Palestras familiares de além-túmuloJardin
Lê-se no Journal de la Nièvre: Um acidente
funesto ocorreu sábado último na estação da estrada de ferro. Um homem
de sessenta e dois anos, um tal Jardin, ao sair do pátio da estação, foi
colhido pelos varais de um tílburi, e poucas horas depois exalava o
último suspiro.
A morte desse homem revelou uma das mais
extraordinárias histórias, à qual não daríamos crédito, se testemunhas
verídicas não nos tivessem garantido a sua autenticidade. Ei-la, tal
qual nos foi contada.
Antes de ser empregado no entreposto de
tabacos de Nevers, Jardin morava no Cher, vila de
Saint-Germain-des-Bois, onde era alfaiate. Sua mulher tinha morrido
havia cinco anos, nessa aldeia, vítima de uma fluxão de peito, quando,
há oito anos, ele deixou Saint-Germain para vir morar em Nevers.
Empregado laborioso, Jardin era muito piedoso, de uma devoção exaltada e
se entregava com fervor às práticas religiosas; tinha um genuflexório
em seu quarto, no qual gostava de se ajoelhar. Sexta-feira à noite,
encontrando-se só com a filha, anunciou-lhe, de repente, que um secreto
pressentimento o advertia que seu fim estava próximo.
─
Escuta, disse-lhe ele, minhas últimas vontades: Quando eu estiver morto,
remeterás ao Sr. B... a chave do meu genuflexório para que ele leve o
que ali encontrar e deposite em meu caixão.
Admirada com essa
brusca recomendação, a senhorita Jardin, não sabendo bem se o pai falava
sério, perguntou-lhe o que se acharia no genuflexório. A princípio, ele
recusou-se a responder, mas como ela insistisse, ele lhe fez a estranha
revelação de que o que se achava ali eram os restos de sua mãe!
Informou que antes de deixar Saint-Germain-des-Bois, à noite, tinha ido
ao cemitério. Todos dormiam na aldeia; sentindo-se muito só, tinha ido à
sepultura da esposa e com uma pá tinha cavado até encontrar os restos
da que fora sua companheira. Não querendo separar-se desses preciosos
despojos, tinha recolhido os ossos, guardando-os no seu genuflexório.
A essa estranha confidência, a filha, um pouco amedrontada, mas sempre
duvidando de que o pai falasse sério, lhe prometeu agir de acordo com
suas últimas vontades, persuadida de que ele queria divertir-se à sua
custa, e que no dia seguinte lhe daria a solução desse fantástico
enigma.
No dia seguinte, sábado, Jardin foi ao escritório,
como de costume. Cerca de uma hora foi mandado à estação de mercadorias
para despachar sacos de tabaco, destinados ao abastecimento do
entreposto. Apenas saía da estação, os varais de um tílburi que ele não
tinha visto no meio das viaturas que estacionavam no embarcadouro, o
atingiram em pleno peito. Os pressentimentos não o haviam enganado.
Derrubado pela violência do choque, foi levado para casa sem sentidos.
Os socorros prestados fizeram-no recuperar os sentidos. Quiseram
tirar-lhe as roupas, para examinar os ferimentos; ele se opôs vivamente;
insistiram e recusou ainda. Mas como, a despeito da resistência, se
dispunham a despi-lo, abateu-se de repente: estava morto.
O
corpo foi posto numa cama. Mas qual não foi a surpresa dos presentes
quando, depois de despido, viu-se sobre o coração um saco de couro,
preso por tiras amarradas em volta de seu corpo! Um corte feito pelo
médico chamado para constatar a morte separou o saco em duas partes, de
onde caiu uma mão seca!
Lembrando-se do que o pai lhe havia
dito na véspera, a senhorita Jardin preveniu os senhores B... e J...,
marceneiros. O genuflexório foi aberto; dele foi retirado um schako da guarda nacional. No fundo do schako (boné
militar, de copa alta e redonda) estava uma cabeça de morto, ainda com
os cabelos; depois perceberam, no fundo do genuflexório, os ossos de um
esqueleto: eram os restos da senhora Jardin.
Domingo último
levaram à sepultura os despojos de Jardin. Para satisfazer à vontade do
sexagenário, tinham posto no caixão os restos de sua mulher e, sobre o
seu peito, a mão seca que, se assim podemos dizer, durante oito anos
havia sentido bater o seu coração.
1.
Evocação:
─ Aqui estou.
2. ─
Quem vos preveniu de que desejávamos falar-vos? ─ Eu não sei de nada; fui
atraído para aqui.
3. ─ Onde estáveis quando vos chamamos?
─ Junto a um homem de quem gosto,
acompanhado de minha mulher.
4.
─ Como tivestes o pressentimento da morte?
─ Tinha sido prevenido por aquela que tanto lamentava.
Deus o havia concedido, por sua prece.
5.
─ Vossa mulher estava, então, sempre ao vosso
lado?
