Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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É evidente que esse Espírito está no bom caminho; há nele uma luta de bom augúrio, pois só pede para ser esclarecido.

Contudo, suas ideias se ressentem de certos preconceitos. Como muitos que creem neles encontrar uma desculpa, ele se prende à Sociedade. Mas, que é o que torna a Sociedade má, senão a gente viciosa? Sem dúvida a Sociedade muito deixa a desejar, no tocante às suas instituições, mas desde que nela se encontram pessoas decentes e que cumprem os seus deveres, todos poderiam fazer o mesmo, pois ela não obriga ninguém a fazer o mal. Era a Sociedade que obrigava Luís Henrique a abandonar aquela mulher e seu filho? Se não reconheceu este, por que o perdeu de vista, sem se inquietar com sua existência? Foram os preconceitos sociais que o impediram de dar seu nome àquela mulher? Não, porque ele tinha por motivação apenas as suas paixões. Era a instrução que lhe faltava? Não, pois pertencia a classe alta. Não é a Sociedade a culpada em relação a ele; ela nada lhe recusou, pois era um de seus favoritos em tudo. Ele, pois, é que foi culpado para com a Sociedade, porque agiu livremente, voluntariamente e com conhecimento de causa. Quem lançou seu filho no caminho dos desbordamentos? O acaso? Não. Foi a Providência, a fim de que o remorso, que mais tarde deveria ser a sua consequência, servisse ao seu adiantamento.

A verdadeira chaga da Sociedade, a causa primeira de todas as desordens, é a incredulidade. A negação do princípio espiritual, a crença no nada após a morte, as ideias materialistas, numa palavra, altamente preconizadas por homens influentes, se infiltram na juventude que as suga, por assim dizer, com o leite. O homem que só acredita no presente quer gozar a todo o preço e é consequente consigo mesmo, pois nada espera no além-túmulo. Ele não espera nada e, consequentemente, nada teme. Se Luís Henrique tivesse tido fé em sua alma e no futuro, teria compreendido que a vida corporal é fugidia e precária e não a teria estabelecido como objetivo único; sabendo que nada do que aqui se adquire é perdido, ter-se-ia preocupado com sua sorte futura, ao passo que agiu como aquele que come o seu capital e joga a última cartada.

Quantas desordens, quantas misérias, quantos crimes têm sua fonte nessa maneira de encarar a vida! Quais os primeiros culpados? Os que a erigem em dogma, em crença, troçando e tratando como loucos os que acreditam que nem tudo está na matéria e no mundo visível. Luís Henrique não foi bastante forte para resistir a essa corrente de ideias; sucumbiu, vítima de suas paixões, que encontravam uma justificação no materialismo, ao passo que uma fé sólida e raciocinada lhe teria posto um freio mais poderoso que todas as leis repressivas, que não podem atingir todos os erros. O Espiritismo dá essa fé, por isso opera tão numerosas transformações morais.

As três últimas comunicações confirmam a primeira, obtida por outro médium; evidentemente o fundo do pensamento é o mesmo. Aí se nota o progresso operado nesse Espírito, e nelas se podem colher vários ensinamentos.

Na primeira, fazendo a confissão de suas faltas, ainda não há arrependimento sério, nem resolução tomada; ele quase se lamenta por ter sido evocado.

Na segunda, diz: “Como sofro desde que fui evocado por vosso presidente!” Estas palavras justificariam o dito de certas pessoas, que pretendem que a evocação perturba o repouso dos mortos? Por certo que não, porque, em primeiro lugar, eles só vêm quando lhes convém; em segundo lugar, porque, em sua maioria, testemunham satisfação por serem chamados, quando o são por um sentimento simpático e benevolente. Certos culpados só vêm com repugnância e, neste caso, a isto não são constrangidos pelo evocador, mas por Espíritos superiores, com vistas a seu adiantamento. Sua repugnância é a do criminoso conduzido ao tribunal. A evocação dos Espíritos culposos tem como objetivo e resultado a sua melhora. A contrariedade momentânea que lhes causa lhes é vantajosa, porque excitando-os ao arrependimento, abrevia os sofrimentos que suportam no mundo dos Espíritos. Seria, então, mais caridoso deixá-los na abjeção em que se acham, do que dali tirálos? O sofrimento que disso resulta é como o que o médico causa ao doente para curá-lo. Tirai da lama um homem embrutecido e ele lamentar-se-á. Dá-se o mesmo com os Espíritos.

Nas comunicações desse Espírito encontra-se um pensamento análogo ao que exprimia Latour sobre o sofrimento causado pelo arrependimento. Explicamos a causa de tal sentimento na Revista de novembro de 1864; é o mesmo que leva este a dizer: “Sofro a partir de quando fui evocado”, e “O remorso me persegue; sofro muito”. É, pois, o remorso que o faz sofrer, mas é esse remorso que deve salvá-lo, e foi a evocação que o provocou. Mas ele acrescenta estas palavras notáveis: “Compreendo a necessidade de sofrer; compreendo que a impureza só se torna pura depois de transformada ao contacto do fogo.” E depois: “Se o arrependimento duplica o sofrimento, sei que esse sofrimento apenas durará algum tempo, e que a felicidade me aguarda após a depuração.”

Esta certeza o faz dizer: “Quero sofrer, sofrer muito, para merecer mais depressa ser feliz.” Depois disto, é de admirar que um Espírito escolha terríveis provações em nova existência? Não é o caso de um doente que se resigna a uma operação dolorosa para ficar bom, ou de um homem que se expõe a todos os perigos, que suporta todas as misérias, todas as fadigas e todas as privações, visando a fortuna ou a glória? Assim, nada há de irracional no princípio da livre escolha das provas da vida. Para aproveitá-las, a condição é não recuar. Ora, não suportá-las com coragem e resignação é recuar.

Qual será a sorte de Luís Henrique em nova existência? Como expiou cruelmente suas faltas em sua última existência; como no estado de Espírito seu arrependimento é sincero e suas boas resoluções sérias, é provável que seja posto em condições de reparar os erros, fazendo o bem. Mas como ele pagou sua dívida de sofrimentos corporais, não terá mais que passar pelas mesmas vicissitudes.

É o que lhe almejamos, em vista do que oramos por ele.

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