Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Num catecismo de perseverança da diocese de Langres, ao tratar da ordenação relatada no artigo acima, foi dada uma instrução sobre o Espiritismo, como assunto a ser tratado pelos alunos.

Eis a narração textual de um deles:

“O Espiritismo é obra do diabo, que o inventou. Entregar-se a isto é pôr-se em contacto direto com o demônio. Superstição diabólica! Por vezes Deus permite essas coisas para reavivar a fé dos fiéis. O demônio faz-se bom, faz-se santo, cita palavras das Escrituras sagradas.”

Esse meio de reanimar a fé nos parece muito mal escolhido.

“Tertuliano, que viveu no segundo século, conta que faziam falar as cabras e as mesas; é a essência da idolatria. Essas operações satânicas eram raras em certos países cristãos e hoje são muito comuns. Esse poder do demônio mostrou-se em todo o seu brilho com o aparecimento do protestantismo.”

Eis crianças bem convencidas do grande poder do demônio. Não seria o caso de temer que isto lhes fizesse duvidar um pouco do poder de Deus, quando se vê o demônio tantas vezes levar a melhor sobre ele?

“O Espiritismo nasceu na América, no seio de uma família protestante, chamada Fox. A princípio o demônio apareceu com batidas que sobressaltavam. Por fim, impacientados com as batidas, procuraram o que podia ser. Um dia a filha do Sr. Fox pôs-se a dizer: ‘Bata aqui, bata ali’, e ele batia onde ela queria.”

Sempre a excitação contra os protestantes! Assim, eis crianças educadas pela religião no ódio contra uma parte de seus concidadãos, por vezes contra membros de sua própria família! Felizmente o espírito de tolerância que reina em nossa época o contrabalança, sem o que veríamos a renovação das cenas sangrentas dos séculos passados.

“Em breve essa heresia vulgarizou-se; em breve tinha quinhentos mil sectários. Os Espíritos invisíveis se permitiam fazer toda sorte de coisas. Ao simples pedido de uma criatura, moviam-se mesas cobertas por centenas de livros; viam-se mãos sem corpo. Eis o que se passou na América, e isto veio para a França pela Espanha. Logo o Espírito foi forçado por Deus e os anjos a dizer que ele era o diabo, a fim de que ele não apanhasse em suas armadilhas as pessoas direitas.”

Julgamo-nos bem ao par da marcha do Espiritismo e jamais ouvimos dizer que tivesse chegado à França pela Espanha. Seria um ponto a retificar na história do Espiritismo?

Pela confissão dos adversários do Espiritismo, vê-se com que rapidez a ideia nova ganhava terreno. Uma ideia que, apenas surgida, conquista quinhentos mil partidários não é sem valor, e prova o caminho que fará mais tarde. Assim, dez anos depois, um deles eleva a cifra para vinte milhões só na França, e prediz que em pouco a heresia terá ganho os outros vinte milhões. (Vide a Revista Espírita de junho de 1863). Mas então, se todo o mundo é herético, que restará para a ortodoxia? Não seria o caso de aplicar a máxima: Quando todo mundo está errado, todo o mundo tem razão? Que teria respondido o instrutor se um menino terrível de seu auditório juvenil lhe tivesse feito a pergunta:

─ Como é que na primeira pregação de São Pedro ele converteu apenas três mil judeus, enquanto o Espiritismo, que é obra de Satã, fez imediatamente quinhentos mil adeptos? Seria Satã mais poderoso do que Deus?

Talvez ele lhe tivesse respondido:

─ É porque eles eram protestantes.

“Satã diz que é um bom Espírito, mas é um mentiroso. Um dia quiseram que a mesa falasse; ela não quis responder; pensaram que a presença de padres a impedia.

Por fim, vieram duas batidas, advertindo que o Espírito lá estava. Perguntaram-lhe:

─ “Jesus Cristo é filho de Deus?

─ “Não.

─ “Reconheces a santa eucaristia?

─ “Sim.

─ “A morte de Jesus Cristo aumentou os teus sofrimentos?

─ “Sim.”

