Num artigo biográfico sobre Méry, publicado pelo Journal Littéraire de 25 de setembro de 1864, encontra-se a seguinte passagem:
“Há teorias singulares que para ele são convicções.
“Assim, ele crê firmemente que viveu várias vezes; lembra-se das menores circunstâncias de suas existências precedentes e as detalha com uma nota de certeza que impõe como uma autoridade.
“Assim, ele foi um dos amigos de Virgílio e de Horácio, conheceu Augustus Germanicus e fez a guerra nas Gálias e na Germânia. Era general e comandava as linhas romanas quando estas atravessaram o Reno. Reconhecia nas montanhas lugares onde havia acampado, e nos vales os campos de batalha onde combateu. Ele se lembra de conversas em casa de Mecenas, que são o eterno objeto de seus pesares. Chamava-se Minius.
“Um dia, na sua vida atual, ele estava em Roma e visitava a biblioteca do Vaticano. Ali foi recebido por gente moça, noviços em longas vestes escuras, que se puseram a lhe falar no latim mais puro. Méry era bom latinista, no que se refere à teoria e às coisas escritas, mas ainda não havia experimentado conversar familiarmente na língua de Juvenal. Ouvindo esses romanos de hoje, admirando esse magnífico idioma, tão harmonizado com aqueles monumentos, com os costumes da época em que era usado, pareceu-lhe que um véu caía de seus olhos; pareceu-lhe que ele próprio havia conversado, em outros tempos, com amigos que se serviam dessa linguagem divina. Frases feitas e impecáveis saiam-lhe da boca; ele encontrou imediatamente a elegância e a correção; enfim, falou latim como fala francês; teve em latim o espírito que tem em francês. Nada disso podia fazer-se sem um aprendizado, e se ele não tivesse sido um súdito de Augusto, se não tivesse atravessado aquele século de todos os esplendores, não teria improvisado uma ciência, impossível de adquirir em poucas horas.
“Sua outra passagem na Terra aconteceu na Índia, por isso ele a conhece tão bem. Eis por que, quando ele publicou Guerre du Nizam, nenhum de seus leitores duvidou que ele tivesse morado muito tempo na Ásia. Suas descrições são vivas, seus quadros são originais, ele toca com o dedo os mínimos detalhes e é impossível não tenha visto o que conta, pois lá está o cunho da verdade.
“Ele afirma ter entrado naquele país com uma expedição muçulmana em 1035. Viveu lá durante cinquenta anos, viveu ali belos dias e ali se fixou para não mais sair. Lá ele ainda era poeta, mas menos letrado do que em Roma e em Paris. Inicialmente guerreiro e depois sonhador, guardou na alma as imagens empolgantes das margens do Rio Sagrado e dos ritos hindus. Ele tinha várias moradas, na cidade e no campo; orou nos templos dos elefantes; conheceu a civilização avançada de Java; viu de pé as esplêndidas ruínas que assinala e que ainda são tão pouco conhecidas.
É preciso ouvi-lo contar esses poemas, pois são verdadeiros poemas essas lembranças à maneira de Swedenborg. Ele é muito sério, não tenhais dúvida. Isto não é uma mistificação arranjada à custa dos ouvintes, é uma realidade de que ele consegue vos convencer.
“E suas doutrinas sobre a história, que ele possui admiravelmente! E suas pilhérias tão finas, que lançam uma luz nova sobre tudo quanto elas tocam! E seus relatos, que são romances, que quase nos fazem chorar, depois de não termos podido conter o riso! Tudo isto faz de Méry um dos mais maravilhosos homens dos tempos em que viveu, e mesmo daqueles em que sua alma errante esperava a vez para entrar num corpo e novamente fazer que dela falassem as gerações sucessivas.
“PIERRE DANGEAU”
O autor do artigo não acompanha este fato de nenhuma reflexão. Depois de ter exaltado o alto mérito de Méry e sua grande inteligência, teria sido inconsequente taxá-la de loucura. Se, pois, Méry é um homem de bom senso, de alto valor intelectual; se a crença de já ter vivido é nele uma convicção; se essa convicção nele não é produto de um sistema à sua maneira, mas o resultado de uma lembrança retrospectiva e de um fato material, não há aí alguma coisa que possa despertar a atenção de todo homem sério? Vejamos a que incalculáveis consequências nos conduz este simples fato.
Se Méry já viveu, não deve isto ser exceção, porque as leis da Natureza são as mesmas para todos, e assim, todos os homens também devem ter vivido; se se viveu, não é certamente o corpo que renasce, é, entretanto, o princípio inteligente, a alma, o Espírito, portanto, temos uma alma. Considerando-se que Méry conservou a lembrança de várias existências, porquanto os lugares lhe trazem à lembrança o que já viu outrora, com a morte do corpo a alma não se perde no todo universal. Ela conserva, pois, a sua individualidade, a consciência do seu eu.
Lembrando-se Méry do que ele foi há aproximadamente dois mil anos, em que se tornou sua alma no intervalo? Abismou-se no oceano do infinito ou perdida nas profundezas do espaço? Não, porque assim ela não reencontraria sua individualidade de outrora. Então deve ter ficado na esfera da atividade terrestre, vivendo a vida espiritual, em nosso meio ou no espaço que nos rodeia, até tomar um novo corpo. Considerando-se que Méry não está sozinho no mundo, deve haver em torno de nós uma população inteligente invisível.
Renascendo para a vida corpórea, após um intervalo mais ou menos longo, a alma renasce no estado primitivo, no estado de alma nova, ou aproveita as ideias adquiridas em suas existências anteriores? A lembrança retrospectiva resolve a questão por um fato: se Méry tivesse perdido as ideias adquiridas, não teria readquirido a língua que falava outrora; a visão dos lagares nada lhe teria trazido à lembrança.
