Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Muito geralmente se pensa que hoje a Igreja admite o fogo do inferno como um fogo moral e não como um fogo material. Tal é, pelo menos, a opinião da maioria dos teólogos e de muitos padres esclarecidos. Contudo, não passa de opinião individual, e não uma crença adquirida pela ortodoxia, do contrário ela seria universalmente professada. Pode-se julgar pelo quadro abaixo, que um pregador traçou do inferno, durante a última quaresma, em Montreuil-sur-Mer:

“O fogo do inferno é milhões de vezes mais intenso que o da Terra, e se um dos corpos que ali queimam sem se consumir fosse lançado sobre o nosso planeta, empestá-lo-ia de ponta a ponta!

“O inferno é uma vasta e sombria caverna, eriçada de pregos pontiagudos, de lâminas de espadas bem afiadas, de navalhas bem cortantes, onde são precipitadas as almas dos danados!”

Seria supérfluo refutar esta descrição. Contudo, poder-se-ia perguntar ao orador, onde ele colheu um conhecimento tão preciso do lugar que descreve. Certamente não foi no Evangelho, onde não se trata de pregos, nem de espadas ou navalhas. Para saber se essas lâminas são bem amoladas e bem afiadas, é preciso têlas visto e experimentado. Será que, novo Enéas ou Orfeu, ele próprio teria descido a essa caverna sombria, que aliás tem um grande traço familiar com o Tártaro dos pagãos? Além disso, deveria ele ter explicado a ação que pregos e navalhas podem ter sobre as almas e a necessidade de serem bem afiados e de boa têmpera. Considerando-se que ele conhece tão bem os detalhes interiores do local, também deveria ter dito onde está situado. Não é no centro da Terra, pois supõe o caso de um desses corpos que ela encerra ser lançado em nosso planeta. Então é no espaço? Mas a astronomia aí lançou o seu olhar muito antes, sem nada descobrir. É verdade que não olhou com os olhos da fé.

Seja como for, o quadro é feito para atrair os incrédulos? É mais que duvidoso, pois é mais próprio para diminuir o número dos crentes.

Em contrapartida, citaremos o seguinte fragmento de uma carta escrita de Riom, mencionada pelo jornal la Vérité, no número de 20 de março de 1864:

“Ontem, para minha grande surpresa e grande satisfação, ouvi em pessoa esta confissão positiva sair da boca de um eloquente pregador, em presença de numeroso auditório admirado: Não há mais inferno. O inferno não existe mais... ele foi admiravelmente substituído. Os fogos da caridade, os fogos do amor resgatam as nossas faltas!

“Nossa divina doutrina (o Espiritismo) não está encerrada inteiramente nestas poucas palavras?”

É inútil dizer qual dos dois teve mais simpatias do auditório, mas o segundo poderia, até, ser acusado de heresia pelo primeiro. Outrora ele teria infalivelmente expiado na fogueira ou numa prisão a audácia de haver proclamado que Deus não manda queimar as suas criaturas.

Esta dupla citação nos sugere as seguintes reflexões:

Se uns acreditam na materialidade das penas e outros não, necessariamente uns têm razão, e os outros não têm.

Este ponto é mais capital do que parece à primeira vista, porque é o caminho aberto às interpretações numa religião fundada na unidade absoluta da crença, e que, em princípio, repele a interpretação.

É bem certo que até hoje a materialidade das penas fez parte das crenças dogmáticas da Igreja. Por que, então, nem todos os teólogos nelas acreditam? Como nem uns nem outros verificaram a coisa por si mesmos, o que leva alguns a ver apenas uma imagem onde outros veem a realidade, senão a razão, que para eles supera a fé cega? Ora, a razão é o livre exame.

Eis, pois, a razão e o livre exame entrando na Igreja pela força da opinião. Poder-se-ia dizer, sem metáfora, ter entrado pela porta do inferno. É a mão colocada no santuário dos dogmas, não pelos leigos, mas pelo próprio clero.

Não se julgue esta uma questão de mínima importância, pois ela contém em si o germe de toda uma revolução religiosa e de um imenso cisma, muito mais radical que o protestantismo, porque ele não ameaça apenas o catolicismo, mas o protestantismo, a Igreja Grega e todas as seitas cristãs. Com efeito, entre a materialidade das penas e as penas puramente morais, há toda a distância do sentido próprio ao sentido figurado, da alegoria à realidade. Desde que se admitam as chamas do inferno como alegoria, torna-se evidente que as palavras de Jesus: “Ide ao inferno eterno” têm um sentido alegórico. Deduz-se daí que o mesmo deve dar-se com muitas outras de suas palavras.

