Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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No artigo anterior descrevemos a triste situação dessa moça e as circunstâncias que provavam uma verdadeira possessão. Sentimo-nos felizes ao confirmar o que dissemos a respeito de sua cura, hoje completa.

Depois de liberta de seu Espírito obsessor, os violentos abalos que ela havia sofrido por mais de seis meses a haviam levado a grave perturbação da saúde. Agora ela está inteiramente recuperada, mas não saiu do estado sonambúlico, o que não a impede de ocupar-se de suas atividades habituais.

Vamos expor as circunstâncias dessa cura.

Várias pessoas tinham tentado magnetizá-la, mas sem muito sucesso, salvo leve e passageira melhora no estado patológico. Quanto ao Espírito, era cada vez mais tenaz, e as crises haviam atingido um grau de violência dos mais inquietantes. Ali teria sido necessário um magnetizador nas condições indicadas no artigo acima para os médiuns curadores, isto é, penetrando a doente com um fluido bastante puro para eliminar o fluido do mau Espírito. Se há um gênero de mediunidade que exige uma superioridade moral, é sem contradita o caso de obsessão, pois é preciso ter a faculdade de impor sua autoridade ao Espírito.

Os casos de possessão, segundo o que é anunciado, devem multiplicar-se com grande energia daqui a algum tempo, para que fique bem demonstrada a impotência dos meios empregados até agora para combatê-los.

Até mesmo uma circunstância da qual não podemos ainda falar, mas que tem uma certa analogia com o que se passou ao tempo do Cristo, contribuirá para desenvolver essa espécie de epidemia demoníaca. Não é de duvidar que surgirão médiuns especiais com o poder de expulsar os maus Espíritos, como os apóstolos tinham o de expulsar os demônios, seja por que Deus sempre põe o remédio ao lado do mal, seja para dar aos incrédulos uma nova prova da existência dos Espíritos.

Para a senhorita Júlia, como em todos os casos análogos, o magnetismo simples, por mais enérgico que fosse, era, assim, insuficiente. Era preciso agir simultaneamente sobre o Espírito obsessor, para dominá-lo, e sobre o moral da doente, perturbado por todos esses abalos. O mal físico era apenas consecutivo; era um efeito e não a causa. Assim, havia que tratar-se a causa antes do efeito. Destruído o mal moral, o mal físico deveria desaparecer por si mesmo. Mas para isto é preciso identificar-se com a causa; estudar com o maior cuidado e em todas as suas nuanças o curso das ideias, para lhe imprimir tal ou qual direção mais favorável, porque os sintomas variam conforme o grau de inteligência do paciente, o caráter do Espírito e os motivos da obsessão, motivos cuja origem remonta quase sempre a existências anteriores.

O insucesso do magnetismo com a senhorinha Júlia levou várias pessoas a tentar. Entre essas pessoas estava um jovem dotado de grande força fluídica, mas que infelizmente não tinha qualquer experiência e, sobretudo, os conhecimentos necessários em casos semelhantes. Ele se atribuía um poder absoluto sobre os Espíritos inferiores que, segundo ele, não podiam resistir à sua vontade. Tal pretensão, levada ao excesso e baseada em sua força pessoal e não na assistência dos bons Espíritos, deveria atrair-lhe mais de um insucesso. Só isto deveria ter bastado para mostrar aos amigos da jovem que a ele faltava a primeira das qualidades requeridas para ser um socorro eficaz. Mas o que, acima de tudo, deveria tê-los esclarecido, é que sobre os Espíritos em geral tinha ele uma opinião inteiramente falsa. Segundo ele, os Espíritos superiores têm uma natureza fluídica por demais etérea para poderem vir à Terra comunicar-se com os homens e assisti-los, pois isto só seria possível aos Espíritos inferiores, em razão de sua natureza mais grosseira. Mesmo nos momentos de crise, ele cometia o grave erro de sustentar diante da doente essa opinião, que não passa da doutrina da comunicação exclusiva dos demônios. Com esta maneira de ver, ele não devia contar senão consigo mesmo, e não podia invocar a única assistência que poderia ajudá-lo, assistência da qual, é verdade, ele julgava poder prescindir.

