Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Os fatos noticiados em nosso último número, sobre os quais havíamos adiado a nossa opinião, parecem definitivamente assentados como fenômenos espíritas. Um exame atento das circunstâncias de detalhes não permite confundi-los com atos de malevolência ou de brincadeira. Parece difícil que gente mal-intencionada pudesse escapar à atividade da vigilância exercida pela autoridade, e sobretudo que possa agir no exato momento em que são vigiados, sob o olhar dos que os buscam e aos quais certamente não falta vontade de descobri-los.

Tinham feito exorcismos, mas depois de alguns dias de suspensão, os barulhos recomeçaram com outro caráter. Eis o que a propósito diz o Journal de la Vienne, em seus números de 17 e 18 de fevereiro:

“Recordamo-nos que em janeiro último, fazendo a sua solene aparição em Poitiers, os Espíritos batedores estabeleceram-se na Rua Saint-Paul, na casa situada perto da antiga igreja designada por esse nome, mas sua demora entre nós tinha sido de curta duração e tinha-se o direito de pensar que tudo estava acabado, quando, anteontem, os ruídos que tão fortemente haviam agitado a população se reproduziram com nova intensidade.

“Assim, os diabos negros voltaram à casa da senhorita de O... Apenas não são mais Espíritos batedores, mas atiradores, fazendo detonações formidáveis. Celebraremos sua festa no dia de Santa Bárbara, padroeira dos artilheiros. Sempre há aqueles que anseiam pelo recomeço das procissões de curiosos, e que a polícia interrogue todos os ecos para se guiar através do nevoeiro do outro mundo.

“Contudo, é de esperar que desta vez se descubram os autores dessas mistificações de mau gosto, e que a justiça saiba bem provar aos exploradores da credulidade humana que os melhores Espíritos não são os que fazem mais barulho, mas os que sabem calar ou que só falam quando necessário.”

A. PIOGEARD


“Voltamos sempre à Rua Saint-Paul, sem poder penetrar o mistério infernal.

“Quando interrogamos alguém que passeia com ar preocupado diante da casa da senhorita de O..., a resposta invariável é: ‘De minha parte nada ouvi, mas alguém me disse que as detonações eram muito fortes.’ Isto não deixa de ser embaraçoso para a solução do problema.

“Contudo, é certo que os Espíritos possuem algumas peças de artilharia e mesmo de bem grosso calibre, porque o barulho resultante tem uma certa violência e dizem que se assemelha ao produzido por pequenas bombas.

“Mas de onde vêm? Impossível até agora determinar a sua direção. Eles não vêm do subsolo, desde que tiros de pistola dados no porão não se ouvem no primeiro andar.

“É, pois, nas regiões superiores que é preciso esforçar-se para apanhá-los, contudo, todos os processos indicados pela ciência ou pela experiência para atingir esse resultado resultaram impotentes.

“Seria necessário, então, concluir que os Espíritos possam impunemente atirar nos pardais e perturbar o repouso dos cidadãos sem que seja possível atingi-los? Esta solução seria muito rigorosa. Com efeito, por certos processos, ou em virtude de alguns acidentes de percurso, podem produzir-se efeitos que à primeira vista surpreendem, mas dos quais se admiram, mais tarde, por não haverem compreendido o seu mecanismo elementar. São sempre as coisas mais simples que escapam à apreciação do homem.

“É forçoso crer, portanto, que se esses atiradores do outro mundo neste momento têm ao seu lado os que se riem, eles estão longe de ser inatingíveis.

“Os mistificadores podem ficar persuadidos de que os mistificados terão a sua vez.”

A. PIOGEARD


Parece-nos que o Sr. Piogeard se debate singularmente contra a evidência. Dirse-ia que, malgrado seu, uma dúvida desliza em seu pensamento; que ele teme uma solução contrária às suas ideias; numa palavra, ele nos dá a impressão dessas pessoas que, recebendo uma má notícia, exclamam: “Não, não! Isto não é possível. Não quero acreditar nisto!” Eles fecham os olhos para não ver, a fim de poderem afirmar que nada viram.

Por um dos parágrafos acima ele parece lançar dúvidas sobre a própria realidade dos ruídos, porque, em sua opinião, todos aqueles a quem interrogam dizem nada ter ouvido. Se ninguém tinha ouvido, não compreendemos por que tanto rumor, pois não haveria nem mal-intencionados nem Espíritos.

Num terceiro artigo sem assinatura, e que o jornal diz que deve ser o último, ele dá, enfim, a solução desse problema. Se os interessados não a julgarem concludente, será sua falta e não dele.

“Há algum tempo, em cada correio recebemos cartas, quer de nossos assinantes, quer de pessoas estranhas ao departamento, nas quais nos pedem explicações circunstanciadas sobre as cenas das quais a casa de O... é o teatro. Dissemos tudo quanto sabíamos; repetimos em nossa publicação tudo quanto se diz em Poitiers a esse respeito. Considerando-se que nossas explicações não pareceram completas, eis, pela última vez, nossa resposta às perguntas que nos são dirigidas:

“É perfeitamente certo que ruídos singulares são ouvidos todas as noites, das seis à meia noite, na Rua Saint-Paul, na casa de O... Esses ruídos se parecem com os produzidos por descargas sucessivas de um fuzil de dois canos. Eles abalam as portas, as janelas e as paredes. Não se percebe luz nem fumaça, e nenhum cheiro é sentido. Os fatos foram constados pelas pessoas mais dignas de fé em nossa cidade, por inquéritos da polícia e da guarda civil, a pedido da família do Sr. Conde de O...

“Existe em Poitiers uma associação de espiritistas, mas, a despeito da opinião do Sr. D..., que nos escreve de Marselha, não passou pela cabeça de nenhum dos nossos concidadãos, muito espirituosos para isso, que os espiritistas estivessem de alguma forma envolvidos na aparição dos fenômenos. O Sr. H. de Orange, acredita em causas físicas, em gases que se desprendem de um antigo cemitério sobre o qual teria sido construída a casa de O... A casa de O... foi construída sobre a rocha, e não existe nenhum subterrâneo a ela conducente.

“Por nosso lado, pensamos que os fatos estranhos e ainda não explicados que há mais de um mês perturbam o repouso de uma família respeitável não ficarão para sempre na condição de mistério. Cremos numa artimanha muito engenhosa, e esperamos ver em breve os fantasmas da Rua Saint-Paul entrando na polícia correcional.”

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