Mas a consequência mais grave é esta: A partir do momento em que se admite a interpretação deste ponto, não há motivo para rejeitá-la sobre outros; é, pois, como dissemos, a porta aberta à livre discussão, um golpe mortal no princípio absoluto da fé cega. A crença na materialidade das penas liga-se inteiramente a outros artigos de fé, que lhes são corolários. Transformada essa crença, as outras transformar-se-ão pela força das coisas, e assim sucessivamente.

Eis, já, uma explicação. Há poucos anos ainda, o dogma Fora do Igreja não há salvação estava em seu pleno vigor. O batismo era condição tão imperiosa que bastava que o filho de um herético o recebesse clandestinamente, e malgrado a vontade dos pais, para ser salvo, porque tudo quanto fosse rigorosamente ortodoxo era irremissivelmente condenado. Mas, tendo-se sublevado a razão humana contra a ideia desses milhões de almas votadas às torturas eternas, quando não tinha dependido delas ser esclarecidas na verdadeira fé; das inúmeras crianças que morrem antes de adquirir a consciência de seus atos, e que nem por isso são menos danadas, se a negligência ou a fé religiosa de seus pais as privou do batismo, a Igreja, a esse respeito, separou-se de seu absolutismo. Hoje ela diz, ou pelo menos diz a maioria de seus teólogos, que essas crianças não são responsáveis pelas faltas de seus pais; que a responsabilidade só começa no momento em que, tendo a possibilidade de serem esclarecidas elas se recusam, e que, portanto, essas crianças não são danadas por não haverem recebido o batismo; que o mesmo se dá com os selvagens e com os idólatras de todas as seitas.

Alguns vão mais longe, pois reconhecem que pela prática das virtudes cristãs, isto é, da humildade e da caridade, pode-se ser salvo em todas as religiões, porque depende também da vontade de um hindu, de um judeu, de um muçulmano, de um protestante, tanto quanto de um católico, viver cristãmente; que aquele que vive assim está na Igreja pelo Espírito, mesmo que não o esteja pela forma. Não está aí o princípio Fora da Igreja não há salvação alargado e transformado no Fora da Caridade não há salvação? É precisamente o que ensina o Espiritismo, entretanto, é exatamente por isto que ele é declarado obra do demônio.

Por que essas máximas seriam antes o sopro do demônio na boca dos espíritas do que na dos ministros da Igreja? Se a ortodoxia da fé está ameaçada, então não é pelo Espiritismo, mas pela própria Igreja, porque ela sofre, malgrado seu, a pressão da opinião geral, e porque, entre os seus membros, há alguns que veem as coisas mais do alto e nos quais a força da lógica supera a fé cega.

Sem dúvida pareceria temerário dizer que a Igreja marcha ao encontro do Espiritismo; é, entretanto, uma verdade que será reconhecida mais tarde. Mesmo marchando para combatê-lo, nem por isso ela deixa de assimilar, pouco a pouco, os seus princípios, sem disso dar-se conta.

Esta nova maneira de encarar o problema da salvação é grave. Posto acima da forma, o Espírito é um princípio eminentemente revolucionário na ortodoxia. Sendo reconhecida possível a salvação fora da Igreja, a eficácia do batismo é relativa, e não absoluta, pois ela se torna um símbolo. Considerando-se que a criança não batizada não responde pela negligência ou pela má vontade dos pais, em que se torna a pena em que incorreu todo o gênero humano pela falta do primeiro homem? Em que se torna o pecado original, tal qual o entende a Igreja?

Os maiores efeitos por vezes decorrem de pequenas causas. O direito de interpretação e de livre exame, uma vez admitido na questão, aparentemente pueril, da materialidade das penas futuras, é um primeiro passo cujas consequências são incalculáveis, porque é uma brecha na imutabilidade dogmática, e uma pedra arrancada arrasta outras. A posição da Igreja é embaraçosa, temos que convir. Contudo, só há um destes dois partidos a tomar: ficar estacionária, a despeito de tudo, ou avançar. Mas então ela não poderá escapar deste dilema: se ela se imobilizar de modo absoluto nos erros do passado, será infalivelmente superada, como já o é, pelo fluxo das ideias novas; depois será isolada e por fim desmembrada, como o seria hoje se tivesse persistido em expulsar de seu seio os que creem no movimento da Terra ou nos períodos geológicos da criação. Se ela entrar na via da interpretação dos dogmas, ela se transformará, e aí entra pelo simples fato de renunciar à materialidade das penas e à necessidade absoluta do batismo.