Mas se já vivemos, por que não viveríamos novamente? Por que esta existência seria a última? Se renascemos com o desenvolvimento intelectual realizado, a intuição que trazemos das ideias adquiridas é um fundo que ajuda na aquisição de novas ideias, que tornam o estudo mais fácil. Se um homem for medianamente matemático numa existência, menos trabalho lhe será preciso em nova existência para ser um matemático completo. É uma consequência lógica. Se se tornou bom pela metade, se se corrigiu de alguns defeitos, necessitará de menos esforço para tornar-se melhor, e assim por diante.
Nada do que adquirimos em inteligência, em saber e em moralidade fica perdido. Quer morramos jovens ou velhos; quer tenhamos ou não tempo de desfrutar da existência presente, colheremos os seus frutos em existências subsequentes. As almas que animam os franceses civilizados de hoje podem, portanto, ser as mesmas que animavam os bárbaros francos, ostrogodos, visigodos, os gauleses selvagens, os conquistadores romanos, os fanáticos da idade média, mas que, a cada existência, deram um passo à frente, apoiando-se nos passos anteriores, e que avançarão ainda mais.
Eis, pois, resolvido o grande problema do progresso da Humanidade, esse problema contra o qual se chocaram tantos filósofos. Ele está resolvido pelo simples fato da pluralidade das existências. Mas quantos outros problemas vão encontrar a sua solução na solução deste! Que horizontes novos isto não abre! É toda uma revolução nas crenças e nas ideias.
Assim raciocinará o pensador sério, o homem refletido. Um fato é um ponto de partida, do qual ele tira consequências. Ora, quais são os pensamentos que o caso de Méry desperta no autor do artigo? Ele próprio os resume nestas palavras: “Há teorias singulares, que para ele são convicções.”
Mas se esse autor nisto vê apenas uma coisa bizarra, pouco digna de sua atenção, o mesmo não se daria com todo mundo. Uma pessoa encontra em seu caminho um diamante bruto, que não se digna apanhar, porque desconhece o seu valor, ao passo que outra saberá apreciá-lo e dele tirar proveito.
As ideias espíritas hoje se produzem sob todas as formas; estão na ordem do dia e a imprensa, sem querer confessá-las, as registra e as semeia em profusão, acreditando que apenas enriquece suas colunas de facécias. Não é admirável que todos os adversários da ideia, sem exceção, trabalhem sem tréguas na sua propagação? Eles gostariam de calar o que a força das coisas os arrasta a falar. Assim o quer a Providência ─ para os que creem na Providência.
Dirão que argumentamos com base num fato isolado, que não constitui lei, porque, se a pluralidade das existências é uma condição inerente à Humanidade, por que nem todos os homens se recordam, como Méry? A isto respondemos: Dai-vos ao trabalho de estudar o Espiritismo e o sabereis. Não repetiremos, pois, o que cem vezes foi demonstrado relativamente à inutilidade da lembrança para aproveitar a experiência adquirida em vidas precedentes e o perigo dessa lembrança para as relações sociais.
Há, porém, uma outra causa para o esquecimento, de certo modo fisiológica, devida, ao mesmo tempo à materialidade do nosso envoltório e à identificação do nosso Espírito pouco adiantado com a matéria. À medida que o Espírito se depura, os laços materiais são menos tenazes e o véu que obscurece o passado é menos opaco. A faculdade da lembrança retrospectiva é consequência, portanto, do desenvolvimento do Espírito. O fato é raro em nossa Terra, porque a Humanidade ainda é muito material, mas seria um erro supor que Méry seja um exemplo único. Deus permite, de vez em quando, que ele se apresente, a fim de conduzir os homens ao conhecimento da grande lei da pluralidade das existências, a única que explica a origem das qualidades boas ou más, mostra-lhe a justiça das misérias que suporta aqui e lhe traça a rota do futuro.
A inutilidade da lembrança para tirar proveito do passado é o que têm mais dificuldade de compreender os que não estudaram o Espiritismo. Para os espíritas é uma questão elementar. Sem repetir o que a respeito foi dito, a seguinte comparação poderá facilitar a compreensão.
O estudante percorre a série de classes, desde a oitava até a filosofia. O que aprendeu na oitava lhe serve para aprender o que ensinam na sétima. Suponhamos agora que no fim da oitava ele tenha perdido a lembrança do tempo passado nessa classe; nem por isso seu espírito será menos desenvolvido e equipado com os conhecimentos adquiridos; apenas não se lembrará nem onde nem como os adquiriu, mas, à vista do progresso realizado, estará apto a aproveitar as lições da sétima. Suponhamos, ainda, que na oitava tenha sido preguiçoso, colérico, indócil, mas que, tendo sido castigado e moralizado, seu caráter se tenha transformado, tornando-se laborioso, manso e obediente; ele levará essas qualidades para a nova classe, que lhe parecerá ser a primeira. De que lhe serviria saber que foi fustigado pela preguiça, se agora ele não é mais preguiçoso? O essencial é que ele chegue à sétima classe melhor e mais capaz do que era na oitava. Assim será de classe em classe.
Pois bem! O que não acontece ao escolar, nem ao homem nos diversos períodos de sua vida atual, existe para ele como lembrança de uma existência anterior: eis toda a diferença, mas o resultado é exatamente o mesmo, posto que em maior escala.
(Vide outro exemplo de lembrança do passado relatado na Revista de julho de 1860).