5:5 e seguintes.
“Ananias, tendo ouvido aquelas palavras, caiu e rendeu o Espírito
e todos os que ouviram falar disso foram presas de grande temor.
— Logo, alguns rapazes lhe vieram buscar o corpo e, tendo-o
levado, o enterraram. — Passadas umas três horas, sua mulher
(Safira), que nada sabia do que se dera, entrou. — E Pedro lhe
disse. . . etc. — No mesmo instante, ela lhe caiu aos pés e rendeu o
Espírito. Aqueles rapazes, voltando, a encontraram morta e, levando-a,
enterraram-na junto do marido.”
40. A ressurreição de Lázaro, digam o que disserem, de
nenhum modo infirma este princípio. Ele estava, dizem,
havia quatro dias no sepulcro; sabe-se, porém, que há letargias
que duram oito dias e até mais. Acrescentam que já
cheirava mal, o que é sinal de decomposição. Esta alegação
também nada prova, dado que em certos indivíduos há decomposição
parcial do corpo, mesmo antes da morte, havendo em tal caso cheiro de podridão. A morte só se verifica
quando são atacados os órgãos essenciais à vida.
E quem podia saber que Lázaro já cheirava mal? Foi
sua irmã Maria quem o disse. Mas, como o sabia ela? Por
haver já quatro dias que Lázaro fora enterrado, ela o supunha;
nenhuma certeza, entretanto, podia ter. (Cap. XIV, n.º 29.)*
* O fato seguinte prova que a decomposição precede algumas vezes a
morte. No Convento do Bom Pastor, fundado em Toulon, pelo padre
Marin, capelão dos cárceres, e destinado às decaídas que se
arrependem, encontrava-se uma rapariga que suportara os mais
terríveis sofrimentos com a calma e a impassibilidade de uma vítima
expiatória. Em meio de suas dores parecia sorrir para uma visão
celestial. Como Santa Teresa, pedia lhe fosse dado sofrer mais,
embora suas carnes já se achassem em frangalhos, com a gangrena
a lhe devastar todos os membros. Por sábia previdência, os
médicos tinham recomendado que fizessem a inumação do corpo,
logo após o trespasse. Coisa singular! Mal a doente exalou o último
suspiro, cessou todo o trabalho de decomposição; desapareceram
as exalações cadaverosas, de sorte que durante 36 horas pôde o
corpo ficar exposto às preces e à veneração da comunidade.
Jesus caminha sobre a água.
41. Logo, fez Jesus que seus discípulos tomassem a barca e passassem
para a outra margem antes dele, que ficava a despedir o
povo. — Depois de o ter despedido, subiu a um monte para orar e,
tendo caído a noite, achou-se ele sozinho naquele lugar.
Entrementes, a barca era fortemente açoitada pelas ondas, em meio do mar, por ser contrário o vento. — Mas, na quarta vigília da noite, Jesus foi ter com eles, caminhando por sobre o mar.* — Quando eles o viram andando sobre o mar, turbaram-se e diziam: É um fantasma e se puseram a gritar amedrontados. Jesus então lhes falou dizendo: Tranquilizai-vos; sou eu, não tenhais medo. — Pedro lhe respondeu: Senhor, se és tu, manda que eu vá ao teu encontro, caminhando sobre as águas. Disse-lhe Jesus: Vem. Pedro, descendo da barca, caminhava sobre a água, ao encontro de Jesus. Mas, vindo um grande vento, ele teve medo; e como começasse a submergir, clamou: Senhor, salva-me. Logo, Jesus, estendendo-lhe a mão, disse: Homem de pouca fé! por que duvidaste? — E, tendo subido para a barca, cessou o vento. — Então, os que estavam na barca, aproximando-se dele, o adoraram, dizendo: És verdadeiramente filho de Deus. (S. Mateus, 14:22–33.)
* O lago de Genesaré ou de Tiberíades.
42. Este fenômeno encontra explicação natural nos princípios acima expostos, cap. XIV, n.º 43.
Exemplos análogos provam que ele nada tem de impossível, nem de miraculoso, pois que se produz sob a ação das leis da natureza. Pode operar-se de duas maneiras.
Jesus, embora estivesse vivo, pôde aparecer sobre a água, com uma forma tangível, estando alhures o seu corpo. É a hipótese mais provável. Fácil é mesmo descobrir-se na narrativa alguns sinais característicos das aparições tangíveis. (Cap. XIV, n.os 35 a 37.)
Por outro lado, também pode ter sucedido que seu corpo fosse sustentado e neutralizada a sua gravidade pela mesma força fluídica que mantém no espaço uma mesa, sem ponto de apoio. Idêntico efeito se produz muitas vezes com os corpos humanos.
Transfiguração.
43. Seis dias depois, tendo chamado de parte a Pedro, Tiago e João, Jesus os levou consigo a um alto monte afastado* e se transfigurou diante deles. — Enquanto orava, seu rosto pareceu inteiramente outro; suas vestes se tornaram brilhantemente luminosas e brancas qual a neve, como não há pisoeiro na Terra que possa fazer alguma tão alva. — E eles viram aparecer Elias e Moisés, a entreter palestra com Jesus. — Então, disse Pedro a Jesus: Mestre, estamos bem aqui; façamos três tendas: uma para ti, outra para Moisés, outra para Elias. — É que ele não sabia o que dizia, tão espantado estava. — Ao mesmo tempo, apareceu uma nuvem que os cobriu; e, dessa nuvem, uma voz partiu, fazendo ouvir estas palavras: Este é meu Filho bem-amado; escutai-o. — Logo, olhando para todos os lados, a ninguém mais viram, senão a Jesus, que ficara a sós com eles. — Quando desciam do monte, ordenou-lhes ele que a ninguém falassem do que tinham visto, até que o Filho do Homem ressuscitasse dentre os mortos. — E eles conservaram em segredo o fato, inquirindo uns dos outros o que teria ele querido dizer com estas palavras: Até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dentre os mortos. (S. Marcos, 9:1–9.)
