Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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NOTA: Um destes dias o nosso colega Sr. Leymarie, tendo-se levantado mais cedo que de costume, levado por uma força involuntária, sentiu-se solicitado a escrever e obteve a seguinte dissertação espontânea:

Uma geração de operários amaldiçoou o meu nome. Tinham razão? Estavam errados? Ah! O futuro deveria responder.

Eu tinha uma ideia fixa, a de aperfeiçoar, e sobretudo economizar, suprimindo algumas mãos. Eu queria simplificar o tear de Vaucanson, que tomava o menino em pouca idade, para dele fazer um pária singular, pálido, mirrado, de ar apatetado, de linguagem burlesca, que constituía uma população à parte em minha cidade natal.

Meu Espírito vivia em contínua tensão. Eu dormia para achar, ao despertar, um novo plano. Em vez de imagens e sentimentos, meu pensamento era uma engrenagem, um cilindro, molas, polias, alavancas.

Em meus sonhos eu via aparecer meu anjo da guarda, que punha em movimento todas as minhas inspirações, todas as obras das mãos do homem. Com razão haviam dito que “Os mecânicos são os poetas da matéria.” As mais belas máquinas saíram acabadas do cérebro de um operário. As noções de mecânica que ele não possui, ele as reinventa. A paciência e a imaginação são as suas únicas fontes.

Na verdade, é uma inspiração dos bons Espíritos, desprezada pelas academias ou cientistas de profissão, mas não é menos certo que se Arquimedes e Vaucanson são os gênios da mecânica, os Virgílios, se quiserdes, nada mais são que essa paciência, unida a uma viva imaginação, que cria todas as descobertas com que se honra a Humanidade. E isto por quem? Por monges, ceramistas, cardadores de lã, pastores, marinheiros, um operário em seda, um ferreiro ignorante.

Humilde operário, eu não era um gênio, mas, como tantos outros, um predestinado chamado a simplificar um tear que deslocava os membros, abreviando a vida de milhares de meninos. Suprimi um suplício físico, e servindo à indústria, servi ao gênero humano.

Há que admirar a Providência, que se serve de um pobre Jacquard para transformar um tear que alimenta milhares ─ que digo eu? ─ milhões de homens na Terra; e é um inseto cujo túmulo assalaria, transforma e nutre dois quintos do globo. Não é Deus um mecânico maravilhoso? Ele criou o bicho da seda, esse engenhoso artista no qual ele faz encontrar o mais vasto problema de economia política. Que ensinamento para os orgulhosos e indiferentes!

Questão de máquinas! Terrível questão! Cada invenção arranca a ferramenta e o pão de populações inteiras. O inventor é, pois, um inimigo próximo e um benfeitor distante. Ele decuplica o poder da arte e da indústria; ele multiplica o trabalho no futuro; ele presta um notável serviço para a Humanidade, mas, também, não causa um mal atual? O primeiro inventor da máquina de fiar destruiu o recurso de muita gente. Quem fiava a matéria prima senão a mãe de família, a pastora, as mulheres idosas? Por mínimo que fosse o salário, ao menos lhes dava condições de viver mais ou menos.

À semelhança dos inventores de verdades religiosas, políticas ou morais, os inventores de máquinas revolucionam a matéria. Precursores do futuro, abrem violentamente seu caminho através dos interesses, calcando o passado sob seus pés. Assim, esperando a recompensa remota, eles são amaldiçoados por seus concidadãos.

Pobre Humanidade! És estúpida se estacas, cruel se avanças. Segundo Deus, não deves ficar estacionária, se não quiseres perpetuar o mal, mas, para fazer o bem, és revolucionária, apesar de tudo.

É por isto que neste momento de transição Deus vos diz: Sede espíritas, isto é, profundamente imbuídos de iniciativa moral e desinteressada, determinados a todos os sacrifícios, a fim de que vossa existência atinja sua perfeição.