A consequência mais prejudicial era para a doente, que ele desencorajava, tirando-lhe a esperança da assistência dos bons Espíritos. No estado de enfraquecimento em que estava o seu cérebro, tal crença, que dava todo poder ao Espírito obsessor, poderia tornar-se fatal para a sua razão, podendo mesmo matá-la. Assim, ela repetia sem cessar, nos momentos de crise: “Louca... louca... ele me deixará louca... completamente louca... eu ainda não estou, mas ficarei.”

Falando de seu magnetizador, ela pintava perfeitamente sua ação, dizendo: “Ele me dá a força do corpo, mas não a força do espírito.” Esta expressão era profundamente significativa, contudo, ninguém lhe dava importância.

Quando vimos a senhorita Júlia, o mal estava no apogeu e a crise a que assistimos foi uma das mais violentas. Foi precisamente no momento em que procurávamos levantar-lhe o moral; em que tentávamos inculcar-lhe o pensamento de que ela podia dominar esse mau Espírito com a assistência dos bons e de seu anjo de guarda, cujo apoio era preciso invocar. Foi nesse momento, dizíamos, que o jovem magnetizador, que estava presente, por uma circunstância sem dúvida providencial, veio, sem qualquer provocação, afirmar e desenvolver sua teoria, destruindo por um lado o que fazíamos por outro. Tivemos que lhe expor com energia que ele praticava uma ação má e que assumia a terrível responsabilidade da razão e da vida dessa moça infeliz.

Um fato dos mais singulares, que todos tinham observado, mas ninguém lhe deduzira as consequências, se produzia na magnetização. Quando era feita durante a luta com o mau Espírito, ele sozinho absorvia todo o fluido, que lhe dava mais força, enquanto a doente enfraquecia e sucumbia aos seus ataques. Deve-se levar em conta que ela estava sempre em estado de sonambulismo; consequentemente, ela via o que se passava, e foi ela mesma que deu essa explicação. Eles não viram nesse fato senão uma malícia do Espírito, e contentaram-se em abster-se de magnetizar nesses momentos e ficar assistindo a festa.

Com o conhecimento da natureza dos fluidos, é fácil dar-se conta desse fenômeno. É evidente, para começar, que absorvendo o fluido para aumentar sua própria força em detrimento da doente, o Espírito queria convencer o magnetizador da inutilidade de sua pretensão. Se havia malícia de sua parte, era contra o magnetizador, pois ele se servia da mesma arma com a qual o outro pretendia vencêlo. Pode-se dizer que lhe tomava o bastão das mãos. Era não menos evidente que a sua facilidade de apropriar-se do fluido do magnetizador denotava uma afinidade entre esse fluido e o seu próprio, ao passo que fluidos de natureza contrária se teriam repelido, como água e óleo. Só esse fato basta para demonstrar que havia outras condições a preencher. É, pois, um erro dos mais graves e, podemos dizer, dos mais funestos, não ver na ação magnética mais que simples emissão fluídica, sem levar em conta a qualidade íntima dos fluidos. Na maioria dos casos, o sucesso repousa inteiramente nessas qualidades, como na terapêutica depende da qualidade do medicamento. Não seria demais chamar a atenção para este ponto capital, demonstrado, ao mesmo tempo, pela lógica e pela experiência.

Para combater a influência da doutrina do magnetizador, que já havia influenciado as ideias da doente, dissemos a ela:

─ Minha filha, tenha confiança em Deus! Olhe em sua volta. Você não vê bons Espíritos?

─ É verdade, disse ela, vejo Espíritos luminosos, que Fredegunda não ousa encarar.

─ Então! São eles que a protegem e não permitirão que o mau Espírito vença.

Implore a sua assistência; ore com fervor; ore sobretudo por Fredegunda.

─ Oh! Por ela jamais poderei.

─ Cuidado! Veja que a estas palavras os bons Espíritos se afastam. Se você quer sua proteção, é preciso merecê-la por seus bons sentimentos, esforçando-se sobretudo para ser melhor que a sua inimiga. Como você quer que eles a protejam, se não for melhor que ela? Pense que em outras existências você também teve censuras a se fazer, e o que lhe acontece é uma expiação. Se você quer que ela cesse, terá que se melhorar, e para provar suas boas intenções, você terá que começar mostrando-se boa e caridosa para com seus inimigos. A própria Fredegunda será tocada, e talvez você faça o arrependimento penetrar seu coração. Reflita.