* O Monte Tabor, a sudoeste do lago de Tabarich e a 11 quilômetros a sudeste de Nazaré, com cerca de 1.000 metros de altura.
44. É ainda nas propriedades do fluido perispirítico que se encontra a explicação deste fenômeno. A transfiguração, explicada no cap. XIV, n.º 39, é um fato muito comum que, em virtude da irradiação fluídica, pode modificar a aparência de um indivíduo; mas, a pureza do perispírito de Jesus permitiu que seu Espírito lhe desse excepcional fulgor. Quanto à aparição de Moisés e Elias cabe inteiramente no rol de todos os fenômenos do mesmo gênero. (Cap. XIV, n.os 35 e seguintes.)
De todas faculdades que Jesus revelou, nenhuma se pode apontar estranha às condições da humanidade e que se não encontre comumente nos homens, porque estão todas na ordem da natureza. Pela superioridade, porém, da sua essência moral e de suas qualidades fluídicas, aquelas faculdades atingiam nele proporções muito acima das que são vulgares. Posto de lado o seu envoltório carnal, ele nos patenteava o estado dos puros Espíritos.
Tempestade aplacada.
45. Certo dia, tendo tomado uma barca com seus discípulos, disse-lhes ele: Passemos à outra margem do lago. Partiram então. Durante a travessia, ele adormeceu. — Então, um grande turbilhão de vento se abateu de súbito sobre o lago, de sorte que, enchendo-se d'água a barca, eles se viam em perigo. Aproximaram-se, pois, dele e o despertaram, dizendo-lhe: Mestre, perecemos. Jesus, levantando-se, falou, ameaçador, aos ventos e às ondas agitadas e uns e outras se aplacaram, sobrevindo grande calma. Ele então lhes disse: Onde está a vossa fé? Eles, porém, cheios de temor e admiração, perguntavam uns aos outros: Quem é este que assim dá ordens ao vento e às ondas, e eles lhe obedecem? (S. Lucas, 8:22–25.)
46. Ainda não conhecemos bastante os segredos da natureza para dizer se há ou não inteligências ocultas presidindo à ação dos elementos. Na hipótese de haver, o fenômeno em questão poderia ter resultado de um ato de autoridade sobre essas inteligências e provaria um poder que a nenhum homem é dado exercer. Como quer que seja, o fato de estar Jesus a dormir tranquilamente, durante a tempestade, atesta de sua parte uma segurança que se pode explicar pela circunstância de que seu Espírito via não haver perigo nenhum e que a tempestade ia amainar.
Bodas de Caná.
47. Este milagre, referido unicamente no Evangelho de S. João, é apresentado como o primeiro que Jesus operou e, nessas condições, devera ter sido um dos mais notados. Entretanto, bem fraca impressão parece haver produzido, pois que nenhum outro evangelista dele trata. Fato não extraordinário era para deixar espantados, no mais alto grau, os convivas e, sobretudo, o dono da casa, os quais, todavia, parece que não o perceberam.
Considerado em si mesmo, pouca importância tem o fato, em comparação com os que, verdadeiramente, atestam as qualidades espirituais de Jesus. Admitido que as coisas hajam ocorrido, conforme foram narradas, é de notar-se seja esse, de tal gênero, o único fenômeno que se tenha produzido. Jesus era de natureza extremamente elevada, para se ater a efeitos puramente materiais, próprios apenas a aguçar a curiosidade da multidão que, então, o teria nivelado a um mágico. Ele sabia que as coisas úteis lhe conquistariam mais simpatias e lhe granjeariam mais adeptos, do que as que facilmente passariam por fruto de grande habilidade e destreza (n.º 27).
Se bem que, a rigor, o fato se possa explicar, até certo ponto, por uma ação fluídica que houvesse, como o magnetismo oferece muitos exemplos, mudado as propriedades da água, dando-lhe o sabor do vinho, pouco provável é se tenha verificado semelhante hipótese, dado que, em tal caso, a água, tendo do vinho unicamente o sabor, houvera conservado a sua coloração, o que não deixaria de ser notado. Mais racional é se reconheça aí uma daquelas parábolas tão frequentes nos ensinos de Jesus, como a do filho pródigo, a do festim de bodas, do mau rico, da figueira que secou e tantas outras que, todavia, se apresentam com caráter de fatos ocorridos. Provavelmente, durante o repasto, terá ele aludido ao vinho e à água, tirando de ambos um ensinamento. Justificam esta opinião as palavras que a respeito lhe dirige o mordomo: “Toda gente serve em primeiro lugar o vinho bom e, depois que todos o têm bebido muito, serve o menos fino; tu, porém, guardas até agora o bom vinho.”
Entre duas hipóteses, deve-se preferir a mais racional e os espíritas não são tão crédulos que por toda parte vejam manifestações, nem tão absolutos em suas opiniões, que pretendam explicar tudo por meio dos fluidos.
