Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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O número da Revista de junho estava composto e em parte impresso, quando nos veio a carta que segue, do Pe. Barricand, ao qual mandamos responder como se vê adiante.

“Senhor,

“O Sr. Allan Kardec encarrega-me de acusar o recebimento da carta que lhe dirigistes, e vos dizer que era supérfluo pedir a sua inserção na Revista. Bastaria que lhe tivésseis dirigido uma retificação motivada, para que ele tivesse considerado como um dever de imparcialidade reconhecer o direito. O número da Revista de 1.º de junho já estava pronto no momento da recepção de vossa carta, pelo que aparecerá no número seguinte.

Recebei, etc.

“Lyon, 19 de maio de 1864.

“Senhor,

“Acabo de ler no número de maio da Revista Espírita um artigo no qual meu curso é de tal modo fantasiado e desfigurado, que me vejo na necessidade de lhe dar uma resposta, para destruir a impressão desfavorável que esse artigo deve ter deixado em vossos leitores, no tocante à minha pessoa e ao meu ensino.

“Esse artigo é intitulado: Cursos públicos de Espiritismo em Lyon. Jamais se viu tal designação figurar em nenhum de meus programas, e se alguém veio ao meu curso na crença de que assistiria a lições de Espiritismo, não foi, como insinuais, porque tivesse sido seduzido por um título atraente e um pouco enganador, mas unicamente porque não se deu ao trabalho de ler o que dizem os nossos cartazes.

“Dizeis aos vossos leitores que o jornal La Vérité levanta várias de nossas asserções, e ainda que ele se encarrega de nos refutar, o que, não temos dúvida, acrescentais, ele fará maravilhosamente, a julgar por seu começo. Mas não dais a conhecer essas asserções. É verdade que o nosso contraditor afirma que não é necessário haver feito a sua teologia para tomar de uma pena, e que ele não temerá perseguir-nos apenas com as armas da razão e da fé em Deus, dada pelo Espiritismo;... que a tese paradoxal que sustentamos não se discute;... que nós não nos faríamos de rogado para acompanhar o Espiritismo ao cemitério, mas que não deve haver pressa em dobrar a finados;... que, por sua própria conta, ele está em condições de amamentar por si mesmo, e sem muito trabalho, essa criancinha que se chama a Verdade;... que o sangue do futuro corre mais quente do que nunca nas veias do espírita, e que ele tem a confiança íntima que um dia nos será dado o tom definitivo do mais magnífico TE DEUM.

“O Sr. Allan Kardec está em perfeitas condições de imaginar que essas asserções rebatem as nossas e de assegurar aos seus leitores que, a julgar pelo começo, o diretor do Vérité desempenhar-se-á maravilhosamente da tarefa que se impôs, de nos refutar. No entanto, temos dificuldade em crer que fora da escola espírita tenham a mesma opinião, e chegaríamos até a suspeitar que, se tivesse sido conveniente ao Sr. Diretor da Revista Espírita pôr à disposição dos assinantes, na íntegra, o artigo em que o nosso antagonista aceita a luta, vários deles não teriam hesitado em considerá-lo como um princípio que promete uma refutação maravilhosa de nossas lições contra o Espiritismo.

“Mas, talvez digais, o resumo que dá o Vérité de uma parte de vossa argumentação não a reproduz fielmente? Não, senhor, esse resumo é uma paródia burlesca. Tudo aí é falsificado: nossa linguagem, nossas ideias e nosso raciocínio. Essas expressões altivas: Tenho coragem de vos provar, pedestal pretensioso... relatório enfático, cifras ambiciosas, tudo comédia. A caixa do Sr. Allan Kardec está bem fornida, não é justo que ajude aos seus discípulos, etc., jamais entraram em nossas lições e o Sr. Diretor do Vérité teria poupado o trabalho de no-las atribuir, se tivesse compreendido ou querido compreender o verdadeiro estudo da questão de que tratamos à sua frente.

“Com efeito, de que se tratava? De dar a conhecer ao nosso auditório qual era, em fins de 1862 e de 1863, a situação do Espiritismo em Lyon. Ora, para não nos apoiarmos senão em dados que nenhum espírita pode refutar, em vez de falar de vossas viagens e avaliar o que pudésseis dispor em vossa caixa, contentamo-nos em pôr em oposição vossa brochura intitulada Viagem espírita em 1862 e o vosso artigo da Revista Espírita, de janeiro de 1864, no qual dais conta aos assinantes da situação do Espiritismo em 1863. Da diferença tão marcante de tom e de linguagem notados nos dois documentos, julgamos dever concluir, não como nos faz dizer o Vérité, que o Espiritismo está morto ou agonizante, mas que sofre, ao menos em Lyon, um momento de parada, se já não entrou num período de decadência. Em apoio a esta conclusão, lembramos as confissões do diretor do Vérité, porque, enquanto o Sr. Allan Kardec afirma que em 1862 podiam-se contar, sem exagero, de 25 a 30 mil espíritas lioneses, o Sr. Edoux não tem dificuldade em reconhecer que o seu número hoje não passa de dez mil. Ora, que outro nome, senão o de decadência, pode ser dado a tão sensível diminuição?