Então há padres que assistem a essas sessões diabólicas. O menino terrível poderia ter perguntado por que, quando eles vêm, eles não fazem o diabo fugir?

“Eis uma cena diabólica.” Eis o que dizia o Sr. Allan Kardec: “A libertinagem dos Espíritos mistificadores ultrapassa tudo quanto se possa imaginar. Havia dois Espíritos, um representando o bom, outro, o mau. Ao cabo de alguns meses disse um deles:

“─ Estou farto de vos repetir palavras melosas, que não aceito.

“─ Então és o Espírito do mal?

“─ Sim.

“─ Não sofres falando de Deus, da virgem e dos Santos?

“─ Sim.

“─ Queres o bem ou o mal?

“─ O mal.

“─ Não és o Espírito que falava há pouco?

“─ Não.

“─ Onde estás?

“─ No inferno.

“─ Sofres?

“─ Sim.

“─ Sempre?

“─ Sim.

“─ Estás submetido a Jesus Cristo?

“─ Não, a Lúcifer.

“─ Ele é eterno?

“─ Não.

“─ Gostas do que tenho na mão? (eram medalhas da santa Virgem)

“─ Não. Julguei inspirar-vos confiança; o inferno me reclama; adeus!”

Sem dúvida esse relato é dramático, mas seria muito hábil aquele que provasse que temos algo com isso. É triste ver a que expedientes são obrigados a recorrer para dar fé. Eles esquecem que essas crianças crescerão e refletirão. A fé que repousa sobre tais provas tem razão de temer as conspirações.

“Acabamos de ver o Espírito do mal forçado a confessar o que é. Eis outra frase que o lápis na mão do médium escrevia: ‘Se queres entregar-te a mim, alma, espírito e corpo, satisfarei os teus desejos; se queres estar comigo, escreve teu nome embaixo do meu’; e ele escrevia: Giefle ou Satã. O médium tremia e não escrevia.

Ele tinha razão. Todas as sessões terminam por estas palavras:

“─ Queres aderir?

“O demônio queria que fizessem um pacto com ele. Um dia ele disse a alguém:

“─ Entrega-me a tua alma!

“─ Quem és tu?

“─ Sou o demônio.

“─ Que queres?

“─ Possuir-te. O purgatório não existe. Os celerados, os maus, tudo isto no Céu.”

Que dirão essas crianças quando testemunharem algumas evocações e, em vez de um pacto infernal, ouvirem isto dos Espíritos: “Amai a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a vós mesmos; praticai a caridade ensinada pelo Cristo; sede bons para com todos, mesmo os vossos inimigos; orai a Deus e segui os seus mandamentos para serdes felizes neste mundo e no outro?”

“Todos esses prodígios, todas essas coisas extraordinárias vêm dos Espíritos das trevas. O Sr. Home, espírita fervoroso, nos diz que por vezes o solo trepida sob os seus pés, os apartamentos tremem, as pessoas se arrepiam; uma invisível mão apalpa-vos os joelhos e os ombros; uma mesa pula. Perguntam: “─ Estás aí?

“─ Sim.

“─ Dá provas.

“E a mesa se ergue duas vezes!”

Uma vez mais, isto tudo é muito dramático. No entanto, entre os jovens ouvintes, mais de um sem dúvida desejou ver e não perderá a primeira oportunidade. Também serão encontradas mocinhas impressionáveis, de organização delicada, que, ao menor prurido, julgarão sentir a mão do diabo e sentir-se-ão mal.

“Todas essas coisas são ridículas. A Santa Igreja, mãe de todos nós, nos faz ver que isto não passa de mentira.”

Se tudo isto for ridículo e mentiroso, por que então dar tanta importância? Por que apavorar as crianças com quadros sem nenhuma realidade? Se há mentira, não é nesses mesmos quadros?

“Por exemplo, a evocação dos mortos. Não se deve crer que sejam os nossos parentes que nos falam: é Satã que fala e se dá por um morto. Certamente estamos em comunicação pela comunhão dos santos. Na vida dos santos temos exemplos de aparições de mortos, mas é um milagre da sabedoria divina, e esses milagres são raros. Eis o que se diz: Às vezes os demônios se manifestam como se fossem os mortos, e às vezes também como se fossem os santos.”