Multiplicação dos pães.
48. A multiplicação dos pães é um dos milagres que mais têm intrigado os comentadores e alimentado, ao mesmo tempo, as zombarias dos incrédulos. Sem se darem ao trabalho de lhe perscrutar o sentido alegórico, para estes últimos ele não passa de um conto pueril. Entretanto, a maioria das pessoas sérias há visto na narrativa desse fato, embora sob forma diferente da ordinária, uma parábola, em que se compara o alimento espiritual da alma ao alimento do corpo.
Pode-se, todavia, perceber nela mais do que uma simples figura e admitir, de certo ponto de vista, a realidade de um fato material, sem que, para isso, seja preciso se recorra ao prodígio. É sabido que uma grande preocupação de espírito, bem como a atenção fortemente presa a uma coisa fazem esquecer a fome. Ora, os que acompanhavam a Jesus eram criaturas ávidas de ouvi-lo; nada há, pois, de espantar em que, fascinadas pela sua palavra e também, talvez, pela poderosa ação magnética que ele exercia sobre os que o cercavam, elas não tenham experimentado a necessidade material de comer.
Prevendo esse resultado, Jesus nenhuma dificuldade teve para tranquilizar os discípulos, dizendo-lhes, na linguagem figurada que lhe era habitual e admitido que realmente houvessem trazido alguns pães, que estes bastariam para matar a fome à multidão. Simultaneamente, ministrava aos referidos discípulos um ensinamento, com o lhes dizer: “Dai-lhes vós mesmos de comer.” Ensinava-lhes assim que também eles podiam alimentar por meio da palavra.
Desse modo, a par do sentido moral alegórico, produziu-se um efeito fisiológico, natural e muito conhecido. O prodígio, no caso, está no ascendente da palavra de Jesus, poderosa bastante para cativar a atenção de uma multidão imensa, ao ponto de fazê-la esquecer-se de comer. Esse poder moral comprova a superioridade de Jesus, muito mais do que o fato puramente material da multiplicação dos pães, que tem de ser considerada como alegoria.
Esta explicação, aliás, o próprio Jesus a confirmou nas duas passagens seguintes.
O fermento dos fariseus.
49. Ora, tendo seus discípulos passado para o outro lado do mar, esqueceram-se de levar pães. — Jesus lhes disse: Tende o cuidado de precatar-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus. — Eles, porém, pensavam e diziam entre si: É porque não trouxemos pães. — Jesus, conhecendo-lhes os pensamentos, disse: Homens de pouca fé, por que haveis de estar cogitando de não terdes trazido pães? Ainda não compreendeis e não vos lembrais quantos cestos levastes? — Como não compreendereis que não é do pão que eu vos falava, quando disse que vos guardásseis do fermento dos fariseus e saduceus? — Eles então compreenderam que ele não lhes dissera que se preservassem do fermento que se põe no pão, mas da doutrina dos fariseus e dos saduceus. (S. Mateus, 16:5–12.)
O pão do céu.
50. No dia seguinte, o povo, que permanecera do outro lado do mar, notou que lá não chegara outra barca e que Jesus não entrara na que seus discípulos tomaram, que os discípulos haviam partido sós — e como tinham chegado depois outras barcas de Tiberíades, perto do lugar onde o Senhor, após render graças, os alimentara com cinco pães; — e como verificassem por fim que Jesus não estava lá, tampouco seus discípulos, entraram naquelas barcas e foram para Cafarnaum, em busca de Jesus. — E, tendo-o encontrado além do mar, disseram-lhe: Mestre, quando vieste para cá? — Jesus lhes respondeu: Em verdade, em verdade vos digo que me procurais, não por causa dos milagres que vistes, mas porque eu vos dei pão a comer e ficastes saciados. — Trabalhai por ter, não o alimento que perece, mas o que dura para a vida eterna e que o Filho do Homem vos dará, porque foi nele que Deus, o Pai, imprimiu seu selo e seu caráter. — Perguntaram-lhe eles: Que devemos fazer para produzir obras de Deus? — Respondeu-lhes Jesus: A obra de Deus é que creiais no que ele enviou. — Perguntaram-lhe então: Que milagre operarás que nos faça crer, vendo-o? Que farás de extraordinário? — Nossos pais comeram o maná no deserto, conforme está escrito: Ele lhes deu de comer o pão do céu. — Jesus lhes respondeu: Em verdade, em verdade vos digo que Moisés não vos deu o pão do céu; meu Pai é quem dá o verdadeiro pão do céu — porquanto o pão de Deus é aquele que desceu do céu e que dá vida ao mundo. — Disseram eles então: Senhor, dá-nos sempre desse pão. — Jesus lhes respondeu: Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome e aquele que em mim crê não terá sede. — Mas, eu já vos disse: vós me tendes visto e não credes. — Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim tem a vida eterna. — Eu sou o pão da vida. — Vossos pais comeram o maná do deserto e morreram. — Aqui está o pão que desceu do céu, a fim de que quem dele comer não morra. (S. João, 6:22–36 e 47–50.)
51. Na primeira passagem, lembrando o fato precedentemente operado, Jesus dá claramente a entender que não se tratara de pães materiais, pois, a não ser assim, careceria de objeto a comparação por ele estabelecida com o fermento dos fariseus: “Ainda não compreendeis, diz ele, e não vos recordais de que cinco pães bastaram para cinco mil pessoas e que dois pães foram bastantes para quatro mil? Como não compreendestes que não era de pão que eu vos falava, quando vos dizia que vos preservásseis do fermento dos fariseus?” Esse confronto nenhuma razão de ser teria, na hipótese de uma multiplicação material. O fato fora de si mesmo muito extraordinário para ter impressionado fortemente a imaginação dos discípulos, que, entretanto, pareciam não mais lembrar-se dele.