Como o bicho da seda, rastejei penosamente, sustentado pelos bons Espíritos. Como ele, percorri minha prisão, tendo dado tudo o que tinha. Como a ele, meus contemporâneos me desdenharam, mas também, como ele, o Espírito renasce de suas cinzas para viver verdadeiramente e admirar esse mecânico dos mundos, esse Deus de luz e de bondade que quis mostrar à minha cidade natal esse Espírito de verdade que a vivifica e a consola.

JACQUARD

Após a leitura desta comunicação, na Sociedade de Paris, na sessão de 12 de fevereiro de 1864, foi evocado o Espírito de Jacquard, ao qual foram feitas as perguntas que se seguem. Seguem-lhes as respectivas respostas.


(SOCIEDADE ESPÍRITA DE PARIS, 12 DE FEVEREIRO DE 1864. MÉDIUM: SR. LEYMARIE)

Pergunta. ─ Sem dúvida vos deveis ter comunicado em Lyon, contudo não me lembro de ter visto comunicações vossas. Como foi que viestes dar ao Sr. Leymarie, em Paris, e não a um dos centros espíritas de Lyon a dissertação que acabamos de ler? Por que o Sr. Leymarie foi, de certo modo, constrangido a levantar-se cedo para escrever essa comunicação? Enfim, o que pensais do Espiritismo em Lyon?

Resposta. ─ É natural que me tenha comunicado tanto em Paris quanto em minha cidade natal, porque os pais do médium são lioneses e conheci particularmente o seu avô, que me prestou importante serviço em circunstância excepcional. Depois, o médium me foi designado pelo Espírito de seu avô, que realiza no mundo dos Espíritos uma missão idêntica à minha. Como essa missão me deixa alguns instantes livres, julguei não prejudicar o sono do médium cujo devotamento, como o de tantos outros, é dedicado à causa a que serve.

Eu também desejava que meus compatriotas tivessem minhas notícias pela Revista Espírita. Estando sempre junto a eles, partilhando de suas alegrias e tristezas, não cessando de lhes dizer: “Amai-vos e estimai-vos”, eu queria, unindo minha voz a outras mais influentes, encorajá-los, neste momento de desemprego e de sofrimentos, a se prepararem contra as eventualidades, contra o inimigo.

Por Lyon, podeis compreender o que pode o Espiritismo interpretado com bom senso. Em que se tornaram as violências do passado, essas recriminações injustas, esses levantes que ensanguentaram a colmeia lionesa? E essas casas noturnas, outrora testemunhas de cenas licenciosas, por que hoje se esvaziam? É que a família retomou seus direitos por toda parte onde penetrou o Espiritismo, onde sua influência benéfica se fez sentir, e por toda parte os operários espíritas voltaram a ter esperança e retornaram à ordem, ao trabalho inteligente, ao desejo de benfazer, à vontade de progredir.

Em meu tempo, foi a minha invenção que, não mais escravizando o tecelão à máquina, pôde regenerar todo um mundo de trabalhadores.

Por sua vez, é o Espiritismo que transforma o espírito dessa população, dandolhe a verdadeira iniciação à vida. É toda uma legião de bons Espíritos que vêm descerrar seus olhos e abrir seus corações, até agora pervertidos, à inteligência, ao amor.

Hoje o Espiritismo entra em nova fase, pois é o tempo das aspirações generosas. A burguesia, ainda submissa ao alto clero, fica como espectadora do combate pacífico que a ideia nova dá ao non possumus do passado. E todos esperam o fim da batalha, para colocar-se ao lado dos vencedores!

Assim, caros compatriotas, escutai a segui os conselhos de Allan Kardec, pois eles são os de vossos Espíritos protetores. É por meio deles que afastareis o perigo das colisões, e mesmo das coalizões. Quanto mais humildes e sérios fordes, mais fortes sereis.

Os arrogantes arriarão a bandeira ante a verdade que os ofuscará, e então se dará a transformação espiritual dessa grande cidade que todos amamos e que ama particularmente a Sociedade Espírita de Paris, por sua fé no futuro e pelas boas esperanças que soube realizar.

JACQUARD

Na mesma sessão, enquanto Jacquard escrevia a comunicação acima, outro médium, o Sr. d’Ambel, obtinha outra sobre o mesmo assunto, assinada pelo Espírito de Vaucanson.

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