─ Eu o farei.

─ Faça-o agora mesmo, e diga comigo: “Meu Deus, eu perdoo a Fredegunda o mal que me fez; aceito-o como uma prova e uma expiação que mereci. Perdoai minhas próprias faltas, como eu perdoo as dela. E vós, bons Espíritos que me cercais, abri o seu coração a melhores sentimentos e dai-me a força que me falta.

─ Você promete orar por ela todos os dias?

─ Prometo.

─ Está bem. Por meu lado, vou cuidar de você e dela. Tenha confiança.

─ Oh! Obrigada. Algo me diz que isto em breve vai acabar.

Tendo levado este fato ao conhecimento da Sociedade, foram dadas a respeito as seguintes instruções:

“O assunto de que vos ocupais comoveu os próprios bons Espíritos que, por sua vez, querem vir em auxílio dessa moça com seus conselhos. Com efeito, ela apresenta um caso de obsessão muito grave, e entre os que vistes e vereis ainda, pode-se pôr este entre os mais importantes, mais sérios, e sobretudo mais interessantes, pelas particularidades instrutivas já apresentadas e pelas novidades que ainda oferecerá.

“Como já vos disse, esses casos de obsessão renovar-se-ão frequentemente, e fornecerão dois assuntos distintos e de utilidade, primeiro para vós, depois para os que as sofrerem.

“Primeiro para vós, porque assim como vários eclesiásticos contribuíram poderosamente para divulgar o Espiritismo entre os que lhe eram completamente estranhos, assim esses obsedados, cujo número tornar-se-á bastante importante para que deles se ocupem de maneira não superficial, mas larga e profunda, abrirão bem as portas da Ciência para que a filosofia espírita possa com eles nela penetrar e ocupar entre a gente de ciência e os médicos de todos os sistemas, o lugar a que ela tem direito.

“Depois para eles, porque no estado de Espírito, antes de encarnar-se entre vós, eles aceitaram essa luta que lhes proporciona a possessão que sofrem, em vista de seu adiantamento, e essa luta, acreditai, faz sofrer cruelmente seu próprio Espírito que, quando seu corpo, de certo modo, não é mais seu, têm a perfeita consciência do que se passa. Conforme tiverem suportado essa prova, cuja duração lhes podereis abreviar poderosamente por vossas preces, eles terão progredido mais ou menos. Porque, tende certeza disto, malgrado essa possessão, sempre momentânea, eles guardam suficiente consciência de si mesmos para discernir a causa e a natureza de sua obsessão.

“Para esta de que vos ocupais, é necessário um conselho. As magnetizações que lhe faz suportar o Espírito encarnado de que falastes lhe são funestas sob todos os aspectos. Aquele Espírito é sistemático. E que sistema! Aquele que não reporta todas as suas ações à maior glória de Deus e que se envaidece das faculdades que lhe foram concedidas, será sempre confundido. Os presunçosos serão rebaixados, às vezes neste mundo, infalivelmente no outro.

“Tratai, portanto, meu caro Kardec, de conseguir que essas magnetizações cessem imediatamente, ou os mais graves inconvenientes resultarão de sua continuação, não só para a moça, mas ainda para o imprudente que pensa ter às suas ordens todos os Espíritos das trevas e comandá-los como chefe.

“Eu vos afirmo que vereis esses casos de obsessão e de possessão se desenvolverem durante um certo tempo, porque eles são úteis ao progresso da Ciência e do Espiritismo. É por aí que os médicos e os sábios enfim abrirão os olhos e compreenderão que há moléstias cujas causas não estão na matéria, e que não devem ser tratadas pela matéria. Esses casos de possessão vão igualmente abrir horizontes totalmente novos ao magnetismo, e fazer com que ele dê um grande passo para a frente, pelo estudo dos fluidos, até aqui tão imperfeito. Ajudado por esses novos conhecimentos e por sua aliança com o Espiritismo, ele obterá grandes coisas.