É também o que não menos claramente ressalta, do que Jesus expendeu sobre o pão do céu, empenhado em fazer que seus ouvintes compreendessem o verdadeiro sentido do alimento espiritual. “Trabalhai, diz ele, não por conseguir o alimento que perece, mas pelo que se conserva para a vida eterna e que o Filho do Homem vos dará.” Esse alimento é a sua palavra, pão que desceu do céu e dá vida ao mundo. “Eu sou, declara ele, o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome e aquele que em mim crê nunca terá sede.”
Tais distinções, porém, eram por demais sutis para aquelas naturezas rudes, que somente compreendiam as coisas tangíveis. Para eles, o maná, que alimentara o corpo de seus antepassados, era o verdadeiro pão do céu; aí é que estava o milagre. Se, portanto, houvesse ocorrido materialmente o fato da multiplicação dos pães, como teria ele impressionado tão fracamente aqueles mesmos homens, a cujo benefício essa multiplicação se operara poucos dias antes, ao ponto de perguntarem a Jesus: “Que milagre farás para que, vendo-o, te creiamos? Que farás de extraordinário?” Eles entendiam por milagres os prodígios que os fariseus pediam, isto é, sinais que aparecessem no céu por ordem de Jesus, como pela varinha de um mágico. Ora, o que Jesus fazia era extremamente simples e não se afastava das leis da natureza; as próprias curas não revelavam caráter muito singular, nem muito extraordinário. Para eles, os milagres espirituais não apresentavam grande vulto.
Tentação de Jesus.
52. Jesus, transportado pelo diabo ao pináculo do Templo, depois ao cume de uma montanha e por ele tentado, constitui uma daquelas parábolas que lhe eram familiares e que a credulidade pública transformou em fatos materiais.*
* A explicação que se segue é reprodução textual do ensino que a esse respeito deu um Espírito.
53. “Jesus não foi arrebatado. Ele apenas quis fazer que os homens compreendessem que a humanidade se acha sujeita a falir e que deve estar sempre em guarda contra as más inspirações a que, pela sua natureza fraca, é impelida a ceder. A tentação de Jesus é, pois, uma figura e fora preciso ser cego para tomá-la ao pé da letra. Como pretenderíeis que o Messias, o Verbo de Deus encarnado, tenha estado submetido, por algum tempo, embora muito curto fosse este, às sugestões do demônio e que, como o diz o Evangelho de Lucas, o demônio o houvesse deixado por algum tempo, o que daria a supor que o Cristo continuou submetido ao poder daquela entidade? Não; compreendei melhor os ensinos que vos foram dados. O Espírito do mal nada poderia sobre a essência do bem. Ninguém diz ter visto Jesus no cume da montanha, nem no pináculo do Templo. Certamente, tal fato teria sido de natureza a se espalhar por todos os povos. A tentação, portanto, não constituiu um ato material e físico. Quanto ao ato moral, admitiríeis que o Espírito das trevas pudesse dizer àquele que conhecia sua própria origem e o seu poder: “Adora-me, que te darei todos os remos da Terra?” Desconheceria então o demônio aquele a quem fazia tais oferecimentos? Não é provável. Ora, se o conhecia, suas propostas eram uma insensatez, pois ele não ignorava que seria repelido por aquele que viera destruir-lhe o império sobre os homens.
“Compreendei, portanto, o sentido dessa parábola, que outra coisa aí não tendes, do mesmo modo que nos casos do Filho Pródigo e do Bom Samaritano. Aquela mostra os perigos que correm os homens, se não resistem à voz íntima que lhes clama sem cessar: ‘Podes ser mais do que és; podes possuir mais do que possuis; podes engrandecer-te, adquirir muito; cede à voz da ambição e todos os teus desejos serão satisfeitos.’ Ela vos mostra o perigo e o meio de o evitardes, dizendo às más inspirações: Retira-te, Satanás ou, por outras palavras: Vai-te, tentação!
“As duas outras parábolas que lembrei mostram o que ainda pode esperar aquele que, por muito fraco para expulsar o demônio, lhe sucumbiu às tentações. Mostram a misericórdia do pai de família, pousando a mão sobre a fronte do filho arrependido e concedendo-lhe, com amor, o perdão implorado. Mostram o culpado, o cismático, o homem repelido por seus irmãos, valendo mais, aos olhos do Juiz Supremo, do que os que o desprezam, por praticar ele as virtudes que a lei de amor ensina.
“Pesai bem os ensinamentos que os Evangelhos contêm; sabei distinguir o que ali está em sentido próprio, ou em sentido figurado, e os erros que vos hão cegado durante tanto tempo se apagarão pouco a pouco, cedendo lugar à brilhante luz da Verdade.” — João Evangelista, Bordéus, 1862.
Prodígios por ocasião da morte de Jesus.
54. Ora, desde a sexta hora do dia até à nona, toda a Terra se cobriu de trevas. Ao mesmo tempo, o véu do Templo se rasgou em dois, de alto a baixo; a terra tremeu; as pedras se fenderam; — os sepulcros se abriram e muitos corpos de santos, que estavam no sono da morte, ressuscitaram; — e, saindo de seus túmulos após a ressurreição, vieram à cidade santa e foram vistos por muitas pessoas. (S. Mateus, 27:45 e 51–53.)
