Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Na Revista Espírita de dezembro de 1862 e janeiro, fevereiro, março e maio de 1863, demos um relato circunstanciado e uma apreciação da epidemia demoníaca de Morzine, Alta Savoia, e demonstramos a insuficiência dos meios empregados para combatê-la. Posto o mal jamais tenha cessado completamente, tinha havido uma espécie de parada. Vários jornais, bem como a nossa correspondência particular, assinalam o reaparecimento do flagelo com nova intensidade. O Magnétiseur, jornal do magnetismo animal publicado em Genebra pelo Sr. Lafontaine, em seu número de 15 de maio de 1864, faz este relato detalhado:

“A epidemia demoníaca que desde 1857 reina no burgo de Morzine e nos casebres vizinhos, situados entre as montanhas da Alta Savoia, ainda não cessou a sua devastação. O governo francês, desde que a Savoia lhe pertence, preocupou-se com o caso. Enviou ao local homens especializados, inteligentes e capazes, inspetores dos hospícios de alienados, etc., a fim de estudar a natureza e observar a marcha dessa doença. Eles tomaram algumas medidas, tentaram o deslocamento e transportaram as moças doentes para Chambéry, Annecy, Thoron, etc., mas os resultados dessas tentativas não foram satisfatórios. Malgrado o tratamento médico reputado conveniente, as curas foram pouco numerosas, e quando as moças voltaram para casa, recaíram no mesmo estado de sofrimento.

Depois de inicialmente haver atingido as crianças e as mocinhas, a epidemia estendeu-se às mães de família e às senhoras idosas. Poucos homens lhe sentiram a influência, contudo, custou a vida de um. Esse infeliz meteu-se no estreito espaço entre o fogão e a parede, de onde dizia não poder sair e ali ficou um mês, sem se alimentar. Morreu de esgotamento e inanição, vítima de sua imaginação ferida.

“Os enviados do governo francês fizeram relatórios, num dos quais o Sr. Constant, entre outras coisas, declarava que o pequeno número de curas realizadas naquela população eram devidas ao magnetismo por mim empregado em Genebra, em moças e senhoras que me haviam trazido em 1858 e 1859.

“Nossos leitores sabem que esse flagelo, atribuído pelos bons camponeses de Morzine e, o que é mais desagradável, por seus guias espirituais, ao poder do demônio, se manifesta naqueles que são tomados por convulsões violentas acompanhadas de gritos, de dores no estômago e gestos da mais impressionante ginástica, sem falar das blasfêmias e de outros processos escandalosos, pelos quais os doentes se consideram culpados quando os obrigam a entrar numa igreja.

“Conseguimos curar vários desses doentes, que não sofreram outros ataques enquanto residiram em locais distantes das influências perniciosas do contágio e dos espíritos impressionados de sua região. Mas em Morzine o horrível mal não cessou de fazer devastações entre essa população infeliz. Ao contrário, o número das suas vítimas continuou crescendo. Em vão prodigalizaram preces e exorcismos; em vão levaram os doentes para hospitais de várias cidades distantes. O flagelo, que em geral ataca mocinhas cuja imaginação é mais viva, se encarniçou contra a sua presa, e as únicas curas constatadas foram as operadas por nós, das quais fizemos um relato em nosso jornal.

“Enfim, baldos de meios, quiseram tentar um grande golpe. Monsenhor Maguin, bispo de Annecy, mandou anunciar, há pouco tempo, que iria a Morzine, tanto para crismar os habitantes que ainda não haviam recebido esse sacramento quanto para ensinar os meios de vencer a terrível doença. A boa gente da aldeia esperava maravilhas dessa visita.

“Ela ocorreu no sábado, 30 de abril, e no domingo, 1º de maio, e eis as circunstâncias que a marcaram:

“No sábado, pelas quatro horas, o prelado aproximou-se da aldeia. Ele estava a cavalo, acompanhado por grande número de padres. Tinham procurado reunir os doentes na Igreja, e alguns tinham ido à força. Diz uma testemunha ocular que ‘A partir do momento em que o bispo pisou em terras de Morzine, os possessos, sentindo que ele se aproximava, foram tomados de convulsões as mais violentas, e particularmente aqueles que eram mantidas na igreja soltavam gritos e urros que nada tinham de humano. Todas as moças que em diversas épocas tinham sido atingidas pela doença recaíram, e muitas delas, que há cinco anos não haviam sofrido nenhum ataque, foram vitimadas pelo mais medonho paroxismo dessas crises horríveis.’