─ Ela não me deixava.
6.
─ Os seus restos mortais, que conserváveis, eram
a causa de sua presença? ─ De maneira nenhuma, mas eu o acreditava.
7.
─ Assim, se não tivésseis conservado esses
restos, nem por isto o Espírito de vossa mulher deixaria de estar ao vosso
lado?
─ Então o pensamento não é mais poderoso para atrair o
Espírito, do que os restos sem importância para ele?
8.
─ Revistes imediatamente vossa esposa, no
momento da morte? ─ Foi ela que veio receber-me e esclarecer-me.
9.
─ Tivestes imediatamente a consciência de vós
mesmo?
─ Ao cabo de pouco tempo. Eu tinha
uma fé intuitiva na imortalidade daalma.
10.
─ Vossa mulher deve ter tido existências
anteriores à última. Como foi que as esqueceu, para consagrar-se inteiramente a
vós?
─ Ela devia guiar-me na minha vida material, sem por
isso renunciar às antigas afeições. Quando dizemos que jamais abandonamos um
Espírito encarnado, deveis compreender que queremos dizer que estaremos mais
tempo junto a ele do que alhures. A velocidade do nosso deslocamento nos
permite isso, tão facilmente quanto, a vós, uma conversa com vários interlocutores.
11.
─ Tendes lembrança de vossas existências
precedentes?
─ Sim. Na última fui um pobre camponês sem instrução;
mas anteriormente havia sido religioso, sincero e devotado ao estudo.
12.
─ A extraordinária afeição à vossa esposa não
teria, como causa, antigas relações de outras existências?
─ Não.
13.
─ Sois feliz como Espírito?
─ Não se pode mais, deveis
compreender.
14.
─ Podeis definir vossa felicidade atual e nos
dizer a sua causa?
─ Eu não deveria ter necessidade de vo-lo dizer: eu
amava e sentia falta de um Espírito querido; amava a Deus; era honesto;
encontrei o que me faltava. Eis os elementos de felicidade para um Espírito.
15.
─ Quais são as vossas ocupações como Espírito?
─ Disse-vos que ao ser chamado estava junto a um homem
de quem gostava. Procurava inspirar-lhe o desejo do bem, como sempre fazem os
Espíritos que Deus julga dignos. Temos ainda outras ocupações que ainda não
podemos revelar.
16.
─ Agradecemos a bondade de terdes vindo.
─ Eu também vos agradeço.
Uma convulsionária
Tendo as circunstâncias permitido contato com a filha de uma das
principais convulsionárias de Saint-Médard, foi possível recolher sobre
essa espécie de seita algumas informações particulares. Assim, nada há
de exagerado no que se relata sobre as torturas a que voluntariamente se
submetiam os fanáticos. Sabe-se que uma das provas, denominadas grandes socorros, consistia
em sofrer a crucificação e todos os sofrimentos da Paixão do Cristo. A
pessoa de quem falamos, e que só faleceu em 1830, ainda tinha nas mãos
os furos feitos pelos pregos que haviam servido para suspendê-la à cruz,
e no lado as marcas dos golpes de lança que havia recebido. Ela
escondia cuidadosamente esses estigmas do fanatismo, e sempre tinha
evitado explicá-los aos filhos. É conhecida na história das
convulsionárias sob um pseudônimo que calaremos, pelos motivos que
revelaremos oportunamente. A conversa que segue ocorreu em presença de
sua filha, que a desejou. Dela suprimiremos particularidades íntimas,
que não interessariam aos estranhos e que foram, sobretudo para a filha,
uma incontestável prova de identidade.
1.
Evocação.
─ Há muito tempo desejo conversar
convosco.
2.
─ Qual o motivo que vos levava a desejar
conversar comigo?
─ Sei apreciar vossos trabalhos, a despeito do que
possais pensar de minhas crenças.
3.
─ Vedes aqui a senhora sua filha? Foi sobretudo
ela que quis conversar convosco, e ficaremos encantados de aproveitar o ensejo
para nossa instrução.
─ Sim, uma mãe sempre vê seus filhos.
4.
─ Sois feliz como Espírito?
─ Sim e não, porque poderia ter feito melhor. Mas Deus
leva em conta a minha ignorância.
5.
─ Lembrai-vos perfeitamente da última
existência?
─ Eu teria muita coisa a vos dizer, mas orai por mim, a
fim de que isto me seja permitido.
6.
─ As torturas a que vos submetestes vos elevaram
e tornaram mais feliz como Espírito?
─ Não me fizeram mal, mas não me
ajudaram a avançar como inteligência.
7.
─ Peço-vos a fineza de ser precisa. Pergunto se
aquilo vos foi levado à conta de mérito?
─ Direi que tendes um item no Livro dos Espíritos que
dá a resposta geral. Quanto a mim, eu era uma pobre fanática.
NOTA: Alusão ao item 726 do Livro dos Espíritos, sobre
os sofrimentos voluntários.