Às vezes não é sempre, portanto, pode acontecer que o Espírito que se comunica não seja um demônio.

“Eles podem fazer muitas outras coisas. Um dia um médium que não sabia desenhar reproduziu, com a mão conduzida por um Espírito, as figuras de Jesus Cristo e da Santa Virgem que, apresentadas a alguns dos nossos melhores artistas, foram julgadas dignas de ser expostas.”

Ouvindo isto, um aluno bem poderia pensar: Ah! Se um Espírito pudesse guiar a minha mão para fazer meu dever e ganhar um prêmio! Tentemos!

“Saul consultou a Pitoniza de Endor e Deus permitiu que Samuel lhe aparecesse para dizer: Por que perturbas o meu repouso? Amanhã estarás comigo no túmulo. Nossos Saúis de salão bem deveriam pensar nesta história. São Felipe de Neri nos diz: Se a Santa Virgem vos aparecesse, ou mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo, cuspi-lhe no rosto, pois seria apenas uma trapaça do demônio para vos induzir em erro.”

A que se reduz, então, a aparição de Nossa Senhora da Salete a duas pobres crianças? Conforme essa instrução do catecismo, deveriam ter-lhe cuspido no rosto.

“Nosso santo padre o Papa Pio IX proibiu expressamente dar-se a essas coisas. O Sr. Bispo de Langres, e ainda muitos outros fizeram o mesmo. Há perigo de vida. Dois velhos suicidaram-se porque os Espíritos lhes haviam dito que depois da morte gozariam de uma felicidade infinita. Perigo para a razão. Vários médiuns enlouqueceram e numa casa de alienados contavam-se mais de quarenta indivíduos que o Espiritismo havia enlouquecido.”

Ainda não conhecemos a bula papal que proíbe expressamente de ocupar-se com essas coisas. Se ela existisse, o Sr. Bispo de Langres e os outros não teriam deixado de mencioná-la. A história dos dois velhos, a que se faz alusão, é inexata. Foi provado, por documentos oficiais apresentados ao tribunal, e notadamente por cartas por eles escritas antes da morte, que se suicidavam em consequência de perdas de dinheiro e do medo de cair na miséria (Vide a Revista espírita de abril de 1863). A história dos quarenta indivíduos fechados numa casa de alienados não é mais verdadeira. Seria muito difícil justificar pelos nomes desses pretensos loucos, que um primeiro jornal fixou em quatro, um segundo em quarenta, um terceiro em quatrocentos e um quinto disse que trabalhavam na ampliação do hospício. Um instrutor de catecismo deveria colher seus dados históricos em fonte outra que os boatos dos jornais. As crianças a quem contam seriamente essas coisas as aceitam com confiança. Entretanto, quanto maior a confiança, mais forte a reação contrária quando, mais tarde, vierem a saber a verdade. Isto é dito em sentido geral e não exclusivamente quanto ao Espiritismo.

Se analisamos este trabalho de um rapazinho, fique bem entendido que não é a opinião dessa criança que refutamos, mas aquela da qual essa narração é um resumo. Se fossem investigadas com cuidado todas as instruções dessa natureza, ficaríamos menos admirados dos frutos colhidos mais tarde. Para instruir a infância é necessário grande tato e muita experiência, porque não se imagina o alcance que poderá ter uma só palavra imprudente que, como um grão de erva daninha, germina nessas jovens imaginações como em terra virgem.

Parece que os adversários do Espiritismo não acham que a ideia esteja bastante espalhada. Dir-se-ia que, malgrado seu, são impelidos a engendrar meios de divulgála ainda mais. Depois dos sermões, cujo resultado é conhecido, não se podia achar um meio mais eficaz do que fazê-lo tema de instruções e deveres de catecismo. Os sermões atuam sobre a geração que se vai. As instruções predispõem a geração que chega. Erraríamos se as víssemos com desagrado.

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