“Infelizmente, no magnetismo, como na medicina, durante muito tempo ainda, haverá homens que julgarão nada terem a aprender.

“Essas obsessões frequentes terão, também, um lado muito bom, pelo fato de que estando penetrado pela prece e pela força moral, pode-se fazê-las cessar e podese adquirir o direito de expulsar os maus Espíritos e, pelo melhoramento de sua conduta, cada um procurará adquirir esse direito, que o Espírito de Verdade, que dirige este globo, conferirá quando for merecido.

“Tende fé e confiança em Deus, que não permite que se sofra inutilmente e sem motivo”

HAHNEMANN.

(Médium: Sr. Albert)





“Serei breve. Será muito fácil curar essa infeliz possessa. Os meios estavam implicitamente contidos nas reflexões há pouco emitidas por Allan Kardec. Não só é necessária uma ação material e moral, mas ainda uma ação puramente espiritual.

“Para o Espírito encarnado que se acha, como Júlia, em estado de possessão, é necessário um magnetizador experimentado e perfeitamente convicto da verdade espírita. É necessário que ele seja, além disso, de uma moralidade irreprochável e sem presunção. Mas, para agir sobre o Espírito obsessor, é necessária a ação não menos enérgica de um bom Espírito desencarnado. Assim, pois, dupla ação: terrena e extraterrena; encarnado sobre encarnado; desencarnado sobre desencarnado; eis a lei. Se até agora tal ação não foi realizada, foi justamente para vos trazer ao estudo e à experimentação dessa interessante questão. É por isto que Júlia não se livrou mais cedo. Ela devia servir aos vossos estudos.

“Isto vos demonstra o que deveis fazer de agora em diante, nos casos de possessão manifesta. É indispensável chamar em vossa ajuda o concurso de um Espírito elevado, gozando ao mesmo tempo de força moral e fluídica, como, por exemplo, o excelente cura d’Ars, e sabeis que podeis contar com a assistência desse digno e Santo Vianney. Além disso, nosso concurso será dado a todos os que nos chamarem em seu auxílio, com pureza de coração e fé verdadeira.

“Resumindo: Quando magnetizarem Júlia, será preciso começar pela fervorosa evocação do cura d’Ars e de outros bons Espíritos que se comunicam habitualmente entre vós, pedindo-lhes que ajam contra os maus Espíritos que perseguem essa moça, os quais fugirão ante as falanges luminosas. Também é preciso não esquecer que a prece coletiva tem uma força muito grande, quando feita por certo número de pessoas agindo em sintonia, com uma fé viva e um ardente desejo de aliviar.”

ERASTO

(Médium: Sr. d’Ambel





Estas instruções foram seguidas. Vários membros da Sociedade se entenderam para agir pela prece nas condições desejadas. Um ponto essencial era levar o Espírito obsessor a emendar-se, o que necessariamente deveria facilitar a cura. Foi o que se fez, evocando-o e lhe dando conselhos. Ele prometeu não mais atormentar a senhorita Júlia, e manteve a palavra. Um dos nossos colegas foi especialmente encarregado por seu guia espiritual, de sua educação moral, com o que ficou satisfeito. Hoje esse Espírito trabalha seriamente em sua melhora e pede uma nova encarnação para expiar e reparar as suas faltas.

A importância do ensinamento que decorre deste fato e das observações a que deu lugar, não escapará a ninguém, e cada um poderá aí colher úteis instruções sobre a ocorrência.

Uma observação essencial que o caso permitiu constatar, e que se compreende sem esforço, é a influência do meio. É evidente que se o meio secunda pela unidade de vistas, de intenção e de ação, o doente se acha numa espécie de atmosfera homogênea de fluidos benéficos, o que deve necessariamente facilitar e apressar o sucesso. Mas se houver desacordo, oposição; se cada um quiser agir à sua maneira, resultarão repelões, correntes contrárias que forçosamente paralisarão e por vezes anularão os esforços tentados para a cura. Os eflúvios fluídicos, que constituem a atmosfera moral, se forem maus, são tão funestos a certos indivíduos quanto as exalações das regiões pantanosas.

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