“Parece-nos que não há nada mais fácil do que apreender o verdadeiro sentido de tão simples argumento e de fazer-lhe uma análise exata. Mas o Sr. diretor do Vérité, em vez de limitar-se a reproduzir fielmente a nossa exposição, julgou que fosse mais picante dar aos leitores uma bonita amostra de nosso curso, inserindo-a no seu jornal.

“É, entretanto, esse relato, onde a cada linha ressalta a falta de lógica e de sinceridade, que julgastes dar como fundamento a essas insinuações malévolas que tendem a nos apresentar aos vossos leitores como um homem que se imiscui nos vossos atos particulares, que de uma simples suposição tira uma consequência absoluta; que calcula o que há no fundo de vossa caixa para disso fazer o texto de um ensinamento público. Tais acusações, lançadas ao acaso e sem sombra de provas, caem por si mesmas. Conforme a expressão de um autor antigo, basta publicá-las para as refutar: Vestra exposuisse refellisse est.

“Terminando o vosso artigo, julgastes dever ensinar-nos como deve ser feito um curso de teologia. Por nossa vez, abster-nos-emos de vos dar lições, mas que nos seja permitido, pelo menos, vos dar um caridoso conselho, se vos quiserdes poupar muitos desmentidos, de não aceitar mais, senão com certa desconfiança, os relatórios de vossos correspondentes, porque, tomando de empréstimo a linguagem do nosso bom La Fontaine:

‘Nada é mais perigoso que um amigo ignorante.

Melhor seria um inimigo sábio.’

“Peço-vos, e se necessário requeiro, a inserção desta resposta integral no vosso próximo número.

“Recebei a certeza de meus elevados sentimentos.

“A. BARRICAND

“Deão da Faculdade de Teologia.”


As palavras contra as quais reclama o Pe. Barricand são estas: “É fácil ao Sr. Allan Kardec fazer esta afirmação: O Espiritismo está mais forte do que nunca, e citar como principal prova a criação do Ruche e do La Vérité! Senhores, tudo comédia!... Esses dois jornais podem existir, sem que se deva concluir precisamente que o Espiritismo tenha dado um passo à frente... Se me objetardes que esses jornais têm despesas e que para pagá-las há necessidade de assinantes, ou de impor sacrifícios esmagadores, ainda responderei: Comédia!... A caixa do Sr. Allan Kardec é bem fornida, ao que dizem. Não é justo e racional que ele ajude os seus discípulos?”

Elas foram extraídas textualmente do jornal La Vérité de 10 de abril de 1864. Apenas acrescentamos as reflexões muito naturais que as mesmas nos sugeriram, dizendo que a ninguém reconhecemos o direito de avaliar a nossa bolsa e de prejulgar o uso que fazemos do que pensam que possuímos e, ainda menos, de fazer disso texto de um ensinamento público. (Ver a Revista do mês de maio)

Sem verificar se o Pe. Barricand pronunciou as palavras que contesta, ou o equivalente, é de admirar não tenha ele, de saída, pedido a retificação ao jornal de onde as extraímos. Esse jornal é de 10 de abril. Ele aparece em Lyon todas as semanas e lhe é remetido. Ora, sua carta é de 19 de maio e no intervalo cinco números tinham sido publicados. De duas, uma: suas palavras são justas, ou são falsas. Se são falsas, é que o redator, que declara, no artigo, haver assistido à lição do professor, as inventou. Como é então que nesse mesmo artigo ele protesta contra a alegação de ser subvencionado por nós, dizendo que não necessita do auxílio de ninguém e pode andar sozinho? Ter-se-ia equivocado estranhamente. Como é que em presença dessa dupla asserção, o Pe. Barricand deixou passar mais de um mês sem protestar? Seu silêncio, quando não podia ignorá-lo, deve ter sido considerado por nós como um assentimento, pois é muito evidente que se tivessem sido retificadas no Vérité, nós não as teríamos reproduzido.

