Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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“Decididamente, o Espiritismo é uma coisa horrível, porque jamais nem ciência, nem doutrina herética, nem o próprio ateísmo levantaram contra si tão forte movimento no seio da Igreja, quanto ao Espiritismo. Todos os recursos imagináveis, leais ou não, foram postos em jogo, a princípio para abafá-lo, e depois, quando demonstrada a impossibilidade de liquidá-lo, para desnaturá-lo e apresentá-lo sob o negro aspecto de pecado. Pobre Espiritismo! Ele só pedia um lugarzinho ao sol para fazer que gratuitamente o mundo gozasse de seus benefícios. Ele não pedia a essas criaturas, que na qualidade de supostos discípulos do Cristo, do Homem-Amor, supõem trazer a palavra caridade inscrita em letras brilhantes em suas sobrepelizes, senão reconduzir ao bom caminho esses milhares de ovelhas que eles tinham sido incapazes de aí manter; não lhes pedia senão poder secundá-los em sua obra de devotamento, curando por uma fundada esperança os pobres corações roídos pela gangrena da dúvida, e esse pedido tão desinteressado, de tão pura intenção, foi respondido por um decreto de proscrição!

Na verdade, veem-se coisas estranhas neste mundo: Os mensageiros oficiais da caridade condenam mais de nove décimos dos homens porque eles escapam à sua influência, e condenam mais profundamente ainda os que querem salvar aqueles infelizes!

“Assim, sem sombra de dúvida, o Espiritismo é coisa muito culpável, porquanto é de tal modo combatido, e causa muita estranheza que uma doutrina tão perversa tenha conquistado tanto espaço em tão curto lapso de tempo. Mas o que deve parecer muito mais admirável é que esse abominável Espiritismo se tenha estabelecido tão solidamente e seja tão lógico, que todos os argumentos que lhe opõem, longe de fazê-lo desabar e de reduzi-lo a nada, longe mesmo de o abalar, ao contrário, vêm todos contribuir, por sua inanidade e manifesta impotência, para a sua solidificação e sua propagação.

Com efeito, é aos entraves que lhe quiseram suscitar que ele deve, em considerável parte, a rapidez de sua expansão, e as prédicas desenfreadas de certos adversários nossos certamente não auxiliaram pouco a sua generalização.

É assim que acontece na ordem das coisas. A verdade nada tem a temer de seus detratores, e são eles mesmos que involuntariamente contribuem para o seu triunfo.

O Espiritismo é um imenso foco de calor e de luz, e quem sopra sobre esse braseiro, além de infalivelmente queimar-se um pouco, não consegue outro resultado senão reavivá-lo ainda mais.

“Entretanto, as ordenações e as conferências parecem insuficientes para destruir o Espiritismo ─ estamos longe de negar essa patente insuficiência ─ assim, a Congregação romana acaba de pôr no índex todos os livros do Sr. Allan Kardec, livros que contêm o ensino universal dos Espíritos, aos quais todos nós, os espíritas, nos ligamos. Que nos permitam fazer a respeito as duas reflexões seguintes:

“Os livros espíritas em questão sem dúvida encerram, em toda a sua pureza, e com os desenvolvimentos que exige o estado atual do espírito humano, os ensinamentos e preceitos de Jesus, em quem os Espíritos reconhecem um Messias. Condenar esses livros, portanto, não é condenar, num mesmo golpe, as palavras do Cristo, e pôr esses livros no índex não é aí pôr, de certa forma, os Evangelhos, que estão de acordo conosco? Parece-nos que sim, mas é certo que não somos infalíveis como vós.

“Segunda reflexão: Esta medida que hoje tomam não é um tanto tardia? Por que esperar tanto tempo? Além de ser mais ou menos inexplicável (a menos que se creia que o Espiritismo vos pareça de tal modo verdadeiro e estejais de tal modo persuadidos de seu triunfo que durante muito tempo hesitastes em atacá-lo abertamente e de frente, e que um poderosíssimo interesse pessoal, pois não vos faremos a injúria de supor-vos ultra ignorantes, vos tenha induzido a fazê-lo, além de ser mais ou menos inexplicável, dizíamos nós, é ainda muito desajeitado. Com efeito, o Livro dos Espíritos, o Livro dos médiuns e a Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo estão atualmente nas mãos de milhares de pessoas, e duvidamos muito que a condenação da Congregação de Roma possa agora fazer com que se considere mau e abjeto o que todos julgaram grande e nobre.

“Seja como for, os livros espíritas foram postos no índex. Tanto melhor, porque muitos dos que ainda não os leram irão devorá-los! Tanto melhor, porque de dez pessoas que o percorrerem, pelo menos sete convencer-se-ão ou ficarão fortemente abaladas e desejosas de estudar os fenômenos espíritas. Tanto melhor, porque os nossos próprios adversários, vendo que seus esforços conduzem a resultados diametralmente opostos aos que esperavam, ligar-se-ão a nós, se eles possuírem a sinceridade, o desinteresse e as luzes que seu ministério comporta. Aliás, assim o quer a lei de Deus, porquanto nada no mundo pode ficar eternamente estacionário, mas tudo progride, e a ideia religiosa deve seguir o progresso geral, se não quiser desaparecer.

“Então, que nossos adversários continuem a sua cruzada. Eles já puseram em jogo as ordenações, os sermões, os cursos públicos, as influências ocultas e por vezes aparentemente vitoriosas, por causa do estado de dependência daqueles sobre os quais pesam tiranicamente; eles usaram o auto-de-fé, queimando publicamente nossos livros em Barcelona. Só tendo podido queimar alguns exemplares e vendo que eles substituídos em quantidade assombrosa, por fim os puseram no índex. Ah! Não sendo mais tolerada a inquisição, embora ela esteja longe de deixar de existir sob outra forma e com a ajuda das influências ocultas de que acabamos de falar, só lhes resta a excomunhão de todos os espíritas em massa, isto é, de notável porcentagem dos homens, e, em particular, de considerável parcela dos cristãos. (Não falamos senão dos espíritas confessos, pois inapreciável é o número dos que o são sem saber.)”

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