55. É singular que tais prodígios, operando-se no momento mesmo em que a atenção da cidade se fixava no suplício de Jesus, que era o acontecimento do dia, não tenham sido notados, pois que nenhum historiador os menciona. Parece impossível que um tremor de terra e o ficar toda a Terra envolta em trevas durante três horas, num país onde o céu é sempre de perfeita limpidez, hajam podido passar despercebidos.
A duração de tal obscuridade teria sido quase a de um eclipse do Sol, mas os eclipses dessa espécie só se produzem na lua nova, e a morte de Jesus ocorreu em fase de lua cheia, a 14 de Nissan, dia da Páscoa dos judeus.
O obscurecimento do Sol também pode ser produzido pelas manchas que se lhe notam na superfície. Em tal caso, o brilho da luz se enfraquece sensivelmente, porém, nunca ao ponto de determinar obscuridade e trevas. Admitido que um fenômeno desse gênero se houvesse dado, ele decorreria de uma causa perfeitamente natural.*
Quanto aos mortos que ressuscitaram, possivelmente algumas pessoas tiveram visões ou viram aparições, o que não é excepcional. Entretanto, como então não se conhecia a causa desse fenômeno, supuseram que as figuras vistas saíam dos sepulcros.
Compungidos com a morte de seu Mestre, os discípulos de Jesus sem dúvida ligaram a essa morte alguns fatos particulares, aos quais noutra ocasião nenhuma atenção houveram prestado. Bastou, talvez, que um fragmento de rochedo se haja destacado naquele momento, para que pessoas inclinadas ao maravilhoso tenham visto nesse fato um prodígio e, ampliando-o, tenham dito que as pedras se fenderam.
Jesus é grande pelas suas obras e não pelos quadros fantásticos de que um entusiasmo pouco ponderado entendeu de cercá-lo.
* Há constantemente, na superfície do Sol, manchas físicas, que lhe acompanham o movimento de rotação e hão servido para determinar-se a duração desse movimento. Às vezes, porém, essas manchas aumentam em número, em extensão e em intensidade. É então que se produz uma diminuição da luz e do calor solares. O aumento do número das manchas parece coincidir com certos fenômenos astronômicos e com a posição relativa de alguns planetas, o que lhes determina o reaparecimento periódico. É muito variável a duração daquele obscurecimento; por vezes não vai além de duas ou três horas, mas, em 535, houve um que durou catorze meses.
Aparição de Jesus após sua morte.
56. Mas, Maria (Madalena) se conservou fora, perto do sepulcro, a derramar lágrimas. E, estando a chorar, como se abaixasse para olhar dentro do sepulcro — viu dois anjos vestidos de branco, assentados no lugar onde estivera o corpo de Jesus, um à cabeceira, o outro do lado dos pés. — Disseram-lhe eles: Mulher, por que choras? Ela respondeu: É que levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram. — Tendo dito isto, voltou-se e viu a Jesus de pé, sem saber, entretanto que fosse Jesus. — Este então lhe disse: Mulher, por que choras? A quem procuras? Ela, pensando fosse o jardineiro, lhe disse: Senhor, se foste tu quem o tirou, dize-me onde o puseste e eu o levarei. — Disse-lhe Jesus: Maria. Logo ela se voltou e disse: Rabboni, isto é: Meu Senhor. — Jesus lhe respondeu: Não me toques, porquanto ainda não subi para meu Pai; mas, vai ter com meus irmãos e dize-lhes de minha parte: Subo a meu Pai e vosso Pai, a meu Deus e vosso Deus. — Maria Madalena foi então dizer aos discípulos que vira o Senhor e que este lhe dissera aquelas coisas. (S. João, 20:11 a 18.)
