Esta obra é hoje muito conhecida para que haja necessidade de lhe fazer uma análise. Assim, limitar-nos-emos a examinar o ponto de vista em que se colocou o autor e daí deduzir algumas consequências.
A tocante dedicatória à alma de sua irmã é posta pelo Sr. Renan no topo do volume; posto que muito curta é, em nossa opinião, um trecho capital, porque é toda uma profissão de fé. Citamo-la integralmente porque dá lugar a algumas observações importantes e de interesse geral.
A ALMA PURA DE MINHA IRMÃ HENRIETTE FALECIDA EM BIBLOS, A 24 DE SETEMBRO DE 1861
“Lembras-te, do seio de Deus onde repousas, daqueles longos dias e Ghazir, onde, só contigo, eu escrevia estas páginas inspiradas pelos lugares que acabáramos de percorrer? Silenciosa ao meu lado, relias cada página e a recopiavas assim que escrita, enquanto o mar, as aldeias, as ravinas, as montanhas se desenrolavam aos nossos pés. Quando a luz extenuante tinha tomado o lugar do inumerável exército de estrelas, tuas perguntas finas e delicadas, tuas dúvidas discretas me reconduziam ao objeto sublime de nossos pensamentos comuns. Um dia me dizias que amarias este livro, primeiro porque tinha sido feito contigo, e também porque te agradava. Se às vezes temias para ele as estreitas opiniões do homem frívolo, sempre estiveste persuadida de que as almas verdadeiramente religiosas acabariam gostando dele. Em meio a essas doces meditações, a morte nos feriu a ambos com sua asa. O sono da febre nos tomou à mesma hora. Despertei só!... Agora dormes na terra de Adonis, junto da santa Biblos e das águas sagradas onde as mulheres dos mistérios antigos vinham misturar suas lágrimas. Revela-me, ó bom gênio, a mim que tu amavas, essas verdades que dominam a morte, impedem o medo e quase a fazem amar.”
A menos que se suponha que o Sr. Renan tenha representado uma comédia indigna, é impossível que tais palavras brotem da pena de um homem que crê no nada. Certamente veem-se escritores de talento flexível jogarem com as ideias e com as crenças mais contraditórias a ponto de iludirem quanto aos seus próprios sentimentos. É que, como o autor, eles possuem a arte da imitação. Para eles uma ideia não precisa ser artigo de fé. É um tema sobre o qual eles trabalham, por pouco que ela se preste à imaginação, e que eles arranjam, de uma ou de outra maneira, conforme o exijam as circunstâncias. Mas há assuntos nos quais o mais endurecido incrédulo não poderia tocar sem se sentir sacrílego. Tal é o da dedicatória do Sr. Renan. Em caso semelhante, um homem generoso se abstém em vez de falar contra a sua convicção. Estes não são daqueles assuntos que se escolhem para impressionar.
Tomando as formas dessa dedicação como expressão conscienciosa do pensamento do autor, aí se encontra mais que um vago pensamento espiritualista. Com efeito, não é a alma perdida nas profundezas do espaço, absorvida numa eterna e beata contemplação ou em dores infindas; também não é a alma do panteísta, aniquilando-se no oceano da inteligência universal. É o quadro da alma individual, com a lembrança de suas afeições e ocupações terrenas, voltando aos lugares que habitou, junto às pessoas amadas. O Sr. Renan não falaria assim a um mito, a um ser abismado no nada. Para ele, a alma de sua irmã está ao seu lado. Ela o vê, o inspira e se interessa por seus trabalhos. Há entre ela e ele uma troca de pensamentos, de comunicação espiritual. Sem disso se dar conta, ele faz, como tantos outros, uma verdadeira evocação. Que falta a essa crença para ser completamente espírita? A comunicação material. Por que, então, o Sr. Renan a arroja entre as crenças supersticiosas? Porque ele não admite nem o sobrenatural nem o maravilhoso. Mas, se ele reconhecesse o estado real da alma após a morte, bem como as propriedades de seu envoltório perispiritual, compreenderia que o fenômeno das manifestações espíritas não foge às leis naturais, e que para isto não é necessário recorrer ao maravilhoso; que se o fenômeno deve ter-se produzido em todos os tempos e em todos os povos, tem sido a fonte de uma porção de fatos seguramente qualificados por uns de sobrenaturais e por outros atribuídos à imaginação; que ninguém tem o poder de impedir tais manifestações e que, em certos casos, é possível provocá-las.