“O próprio bispo empalideceu ao ouvir os urros que acolheram a sua chegada. Não obstante, continuou a avançar para a igreja, malgrado a vociferação de alguns doentes que haviam escapado das mãos de seus guardas para se atirarem à sua frente e injuriá-lo.

“Ele apeou-se à porta do templo e entrou com dignidade. Apenas acabou de entrar, a desordem redobrou. Então foi uma cena verdadeiramente infernal.

“As possessas, cerca de setenta, com um único rapaz, praguejavam, rugiam, pulavam em todos os sentidos. Isto durou muitas horas, e quando o prelado quis fazer o crisma, o furor redobrou, se isto é possível. Eles tiveram que arrastá-las para junto do altar. Sete ou oito homens tiveram que reunir seus esforços para vencer a resistência de algumas, com ajuda dos policiais.

“O bispo deveria partir às quatro horas, mas às sete da noite ainda estava na igreja, onde não lhe puderam trazer três doentes. Conseguiram arrastar duas, arquejantes, com espuma na boca e blasfêmias nos lábios, aos pés do prelado. A última resistiu a todos os esforços. O bispo, vencido pela fadiga e pela emoção, teve que renunciar a lhe impor as mãos. Ele saiu da igreja tremendo, desequilibrado, com as pernas cobertas de contusões recebidas das possessas enquanto elas se agitavam sob sua bênção.

“Ele saiu da aldeia deixando aos habitantes boas palavras, mas sem lhes esconder a profunda impressão de estupor que havia experimentado em presença de um mal que não podia imaginar tão grande. Terminou confessando ‘que não se tinha sentido bastante forte para conjurar a chaga que tinha vindo curar e prometendo voltar o quanto antes, munido de poderes maiores.’

“Não fazemos hoje nenhuma reflexão. Limitamo-nos a relatar esses fatos deploráveis. Talvez no próximo número digamos tudo quanto para nós eles representaram de penoso.”
CH. LAFONTAINE.


Eis o relato sucinto que o Courrier des Alpes fez de tais fatos, e que diversos jornais reproduziram sem comentários:

“Ocupam-se muito em Annecy de um incidente, tão doloroso quão imprevisto, que assinalou a viagem de Monsenhor Maguin, nosso digno prelado. Todos conhecem a triste e singular doença que há anos aflige a comuna de Morzine, à qual não se sabe que nome dar. A Ciência aí se perde. Certo público caracterizou essa doença, que aflige principalmente as mulheres, chamando de possessos os que por ela são atingidos. Muitos habitantes da comuna, com efeito, estão persuadidos de que um malefício foi lançado sobre essa localidade.

“Lembram-se também que em 1862, certo número de pessoas atingidas por essa estranha doença, que produz todos os efeitos da loucura furiosa, sem lhe ter o caráter, foram espalhadas em diversos hospitais, em vários pontos da França, e voltaram perfeitamente curadas. Este ano a doença afetou outras pessoas e há algum tempo tomou proporções apavorantes.

“Foi nestas circunstâncias que o Monsenhor Maguin, só escutando a sua caridade, fez a sua visita pastoral a Morzine, e foi no momento em que ele administrava o crisma que de repente uma crise se apoderou de certo número desses infelizes que assistiam à cerimônia ou que dela participavam. Então houve um terrível escândalo na igreja.

“Os detalhes dessa cena são muito aflitivos para serem relatados. Limitar-me-ei a dizer que a administração superior comoveu-se com esse triste caso e que um destacamento de trinta homens da infantaria já foi mandado para lá. Sei de boa fonte que esse destacamento será duplicado e comandado por um oficial superior, encarregado de minuciosas instruções. Desnecessário dizer que outras medidas serão tomadas, tais como, por exemplo, o envio de médicos especialistas encarregados de estudar a doença. A força armada terá por missão proteger as pessoas.”

A Ciência aí se perde é uma confissão de impotência. Então, o que farão os médicos? Já não enviaram alguns muito capacitados? Dizem que vão mandar especialistas. Mas, como estabelecer sua especialidade numa afecção cuja natureza não se conhece, e na qual a Ciência se perde?