57. Naquele mesmo dia, indo dois deles para um burgo chamado Emaús, distante de Jerusalém sessenta estádios — falavam entre si de tudo o que se passara. — E aconteceu que, quando conversavam e discorriam sobre isso, Jesus se lhes juntou e se pôs a caminhar com eles; — seus olhos, porém, estavam tolhidos, a fim de que não o pudessem reconhecer. — Ele disse: De que vínheis falando a caminhar e por que estais tão tristes? — Um deles, chamado Cleofas, tomando a palavra disse: Serás em Jerusalém o único estrangeiro que não saiba do que aí se passou estes últimos dias? — Que foi? perguntou ele. Responderam-lhe: A respeito de Jesus de Nazaré, que foi um poderoso profeta diante de Deus e diante de toda a gente, e acerca do modo por que os príncipes dos sacerdotes e os nossos senadores o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram. — Ora, nós esperávamos fosse ele quem resgatasse a Israel, no entanto, já estamos no terceiro dia depois que tais coisas se deram. — É certo que algumas mulheres das que estavam conosco nos espantaram, pois que, tendo ido ao seu sepulcro antes do romper do dia, nos vieram dizer que anjos mesmos lhes apareceram, dizendo-lhes que ele está vivo. — E alguns dos nossos, tendo ido também ao sepulcro, encontraram todas as coisas conforme as mulheres haviam referido; mas, quanto a ele, não o encontraram. — Disse-lhes então Jesus: Oh! insensatos, de coração tardo a crer em tudo a que os profetas hão dito! Não era preciso que o Cristo sofresse todas essas coisas e que entrasse assim na sua glória? — E, a começar de Moisés, passando em seguida por todos os profetas, lhes explicava o que em todas as Escrituras fora dito dele. — Ao aproximarem-se do burgo para onde se dirigiam, ele deu mostras de que ia mais longe. — Os dois o obrigaram a deter-se, dizendo-lhe: Fica conosco, que já é tarde e o dia está em declínio. Ele entrou com os dois. — Estando com eles à mesa tomou do pão, abençoou-o e lhes deu. — Abriram-se-lhes ao mesmo tempo os olhos e ambos o reconheceram; ele, porém, lhes desapareceu das vistas. — Então, disseram um ao outro: Não é verdade que o nosso coração ardia dentro de nós, quando ele pelo caminho nos falava, explicando-nos as Escrituras? — E, erguendo-se no mesmo instante, voltaram a Jerusalém e viram que os onze apóstolos e os que continuavam com eles estavam reunidos — e diziam: O Senhor em verdade ressuscitou e apareceu a Simão. — Então, também eles narraram o que lhes acontecera em caminho e como o tinham reconhecido ao partir o pão. — Enquanto assim confabulavam, Jesus se apresentou no meio deles e lhes disse: A paz seja convosco; sou eu, não vos assusteis. — Mas, na perturbação e no medo de que foram tomados, eles imaginaram estar vendo um Espírito. — E Jesus lhes disse: Por que vos turbais? Por que se elevam tantos pensamentos nos vossos corações? — Olhai para as minhas mãos e para os meus pés e reconhecei que sou eu mesmo. Tocai-me e considerai que um Espírito não tem carne, nem osso, como vedes que eu tenho. — Dizendo isso, mostrou-lhes as mãos e os pés. — Mas, como eles ainda não acreditavam, tão transportados de alegria e de admiração se achavam, disse-lhes: Tendes aqui alguma coisa que se coma? — Eles lhe apresentaram um pedaço de peixe assado e um favo de mel. — Ele comeu diante deles e, tomando os restos, lhes deu, dizendo: Eis que, estando ainda convosco, eu vos dizia que era necessário se cumprisse tudo o que de mim foi escrito na lei de Moisés, nos profetas e nos Salmos. — Ao mesmo tempo lhes abriu o espírito, a fim de que entendessem as Escrituras — e lhes disse: É assim que está escrito e assim era que se fazia necessário sofresse o Cristo e ressuscitasse dentre os mortos ao terceiro dia; — e que se pregasse em seu nome a penitência e a remissão dos pecados em todas as nações, a começar por Jerusalém. — Ora, vós sois testemunhas dessas coisas. — Vou enviar-vos o dom de meu Pai, o qual vos foi prometido; mas, por enquanto, permanecei na cidade, até que eu vos haja revestido da força do Alto. (S. Lucas, 24:13–49.)
58. Ora, Tomé, um dos doze apóstolos, chamado Dídimo, não se achava com eles quando Jesus lá foi vindo. — Os outros discípulos então lhe disseram: Vimos o Senhor. Ele, porém, lhes disse: Se eu não vir nas suas mãos as marcas dos cravos que as atravessaram e não puser o dedo no buraco feito pelos cravos e minha mão no rasgão do seu lado, não acreditarei, absolutamente. — Oito dias depois, estando ainda os discípulos no mesmo lugar e com eles Tomé, Jesus se apresentou, achando-se fechadas as portas, e, colocando-se no meio deles, disse-lhes: A paz seja convosco. — Disse em seguida a Tomé: Põe aqui o teu dedo e olha minhas mãos; estende também a tua mão e mete-a no meu lado e não sejas incrédulo, mas fiel. — Tomé lhe respondeu: Meu Senhor e meu Deus! — Jesus lhe disse: Tu creste, Tomé, porque viste; ditosos os que creram sem ver. (S. João, 20:24–29.)
59. Jesus também se mostrou depois aos seus discípulos à margem do mar de Tiberíades, mostrando-se desta forma: — Simão Pedro e Tomé, chamado Dídimo, Natanael, que era de Caná, na Galileia, os filhos de Zebedeu e dois outros de seus discípulos estavam juntos. — Disse-lhes Simão Pedro: Vou pescar. Os outros disseram: Também nós vamos contigo. Foram-se e entraram numa barca; mas, naquela noite, nada apanharam. — Ao amanhecer, Jesus apareceu à margem sem que seus discípulos conhecessem que era ele. — Disse-lhes então: Filhos, nada tendes que se coma? Responderam-lhe: Não. Disse-lhes ele: Lançai a rede do lado direito da barca e achareis. Eles a lançaram logo e quase não a puderam retirar, tão carregada estava de peixes. — Então, o discípulo a quem Jesus amava disse a Pedro: É o Senhor. Simão Pedro, ao ouvir que era o Senhor, vestiu-se (pois que estava nu) e se atirou ao mar. — Os outros discípulos vieram com a barca, e, como não estavam distantes da praia mais de duzentos côvados, puxaram daí a rede cheia de peixes. (S. João, 21:1–8.)
60. Depois disso, ele os conduziu para Betânia e, tendo lavado as mãos, os abençoou — e, tendo-os abençoado, se separou deles e foi arrebatado ao céu. — Quanto a eles, depois de o terem adorado, voltaram para Jerusalém, cheios de alegria. — Estavam constantemente no templo, louvando e bendizendo a Deus. Amém. (S. Lucas, 24:50 a 53.)