O que faz, então, o Espiritismo, senão nos revelar uma nova lei da Natureza? A respeito de uma certa ordem de fenômenos, ele faz o que para outros fez a descoberta das leis da eletricidade, da gravitação, da afinidade molecular, etc. Então, teria a Ciência a pretensão de haver dito a última palavra da Natureza? Existe alguma coisa mais surpreendente, mais maravilhosa do que corresponder-se em minutos com uma pessoa que está a quinhentas léguas? Antes do conhecimento da lei da eletricidade, semelhante fato teria passado por magia, feitiçaria, diabrura ou milagre. Sem dúvida nenhuma, um sábio a quem o houvessem contado tê-lo-ia repelido, e não lhe faltariam excelentes razões para demonstrar que era materialmente impossível. Impossível, sem dúvida, segundo as leis então conhecidas, mas perfeitamente possível segundo uma lei que não era conhecida. Por que, então, seria mais fácil comunicar-se instantaneamente com um ser vivo, cujo corpo está a quinhentas léguas, do que com a alma desse mesmo ser que está ao nosso lado? Dizem que é porque ele não tem mais corpo. E quem vos diz que ele não tem? É precisamente o contrário que o Espiritismo vem provar, demonstrando que se sua alma não tem mais o envoltório material, compacto, ponderável, ela tem um fluídico, imponderável, mas que não deixa de ser uma espécie de matéria; que esse envoltório, invisível no estado normal, pode, em dadas circunstâncias e por uma espécie de modificação molecular, tornar-se visível, como o vapor pela condensação. Como se vê, há aí apenas um fenômeno muito natural, cuja chave o Espiritismo dá, pela lei que rege as relações entre o mundo visível e o invisível.
O Sr. Renan, persuadido de que a alma de sua irmã, ou o seu Espírito, o que dá na mesma, estava junto de si, a via e escutava, devia crer que essa alma era alguma coisa. Se alguém tivesse vindo dizer-lhe: Essa alma, cuja presença o vosso pensamento adivinha, não é um ser vago e indefinido; é um ser limitado, circunscrito por um corpo fluídico, invisível como a maioria dos fluidos; para ela a morte não foi senão a destruição de seu envoltório corporal, mas ela conservou seu envoltório etéreo e indestrutível, de sorte que tendes ao vosso lado a vossa irmã tal qual era em vida, menos o corpo que deixou na Terra, como a borboleta deixa a sua crisálida; morrendo, ela apenas despojou-se da vestimenta grosseira, que não mais lhe pode servir, que a retinha na superfície do solo, mas conservou a roupagem leve, que lhe permite transportar-se para onde queira e transpor o espaço com a rapidez do raio; do ponto de vista moral, é a mesma pessoa, com os mesmos pensamentos, as mesmas afeições, a mesma inteligência, mas com percepções novas, mais amplas, mais sutis, pois suas faculdades não mais são comprimidas pela matéria pesada e compacta, através da qual elas deviam transmitir-se. Dizei se este quadro tem algo de irracional! O Espiritismo, provando que ele é real, é tão ridículo quanto alguns o pretendem? O que faz ele, afinal de contas? Ele demonstra, de maneira patente, a existência da alma. Provando que ela é um ser definido, ele dá um objetivo real às nossas lembranças e afeições. Se o pensamento do Sr. Renan não passava de um sonho, de uma ficção poética, o Espiritismo vem transformar essa ficção em realidade.
A Filosofia, em todas as épocas, empenhou-se na busca da alma, de sua natureza, de suas faculdades, de sua origem e de seu destino. Inúmeras teorias foram erigidas a respeito, e a questão sempre ficou indefinida. Por quê? Aparentemente porque nenhuma encontrou o nó do problema, e não o resolveu de maneira satisfatória para convencer a todos.
O Espiritismo, a seu turno, vem dar a sua teoria. Ele se apoia na psicologia experimental; ele estuda a alma, não só durante a vida, mas após a morte; ele a observa em estado de isolamento; ele a vê agir em liberdade, ao passo que a filosofia ordinária só a vê em união com o corpo, submetida aos entraves da matéria, razão pela qual muitas vezes confunde causa e efeito. Ela se esforça por demonstrar a existência e os atributos da alma por fórmulas abstratas, ininteligíveis para as massas, ao passo que o Espiritismo oferece provas palpáveis de sua existência, e permite que ela seja, por assim dizer, tangível pelos dedos e pelos olhos. Ele se exprime em termos claros, ao alcance de todos. A simplicidade da linguagem lhe tiraria o caráter filosófico, como o pretendem certos sábios?
Contudo, aos olhos de muita gente a filosofia espírita contém um erro grave, e esse erro se exprime numa só palavra. Esta palavra alma, mesmo para os incrédulos, tem algo de respeitável e imponente. Ao contrário, o vocábulo Espírito neles desperta as ideias fantásticas das lendas, dos contos de fadas, dos fogos-fátuos, de lobisomens, etc. Eles admitem de boa mente que se possa crer na alma, posto eles mesmos não creiam, mas não podem compreender que, com bom-senso, se possa crer nos Espíritos. Daí uma prevenção que os faz olhar esta ciência como pueril e indigna de sua atenção. Julgando-a pela etiqueta, creem-na inseparável da magia e da feitiçaria.