O perigo de uma transformação, aliás, está clara e energicamente formulado na seguinte passagem de uma brochura publicada pelo Pe. Marin de Boylesve, da Companhia de Jesus, sob o título O Milagre do Diabo, em resposta à Revue des Deux-Mondes:

“Há, entre outras, uma questão que, para a religião cristã, é de vida ou de morte: a questão do milagre. A do diabo não o é menos. Tirai o diabo, e o Cristianismo desaparece. Se o diabo não passar de um mito, a queda de Adão e o pecado original entrarão nas regiões da fábula. Por conseguinte, a redenção, o batismo, a Igreja, o Cristianismo, numa palavra, não têm mais razão de ser. Além disto, a Ciência não poupa esforços para apagar o milagre e suprimir o diabo.”

De sorte que, se a Ciência descobrir uma lei da Natureza que faça entrar nos fatos naturais um fato que é reputado miraculoso; se ela provar a anterioridade da raça humana e a multiplicidade de suas origens, todo o edifício se esboroa. Uma religião é muito frágil quando uma descoberta científica é para ela uma questão de vida ou morte. Eis uma confissão desajeitada. Por nossa conta estamos longe de partilhar das apreensões do Pe. Boylesve em relação ao Cristianismo. Dizemos que o Cristianismo, tal qual saiu da boca de Jesus, mas apenas tal qual saiu, é invulnerável, porque é a lei de Deus.

A conclusão é esta: Nenhuma concessão, sob pena de morrer. O autor esquece de examinar se há mais chances de viver na imobilidade. Nossa opinião é que há menos, e que ainda é melhor viver transformado do que efetivamente não viver.

Num caso como no outro, uma cisão é inevitável. Pode-se até dizer que já existe, pois a unidade doutrinária está rompida, porque não há acordo perfeito no ensino; porque uns aprovam o que outros censuram; porque uns absolvem o que outros condenam. Assim, veem-se fiéis indo de preferência àqueles cujas ideias mais lhes convêm. Dividindo-se os pastores, o rebanho igualmente se divide. Dessa divergência à separação, a distância não é grande. Um passo a mais e os que estão à frente serão tratados como heréticos pelos que ficarem na retaguarda. Ora, eis o cisma estabelecido. Aí está o perigo da imobilidade.

A religião, ou melhor, todas as religiões sofrem, malgrado seu, a influência do movimento progressivo das ideias. Uma necessidade fatal as obriga a se manterem no nível do movimento ascensional, sob pena de naufragarem. Assim, todas têm sido constrangidas, de tempos em tempos, a fazer concessões à Ciência e a abrandar o sentido literal de certas crenças ante a evidência dos fatos. A que repudiasse as descobertas da Ciência e as suas consequências, do ponto de vista religioso, mais cedo ou mais tarde perderia sua autoridade e o seu crédito e aumentaria o número dos incrédulos. Se uma religião qualquer pode ser comprometida pela Ciência, a falta não é da Ciência, mas da religião fundada sobre dogmas absolutos, em contradição com as leis da Natureza, que são leis divinas. Repudiar a Ciência é, pois, repudiar as leis da Natureza e, por isto mesmo, renegar a obra de Deus. Fazê-lo em nome da religião seria pôr Deus em contradição consigo mesmo e fazê-lo dizer: Eu estabeleci leis para reger o mundo, mas não acrediteis nessas leis.

Em todas as épocas, o homem não foi capaz de conhecer todas as leis da Natureza. A descoberta sucessiva dessas leis constitui o progresso. Daí, para as religiões, a necessidade de pôr as suas crenças e os seus dogmas em harmonia com o progresso, sob pena de receberem o desmentido dos fatos constatados pela Ciência. Só com esta condição uma religião é invulnerável. Em nosso entender, a religião deveria fazer mais do que se pôr a reboque do progresso, que ela só acompanha constrangida e forçada. Ela deveria ser a sentinela avançada, porque proclamar a grandeza e a sabedoria de suas leis é honrar a Deus.

A contradição existente entre certas crenças religiosas e as leis naturais produziu a maioria dos incrédulos, cujo número aumenta à medida que se populariza o conhecimento dessas leis. Se fosse impossível o acordo entre a Ciência e a religião, não haveria religião possível. Proclamamos a plenos pulmões a possibilidade e a necessidade desse acordo, porque, em nossa opinião, a Ciência e a religião são irmãs, para a maior glória de Deus, e devem completar-se reciprocamente, em vez de se desmentirem mutuamente. Elas estender-se-ão as mãos, quando a Ciência não vir na religião nada de incompatível com os fatos demonstrados, e a religião não mais tiver que temer a demonstração dos fatos. Pela revelação das leis que regem as relações entre o mundo visível e o invisível, o Espiritismo será o traço de união que lhes permitirá olhar-se face a face, uma sem rir, a outra sem tremer. É pela concordância da fé e da razão que ele diariamente reconduz tantos incrédulos a Deus.

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