Concebe-se a especialidade dos oculistas para as afecções dos olhos e dos toxicologistas nos casos de envenenamento, mas aqui, em que categoria serão tomados? Entre os alienistas? Tudo bem, se for demonstrado que é uma afecção mental, mas os próprios alienistas fracassaram. Eles não estão de acordo nem quanto à causa nem quanto ao tratamento. Ora, se a Ciência aí se perde, o que é uma grande verdade, os alienistas não são mais especialistas que os cirurgiões. É verdade que lhes vão juntar uma força armada, mas já empregaram esse meio sem sucesso. Duvidamos muito que desta vez haja sucesso.

Se a Ciência falha, portanto, é que ela não está no caminho certo.O que há nisto de estranho? Tudo revela uma causa moral, e enviam homens que só acreditam na matéria. Eles procuram na matéria e aí nada encontram, o que prova superabundantemente que eles não procuram onde é preciso. Se se querem médicos mais especializados, que os escolham entre os espiritualistas e não entre os materialistas. Pelo menos aqueles poderão compreender que ali possa haver alguma coisa fora do organismo.

A religião não foi mais feliz. Ela usou suas munições contra os diabos, sem poder chamá-los à razão. É que então os diabos são os mais fortes, a menos que não sejam diabos. Os constantes insucessos, em casos semelhantes, provam uma de duas coisas: ou que ela não está certa, ou que é vencida por seus inimigos.

O mais claro de tudo isto é que nada do que empregaram deu resultado, e não terão melhor resultado enquanto se obstinarem em não buscar a verdadeira causa onde ela está. Um estudo atento dos sintomas demonstra, com a mais clara evidência, que a causa está na ação do mundo invisível sobre o mundo visível, ação que é a fonte de mais afecções do que se pensa, e contra as quais a Ciência falha porque ela combate o efeito e não à causa. Numa palavra, é o que o Espiritismo designa pelo nome de obsessão, levada ao mais alto grau, isto é, de subjugação e de possessão. As crises são efeitos consecutivos. A causa é o ser obsessor. É, portanto, sobre esse ser que se deve agir, como nas convulsões ocasionadas pelos vermes, se age sobre os vermes.

Dirão que o sistema é absurdo. Absurdo para os que nada admitem fora do mundo tangível, mas muito positivo para os que constataram a existência do mundo espiritual e a presença de seres invisíveis em torno de nós. Aliás, o sistema é baseado na experiência e na observação, e não numa teoria preconcebida. A ação de um ser invisível malévolo foi constatada numa porção de casos isolados, tendo completa analogia com os fatos de Morzine, de onde é lógico concluir que a causa é a mesma, já que os efeitos são semelhantes. A diferença está apenas na quantidade. Todos os sintomas, sem exceção, observados nos doentes daquela localidade, o foram nos casos particulares de que falamos. Ora, considerando-se que foram libertados os doentes atingidos pelo mesmo mal, sem exorcismos, sem medicamentos e sem polícia, o que se faz alhures poderia ser feito em Morzine.

Se assim é, perguntarão, por que os meios espirituais empregados pela Igreja são ineficazes?

Eis a razão:

A Igreja acredita nos demônios, isto é, numa categoria de seres de uma natureza perversa e votados eternamente ao mal, e por isso mesmo imperfectíveis. Com esta ideia, ela não procura melhorá-los. O Espiritismo, ao contrário, reconheceu que o mundo invisível é composto de almas ou Espíritos dos homens que viveram na Terra, e que, após a morte, povoam o espaço. Entre eles há bons e maus, como entre os homens. Dos que se compraziam, em vida, em fazer o mal, muitos se comprazem ainda, após a morte. Entretanto, pelo fato de pertencerem à Humanidade, eles estão subordinados à Lei do Progresso e podem melhorar-se. Portanto, eles não são demônios, no sentido da Igreja, mas Espíritos imperfeitos.

Sua ação sobre os homens se exerce tanto sobre o físico quanto sobre o moral. Daí uma porção de afecções que não têm sede no organismo, loucuras aparentes que são refratárias a qualquer medicação. É um novo ramo da patologia, que se pode designar pelo nome de patologia espiritual. A experiência ensina a distinguir os casos desta categoria daqueles que pertencem à patologia orgânica.