Se o Espiritismo se tivesse abstido de pronunciar a palavra Espírito e se, em todas as circunstâncias a tivesse substituído pela palavra alma, a impressão para eles teria sido absolutamente outra. A rigor, esses profundos filósofos, esses livrespensadores admitirão, sem problemas, que a alma de um ser que nos foi caro ouça os nossos lamentos e nos venha inspirar, mas não admitirão que isto aconteça com seu Espírito. O Sr. Renan pôde colocar no topo de sua dedicatória: “À alma pura de minha irmã Henriette.” Ele não poderia ter colocado: Ao Espírito puro...?
Então, por que o Espiritismo se serviu do vocábulo Espírito? É um erro? Não, ao contrário.
Em primeiro lugar, desde as primeiras manifestações, antes mesmo da criação da filosofia espírita, esse vocábulo já era usado. Como se tratava de deduzir as consequências morais dessas manifestações, era útil conservar uma denominação usual, a fim de mostrar a conexão dessas duas partes da ciência. Além disso, era evidente que a prevenção ligada a esse vocábulo, circunscrita a uma categoria especial de pessoas, deveria apagar-se com o tempo. O inconveniente era apenas momentâneo.
Em segundo lugar, se o vocábulo Espírito era repulsivo para algumas pessoas, para as massas ele era um atrativo, e deveria contribuir mais que outro para popularizar a doutrina. Assim, pois, era preciso preferir o maior número ao menor.
Um terceiro motivo é mais sério que os dois outros. Os termos alma e Espírito, posto que sinônimos e empregados indiferentemente, não exprimem exatamente a mesma ideia. A alma é, a bem dizer, o princípio inteligente, princípio imperceptível e indefinido como o pensamento. No estado dos nossos conhecimentos, não podemos conceber o Espírito isolado da matéria de maneira absoluta. O perispírito, posto formado de matéria sutil, dele faz um ser limitado, definido e circunscrito a sua individualidade espiritual, de onde se pode formular esta proposição: A união da alma, do perispírito e do corpo material constitui o HOMEM; a alma e o perispírito separados do corpo constituem o ser chamado ESPÍRITO. Nas manifestações, não é, pois, a alma que se apresenta sozinha. Ela está sempre revestida de seu envoltório fluídico, e esse envoltório é o intermediário necessário, através do qual ela age sobre a matéria compacta. Nas aparições não é a alma que se vê, mas o perispírito, do mesmo modo que quando se vê um homem vê-se o seu corpo, mas não se vê o pensamento, a força, o princípio que o faz agir.
Em resumo, a alma é o ser simples, primitivo; o Espírito é o ser duplo; o homem é o ser triplo. Se adicionarmos ao homem as roupas, teremos um ser quádruplo. Na circunstância de que se trata, o vocábulo Espírito é o que melhor corresponde à coisa expressa. Pelo pensamento concebe-se um Espírito, mas não se concebe uma alma.
Convencido de que a alma de sua irmã o via e o entendia, o Sr. Renan não podia supor que ela estivesse sozinha no espaço. Uma simples reflexão deveria dizer-lhe que deve acontecer o mesmo com todas aquelas que deixam a Terra. As almas ou Espíritos assim espalhados na imensidade constituem o mundo invisível que nos cerca e em cujo meio vivemos, de modo que esse mundo não é composto de seres fantásticos, de gnomos, de duendes, de demônios chifrudos com pés bifurcados, mas dos mesmos seres que formaram a Humanidade terrena. Que há nisso de absurdo? O mundo visível e o invisível assim se acham em contato perpétuo, daí resultando uma incessante reação de um sobre o outro. Daí decorre uma porção de fenômenos que entram na ordem dos fatos naturais. O Espiritismo moderno não os descobriu nem os inventou. Ele os estudou melhor e melhor os observou. Ele procurou as suas leis e, por isso mesmo, as subtraiu da ordem dos fatos maravilhosos.
Os fatos que se ligam ao mundo invisível e às suas relações com o mundo visível, mais ou menos observados em todas as épocas, se ligam à história de quase todos os povos, e sobretudo à história religiosa. Eis por que a eles se referem muitas passagens de escritores sacros e profanos. É por falta de conhecimento dessas relações que tantas passagens ficaram ininteligíveis e foram interpretadas tão diversamente e tão falsamente.
É pela mesma razão que o Sr. Renan enganou-se tão estranhamente quanto à natureza dos fatos relatados no Evangelho e quanto ao sentido das palavras do Cristo, seu papel e seu verdadeiro caráter, como o demonstraremos em próximo artigo. Estas reflexões, às quais nos conduziu o seu preâmbulo, eram necessárias para apreciar as consequências por ele tiradas do ponto de vista em que se colocou.