8.
─ Esse item diz que o mérito dos sofrimentos
voluntários está na razão da utilidade resultante para o próximo. Ora, os das
convulsionárias não tinham, segundo creio, senão um fim puramente pessoal.
─ Era geralmente pessoal, e se jamais falei disso a
meus filhos, foi porque compreendia vagamente que não era aquele o verdadeiro
caminho.
OBSERVAÇÃO: Aqui o Espírito da mãe responde por
antecipação ao pensamento da filha, que desejava perguntar por que, em vida,
tinha evitado falar disso aos filhos.
9.
─ Qual a causa do estado de crise das
convulsionárias?
─ Disposição natural e superexcitação fanática. Jamais
teria querido que meus filhos fossem arrastados para essa rampa fatal, que hoje
ainda melhor reconheço como tal.
Respondendo espontaneamente a uma reflexão de sua filha
que, entretanto, não havia formulado a pergunta, acrescenta:
─ Eu não tinha educação, mas intuição
de muitas existências anteriores.
10.
─ Dentre os fenômenos produzidos entre as
convulsionárias, alguns têm analogia com certos efeitos sonambúlicos, como, por
exemplo, a penetração do pensamento, a visão à distância, a intuição das
línguas? O magnetismo representava nisso um algum papel?
─ Muito, e vários sacerdotes
magnetizavam, sem o consentimento das pessoas.
11.
─ De onde provinham as cicatrizes que tínheis
nas mãos e noutras partes do corpo?
─ Pobres troféus de nossas vitórias, que a ninguém
serviram, e que por vezes excitaram paixões. Deveis compreender-me.
OBSERVAÇÃO: Parece que nas práticas das convulsionárias
passavam-se coisas de grande imoralidade que haviam revoltado o coração honesto
dessa senhora, e mais tarde, quando acalmada a febre fanática, fizeram-na tomar
aversão por tudo quanto lhe trouxesse recordações do passado. É sem dúvida uma
das razões que a levavam a não falar do assunto a seus filhos.
12.
─ Realmente eram operadas curas sobre o túmulo
do diácono Pâris?
─ Oh! Que pergunta! Bem sabeis que
não, ou pouca coisa, sobretudo para vós.
13.
─ Depois de vossa morte, vistes Pâris?
─ Desde que ingressei no mundo dos Espíritos, não me
ocupei dele, porque o culpo por meu erro.
14.
─ Como o consideráveis quando viva?
─ Como um enviado de Deus, e é por isto que lhe censuro
o mal que fez em nome de Deus.
15.
─ Mas não é ele inocente pelas tolices
praticadas em seu nome após a sua morte?
─ Não, porque ele próprio não acreditava no que
ensinava. Não o compreendi, quando viva, como o compreendo agora.
16.
─ É certo que o Espírito dele tenha ficado
indiferente, como ele disse, às manifestações ocorridas em sua sepultura?
─ Ele vos enganou.
17.
─ Assim, ele excitava o zelo fanático?
─ Sim, e ainda o faz.
18.
─ Quais as vossas ocupações como Espírito?
─ Procuro instruir-me, e é por isso
que disse que desejava vir entre vós.
19.
─ Em que lugar estais, aqui?
─ Perto do médium, com a mão sobre o
seu braço ou sobre o seu ombro.
20.
─ Se pudéssemos ver-vos, sob que forma seríeis
vista?
─ Minha filha veria sua mãe, como era quando viva.
Quanto a vós, me veríeis em Espírito; a palavra não vo-la posso dizer.
21.
─ Tende a bondade de vos explicar. O que quereis
dar a entender quando dizeis que eu vos veria em Espírito?
─ Uma forma humana transparente,
conforme a depuração do Espírito.
22.
─ Dissestes haver tido outras existências.
Tendes lembrança delas?
─ Sim, eu vo-lo disse, e por minhas
respostas, deveis ver que tive muitas.
23. ─ Poderíeis dizer qual a que
precedeu a última, que conhecemos?
─ Não esta noite e não por este
médium. Pelo senhor, se quiserdes.
NOTA: Ela designa um dos assistentes, que começava a
escrever como médium e explica sua simpatia por ele, porque, diz ela, o
conheceu em sua precedente existência.
24.
─ Ficaríeis contrariada se eu publicasse esta
conversa na Revista?
─ Não. É necessário que o mal seja divulgado; mas não
me chameis... (seu nome de guerra). Detesto esse nome. Designai-me, se
quiserdes, como grande mestra.
OBSERVAÇÃO: É para condescender com o seu desejo que
não citamos o nome sob o qual era conhecida, e que lhe traz penosas
recordações.
25.
─ Nós vos agradecemos por terdes vindo e pelas
explicações que nos destes.
─ Sou eu que vos agradeço por terdes proporcionado a
minha filha a ocasião de encontrar sua mãe, e a mim, a de poder fazer um pouco
de bem.