61. Todos os evangelistas narram as aparições de Jesus, após sua morte, com circunstanciados pormenores que não permitem se duvide da realidade do fato. Elas, aliás, se explicam perfeitamente pelas leis fluídicas e pelas propriedades do perispírito e nada de anômalo apresentam em face dos fenômenos do mesmo gênero, cuja história, antiga e contemporânea, oferece numerosos exemplos, sem lhes faltar sequer a tangibilidade. Se notarmos as circunstâncias em que se deram as suas diversas aparições, nele reconheceremos, em tais ocasiões, todos os caracteres de um ser fluídico. Aparece inopinadamente e do mesmo modo desaparece; uns o veem, outros não, sob aparências que não o tornam reconhecível nem sequer aos seus discípulos; mostra-se em recintos fechados, onde um corpo carnal não poderia penetrar; sua própria linguagem carece da vivacidade da de um ser corpóreo; fala em tom breve e sentencioso, peculiar aos Espíritos que se manifestam daquela maneira; todas as suas atitudes, numa palavra, denotam alguma coisa que não é do mundo terreno. Sua presença causa simultaneamente surpresa e medo; ao vê-lo, seus discípulos não lhe falam com a mesma liberdade de antes; sentem que já não é um homem.
Jesus, portanto, se mostrou com o seu corpo perispirítico, o que explica que só tenha sido visto pelos que ele quis que o vissem. Se estivesse com o seu corpo carnal, todos o veriam, como quando estava vivo. Ignorando a causa originária do fenômeno das aparições, seus discípulos não se apercebiam dessas particularidades, a que, provavelmente, não davam atenção. Desde que viam o Senhor e o tocavam, haviam de achar que aquele era o seu corpo ressuscitado. (Cap. XIV, n.os 14 e 35 a 38.)
62. Ao passo que a incredulidade rejeita todos os fatos que Jesus produziu, por terem uma aparência sobrenatural, e os considera, sem exceção, lendários, o Espiritismo dá explicação natural à maior parte desses fatos. Prova a possibilidade deles, não só pela teoria das leis fluídicas, como pela identidade que apresentam com análogos fatos produzidos por uma imensidade de pessoas nas mais vulgares condições. Por serem, de certo modo, tais fatos do domínio público, eles nada provam, em princípio, com relação à natureza excepcional de Jesus.*
* Os inúmeros fatos contemporâneos de curas, aparições, possessões, dupla vista e outros, que se encontram relatados na Revue spirite e lembrados nas observações acima, oferecem, até quanto aos pormenores, tão flagrante analogia com os que o Evangelho narra, que ressalta evidente a identidade dos efeitos e das causas. Não se compreende que o mesmo fato tivesse hoje uma causa natural e que essa causa fosse sobrenatural outrora; diabólica com uns e divina com outros. Se fora possível pô-los aqui em confronto uns com os outros, a comparação mais fácil se tornaria; não o permitem, porém, o número deles e os desenvolvimentos que a narrativa reclamaria.
63. O maior milagre que Jesus operou, o que verdadeiramente atesta a sua superioridade, foi a revolução que seus ensinos produziram no mundo, malgrado à exiguidade dos seus meios de ação.
Com efeito, Jesus, obscuro, pobre, nascido na mais humilde condição, no seio de um povo pequenino, quase ignorado e sem preponderância política, artística ou literária, apenas durante três anos prega a sua doutrina; em todo esse curto espaço de tempo é desatendido e perseguido pelos seus concidadãos; vê-se obrigado a fugir para não ser lapidado; é traído por um de seus apóstolos, renegado por outro, abandonado por todos no momento em que cai nas mãos de seus inimigos. Só fazia o bem e isso não o punha ao abrigo da malevolência, que dos próprios serviços que ele prestava tirava motivos para o acusar. Condenado ao suplício que só aos criminosos era infligido, morre ignorado do mundo, visto que a História daquela época nada diz a seu respeito*. Nada escreveu; entretanto, ajudado por alguns homens tão obscuros quanto ele, sua palavra bastou para regenerar o mundo; sua doutrina matou o paganismo onipotente e se tornou o facho da civilização. Tinha contra si tudo o que causa o malogro das obras dos homens, razão por que dizemos que o triunfo alcançado pela sua doutrina foi o maior dos seus milagres, ao mesmo tempo que prova ser divina a sua missão. Se, em vez de princípios sociais e regeneradores, fundados sobre o futuro espiritual do homem, ele apenas houvesse legado à posteridade alguns fatos maravilhosos, talvez hoje mal o conhecessem de nome.
* Dele unicamente fala o historiador judeu Flávio Josefo, que, aliás, diz bem pouca coisa.
Desaparecimento do corpo de Jesus.
64. O desaparecimento do corpo de Jesus após sua morte
há sido objeto de inúmeros comentários. Atestam-no os
quatro evangelistas, baseados nas narrativas das mulheres
que foram ao sepulcro no terceiro dia depois da crucificação
e lá não o encontraram. Viram alguns, nesse desaparecimento,
um fato milagroso, atribuindo-o outros a uma
subtração clandestina.
Segundo outra opinião, Jesus não teria tido um corpo
carnal, mas apenas um corpo fluídico; não teria sido, em
toda a sua vida, mais do que uma aparição tangível; numa
palavra: uma espécie de agênere. Seu nascimento, sua morte
e todos os atos materiais de sua vida teriam sido apenas
aparentes. Assim foi que, dizem, seu corpo, voltado ao
estado fluídico, pode desaparecer do sepulcro e com esse
mesmo corpo é que ele se teria mostrado depois de
sua morte.