Não nos propomos a descrever o tratamento das afecções desse gênero, porque já foi indicada alhures. Limitar-nos-emos a lembrar que consiste numa tríplice ação: A ação fluídica que liberta o perispírito do doente da pressão do Espírito malévolo; o ascendente exercido sobre este último pela autoridade que sobre ele dá a superioridade moral; e a influência moralizadora dos conselhos que se lhe dá.

A primeira é simples acessório das duas outras. Sozinha ela é insuficiente, porque se momentaneamente se chega a afastar o Espírito, nada o impede de voltar à carga. É a fazê-lo renunciar voluntariamente a seus maus propósitos que a gente se deve aplicar, moralizando-o. É uma verdadeira educação a fazer, que exige tato, paciência, devotamento e, acima de tudo, uma fé sincera. Prova a experiência, pelos resultados obtidos, o poder deste meio, mas também demonstra que em certos casos é necessário o concurso simultâneo de várias pessoas unidas na mesma intenção.

Ora, o que faz a Igreja em semelhantes casos? Convicta de que trata com demônios incorrigíveis, ela não se ocupa absolutamente com a sua melhora. Ela acredita que os aterroriza e os afasta por meio dos signos, das fórmulas e dos aparelhos de exorcismo, do que eles se riem e pelo que são mais excitados a redobrar a malícia, como se constatou todas as vezes que tentaram exorcizar os lugares em que se produzem barulhos e perturbações. É um fato verificado pela experiência que os signos e os atos exteriores nenhum poder têm sobre eles, ao passo que foram vistos os mais endurecidos e os mais perversos cederem a uma pressão moral e voltarem aos bons sentimentos. Então, tem-se a dupla satisfação de livrar o obsedado e trazer a Deus uma alma transviada.

Talvez perguntem por que os espíritas, que estão convencidos da causa do mal e dos meios de combatê-lo, não foram a Morzine para ali operar milagres. Para começar, os espíritas não fazem milagres. A ação curativa que se pode exercer em semelhantes casos nada tem de maravilhoso ou de sobrenatural, porquanto ela repousa numa lei da Natureza, a das relações entre o mundo visível e o mundo invisível, lei que, dando a razão de certos fenômenos incompreendidos por falta de conhecimento, vem estreitar os limites do maravilhoso, em vez de alargá-los. Em segundo lugar, deve-se perguntar se o seu concurso seria aceito; se não teriam encontrado uma oposição sistemática; se, longe de serem ajudados, eles não teriam sido entravados pelas próprias pessoas que fracassaram; se não teriam sido insultados e maltratados por uma população superexcitada pelo fanatismo, acusados de feitiçaria junto aos próprios doentes, e de agirem em nome do diabo, como se viram provas em certas localidades.

Nos casos individuais isolados, os que se dedicam ao alívio dos aflitos geralmente são ajudados pela família e pela vizinhança, muitas vezes pelos próprios doentes, sobre cujo moral devem atuar por meio de palavras boas e encorajadoras, que devem excitar à prece. Semelhantes curas não se obtêm instantaneamente. Os que as empreendem necessitam de calma e de profundo recolhimento. Nas circunstâncias atuais, essas condições seriam possíveis em Morzine? É mais do que duvidoso. Quando vier o momento de deter o mal, Deus o proverá.

Aliás, os fatos de Morzine e sua continuação têm sua razão de ser, do mesmo modo que as manifestações do mesmo gênero em Poitiers. Eles se multiplicarão, quer isolada, quer coletivamente, a fim de convencer da impotência dos meios até hoje empregados para lhes pôr um termo, e de forçar a incredulidade a reconhecer, enfim, a existência de um poder extra-humano.

Para todos os casos de obsessão, de possessão e de quaisquer manifestações desagradáveis, chamamos a atenção para o que diz a respeito o Livro dos médiuns, no capítulo da obsessão; para os artigos da Revista relativos a Morzine, e relatados acima; para os nossos artigos de fevereiro, março e junho de 1864, relativos à jovem obsedada de Marmande; enfim, para os números 325 a 335 da Imitação do Evangelho. Aí serão encontradas as necessárias instruções para se guiarem em circunstâncias análogas.

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