Em sua carta, o Pe. Barricand volta à tese que sustentou, concernente à suposta decadência do Espiritismo, mas restringindo o alcance de suas palavras. Considerando-se que tal pensamento o tranquiliza, nós lho deixamos de boa vontade, pois nenhum interesse temos em dissuadi-lo. Assim, que ele tire da ausência de cifras precisas sobre número de espíritas as induções que quiser, o que não impedirá que as coisas sigam o seu curso. Pouco nos importa se os nossos adversários acreditam ou não no progresso do Espiritismo. Ao contrário, quanto menos acreditarem, menos dele se ocuparão e mais nos deixarão tranquilos. Far-nosemos até de mortos, se isto lhes for agradável. A eles caberia não nos despertar. Mas, enquanto gritarem, fulminarem, anatematizarem; enquanto usarem de violências e de perseguições, não levarão ninguém a acreditar que estejamos mortos e bem mortos.

Até aqui o clero tinha pensado que um meio de apavorar, em relação ao Espiritismo, fazendo que o repelissem, era exagerar o número de seus adeptos além da medida. Em quantos sermões, ordenações e publicações de todo gênero, estes não foram apresentados como invasores da Sociedade e, por seu aumento, pondo a Igreja em perigo? Atestamos o progresso das ideias espíritas que, melhor do que quaisquer outros, nós mesmos constatamos, mas jamais caímos em cálculos hiperbólicos; jamais dissemos, como certo pregador, que só em Bordeaux, em pouco tempo, foram vendidos mais de 170.000 francos de nossos livros. Não fomos nós que dissemos que havia 20 milhões de espíritas na França, nem, como numa obra recente, 600 milhões no mundo inteiro, o que equivaleria a mais da metade da população total do globo. O resultado desses quadros foi muito diferente do que eles esperavam. Ora, se quiséssemos proceder por indução, suspeitaríamos que o Pe. Barricand quisesse seguir uma tática contrária, atenuando os progressos do Espiritismo, em vez de exaltá-los.

Seja como for, a estatística exata dos espíritas é uma coisa impossível, dado o número imenso de pessoas simpáticas à ideia e que não têm qualquer motivo para se porem em evidência, pois os espíritas não estão arregimentados como numa confraria. Enganar-nos-íamos muito se tomássemos por base o número de grupos oficialmente conhecidos, visto que menos da milésima parte dos adeptos os frequentam. Conhecemos algumas cidades onde não há nenhuma sociedade regular e nas quais há mais espíritas que em outras que contam com diversas sociedades. Aliás, já o dissemos, as sociedades absolutamente não são uma condição necessária à existência do Espiritismo. Algumas se formam hoje e desaparecem amanhã, sem que a marcha do Espiritismo seja entravada de modo algum. O Espiritismo é uma questão de fé e de crença e não de associação.

Quem quer que partilhe de nossas convicções relativas à existência e à manifestação dos Espíritos e das consequências morais daí decorrentes, é espírita de fato, sem que seja necessário estar inscrito num registro ou matrícula ou receber um diploma. Uma simples conversa basta para dar a conhecer os que são simpáticos à ideia ou a repelem, e por aí se julga se ela ganha ou perde terreno.

A avaliação aproximada do número de adeptos repousa nos relatórios internos, pois não existe qualquer base para o estabelecimento de uma cifra rigorosa, cifra, aliás, incessantemente variável. Uma carta, por exemplo, vai nos revelar toda uma família espírita, e por vezes várias famílias de que não tínhamos nenhum conhecimento. Se o Pe. Barricand visse a nossa correspondência talvez mudasse de opinião. Mas não ligamos a isso.

A oposição feita a uma ideia está sempre na razão de sua importância. Se o Espiritismo tivesse sido uma utopia, dele não se teriam ocupado, como de tantas outras teorias. O encarniçamento da luta é indício certo de que o tomam a sério. Mas se há luta entre o Espiritismo e o clero, a história dirá quais foram os agressores. Os ataques e as calúnias de que ele foi objeto forçaram-no a usar as mesmas armas com que o combatiam e a mostrar o lado vulnerável dos adversários. Atacando-o, detiveram a sua marcha? Não. É um fato contatado. Se o tivessem deixado em paz, nem mesmo o nome do clero teria sido pronunciado, e talvez ele tivesse ganho com isso. Atacando-o em nome dos dogmas da Igreja, forçaram-no a discutir o valor das objeções e, por isto mesmo, a entrar num terreno que ele não tinha nenhuma intenção de abordar.

A missão do Espiritismo é combater a incredulidade pela evidência dos fatos; é reconduzir a Deus os que o negligenciavam; é provar o futuro aos que criam no nada. Por que, então, a Igreja lança anátema sobre aqueles aos quais ele dá essa fé, mais do que quando em nada acreditavam? Repelindo os que, por força do Espiritismo, acreditam em Deus e em sua alma, é constrangê-los a buscar um refúgio fora da Igreja. Quem primeiro proclamou que o Espiritismo era uma religião nova, com seu culto e seus sacerdotes, senão o clero? Onde se viu, até o presente, o culto e os sacerdotes do Espiritismo? Se um dia ele se tornar uma religião, o clero é que o terá provocado.

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