É fora de dúvida que semelhante fato não se pode considerar
radicalmente impossível, dentro do que hoje se sabe
acerca das propriedades dos fluidos; mas, seria, pelo menos,
inteiramente excepcional e em formal oposição ao caráter
dos agêneres. (Cap. XIV, n.º 36.) Trata-se, pois, de saber
se tal hipótese é admissível, se os fatos a confirmam ou
contradizem.
65. A estada de Jesus na Terra apresenta dois períodos: o que precedeu e o que se seguiu à sua morte. No primeiro, desde o momento da concepção até o nascimento, tudo se passa, pelo que respeita à sua mãe, como nas condições ordinárias da vida*. Desde o seu nascimento até a sua morte, tudo, em seus atos, na sua linguagem e nas diversas circunstâncias da sua vida, revela os caracteres inequívocos da corporeidade. São acidentais os fenômenos de ordem psíquica que nele se produzem e nada têm de anômalos, pois que se explicam pelas propriedades do perispírito e se dão, em graus diferentes, noutros indivíduos. Depois de sua morte, ao contrário, tudo nele revela o ser fluídico. É tão marcada a diferença entre os dois estados, que não podem ser assimilados.
O corpo carnal tem as propriedades inerentes à matéria propriamente dita, propriedades que diferem essencialmente das dos fluidos etéreos; naquela, a desorganização se opera pela ruptura da coesão molecular. Ao penetrar no corpo material, um instrumento cortante lhe divide os tecidos; se os órgãos essenciais à vida são atacados, cessa-lhes o funcionamento e sobrevém a morte, isto é, a do corpo. Não existindo nos corpos fluídicos essa coesão, a vida aí já não repousa no jogo de órgãos especiais e não se podem produzir desordens análogas àquelas. Um instrumento cortante ou outro qualquer penetra num corpo fluídico como se penetrasse numa massa de vapor, sem lhe ocasionar qualquer lesão. Tal a razão por que não podem morrer os corpos dessa espécie e por que os seres fluídicos, designados pelo nome de agêneres, não podem ser mortos.
Após o suplício de Jesus, seu corpo se conservou inerte e sem vida; foi sepultado como o são de ordinário os corpos e todos o puderam ver e tocar. Após a sua ressurreição, quando quis deixar a Terra, não morreu de novo; seu corpo se elevou, desvaneceu e desapareceu, sem deixar qualquer vestígio, prova evidente de que aquele corpo era de natureza diversa da do que pereceu na cruz; donde forçoso é concluir que, se foi possível que Jesus morresse, é que carnal era o seu corpo.
Por virtude das suas propriedades materiais, o corpo carnal é a sede das sensações e das dores físicas, que repercutem no centro sensitivo ou Espírito. Quem sofre não é o corpo, é o Espírito recebendo o contragolpe das lesões ou alterações dos tecidos orgânicos. Num corpo sem Espírito, absolutamente nula é a sensação. Pela mesma razão, o Espírito, sem corpo material, não pode experimentar os sofrimentos, visto que estes resultam da alteração da matéria, donde também forçoso é se conclua que, se Jesus sofreu materialmente, do que não se pode duvidar, é que ele tinha um corpo material de natureza semelhante ao de toda gente.
* Não falamos do mistério da encarnação, com o qual não temos que nos ocupar aqui e que será examinado ulteriormente.
66. Aos fatos materiais juntam-se fortíssimas considerações morais.
Se as condições de Jesus, durante a sua vida, fossem as dos seres fluídicos, ele não teria experimentado nem a dor, nem as necessidades do corpo. Supor que assim haja sido é tirar-lhe o mérito da vida de privações e de sofrimentos que escolhera, como exemplo de resignação. Se tudo nele fosse aparente, todos os atos de sua vida, a reiterada predição de sua morte, a cena dolorosa do Jardim das Oliveiras, sua prece a Deus para que lhe afastasse dos lábios o cálice de amarguras, sua paixão, sua agonia, tudo, até ao último brado, no momento de entregar o Espírito, não teria passado de vão simulacro, para enganar com relação à sua natureza e fazer crer num sacrifício ilusório de sua vida, numa comédia indigna de um homem simplesmente honesto, indigna, portanto, e com mais forte razão de um ser tão superior. Numa palavra: ele teria abusado da boa-fé dos seus contemporâneos e da posteridade. Tais as consequências lógicas desse sistema, consequências inadmissíveis, porque o rebaixariam moralmente, em vez de o elevarem.
Jesus, pois, teve, como todo homem, um corpo carnal e um corpo fluídico, o que é atestado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos que lhe assinalaram a existência.
67. Não é nova essa ideia sobre a natureza do corpo de Jesus. No quarto século, Apolinário, de Laodiceia, chefe da seita dos apolinaristas, pretendia que Jesus não tomara um corpo como o nosso, mas um corpo impassível, que descera do céu ao seio da santa Virgem e que não nascera dela; que, assim, Jesus não nascera, não sofrera e não morrera, senão em aparência. Os apolinaristas foram anatematizados no concílio de Alexandria, em 360; no de Roma, em 374; e no de Constantinopla, em 381.
Tinham a mesma crença os Docetas (do grego dokein, aparecer), seita numerosa dos Gnósticos, que subsistiu durante os três primeiros séculos.