Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1860

Allan Kardec

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Correspondência

Meu caro Senhor.

Acabo de ler vossa resposta ao Sr. Oscar Comettant, cujo artigo havia lido. Se esse folhetinista cético e canhestramente trocista não se convenceu pelas boas razões que lhe destes, poderia pelo menos reconhecer em vossa resposta a urbanidade do estilo, totalmente ausente da sua prosa. Os parênteses vulgares com que tinha temperado as evocações me pareciam do espírito de rabo vermelho; os lamentos com que lembrava os 2 francos que havia custado a sonata, bem mereciam que a Sociedade lhe votasse um auxílio de 2 francos. Pensais, meu caro senhor Allan Kardec, que eu seja um espírita muito ardente para ter deixado sem resposta um artigo em que era citado e posto em causa. Por minha vez, escrevi também ao Sr. Oscar Comettant. No dia seguinte à recepção de seu jornal, recebeu ele a seguinte carta:

Senhor,

Tive o prazer de ler vosso folhetim Variedades, de sexta-feira. Como me põe em causa, desde que sou citado nominalmente, peço licença para, a respeito, fazer algumas observações, que aceitareis assim como aceitei os espirituosos parênteses com que esmaltastes o relatório das evocações de Mozart e de Chopin. Que é o que quereis troçar com esse artigo humorístico? O Espiritismo? Cometeríeis um grande equívoco, crendo fazer-lhe a menor mossa. Na França, a princípio faz-se troça, depois se julga e só se concedem as honras das piadas às coisas verdadeiramente grandes e sérias, com a liberdade de concedê-las após o exame que merecem.

Se o Sr. Ledoyen é tão ávido e interesseiro quanto quereis fazer crer, deve ele vos ser reconhecido, por terdes querido, num folhetim de onze colunas, assegurar o sucesso de uma de suas mais modestas publicações. É a primeira vez que é publicado um artigo tão importante sobre o Espiritismo, num grande jornal. Vejo por esse artigo quase charivari, que o Espiritismo já é levado em consideração pelos próprios inimigos e, confidencialmente, vos direi que os Espíritos disseram que também se serviriam dos inimigos para o triunfo de sua causa. Assim, o melhor é vos manterdes em guarda, se não vos quiserdes transformar em apóstolo, malgrado vosso.

Não quereis ver no Espiritismo senão charlatanismo moral e comercial. Nós outros, futuros inquilinos de Charenton, nele encontramos a solução de muitos problemas contra os quais a Humanidade quebrava a cabeça há muitos séculos, a saber: o reconhecimento raciocinado de Deus em todas as suas obras materiais e espirituais; a imortalidade e a individualidade evidentes da alma, provadas pelas manifestações dos Espíritos; o conhecimento das leis da justiça divina, estudadas nas diversas encarnações dos Espíritos, etc., etc. Se nos déssemos ao trabalho de aprofundar um pouco esses assuntos, poderíamos ver que se acham acima de todos os sarcasmos e de todas as pilhérias. Por mais que nos considereis sonhadores e alucinados, todos diremos, em lugar do eppur si muove de Galileu: E contudo, Deus lá está!


Peço-vos aceitar, etc.

Brion Dorgeval

Primeiro baixo da ópera-cômica do Teatro de Toulouse, ex-contratado do Sr. Carvalho.

OBSERVAÇÃO: Não é de nosso conhecimento que o Sr. Oscar Comettant tenha publicado esta resposta, bem como a nossa. Ora, atacar sem admitir a defesa não é uma guerra leal.



Bruxelas, 23 de dezembro de 1859

Meu caro colega,

Venho submeter-vos algumas reflexões etnográficas sobre o mundo dos Espíritos, com a intenção de restabelecer uma opinião muito generalizada, mas, a meu ver, muito errada, quanto ao estado do homem após a sua passagem para o mundo espiritual.

Imagina-se erroneamente que um imbecil, um ignorante, um bruto, imediatamente se torna um gênio, um sábio, um profeta, desde que deixou seu estojo. É um erro análogo ao de quem admitisse que um celerado, livre da camisa de força, irá tornar-se honesto; um bobo,esperto, e um fanático, racional, só porque transpuseram a fronteira.

Nada disso. Levamos conosco todas as nossas conquistas morais, o caráter, o conhecimento, os vícios e as virtudes. Não levamos o que se refere à matéria. Os coxos, os zarolhos e os corcundas não mais o são, mas os velhacos, os avarentos e os supersticiosos ainda o são. Não nos devemos admirar de ouvir Espíritos pedirem preces; desejarem que se façam as peregrinações que haviam prometido e até que se descubra o dinheiro que haviam escondido, com o fito de dá-lo à pessoa a quem o haviam destinado, e que a indiquem exatamente, desde que esteja encarnada.

Em suma, o Espírito que tinha um desejo, um plano, uma opinião, uma crença na Terra, quer vê-los realizados. Assim, Hahnemann exclamava: “Coragem, meus amigos, minha doutrina triunfa. Que satisfação para minha alma!”

Quanto ao Dr. Gall, sabeis o que ele pensa de sua ciência, bem como Lavater, Swedenborg e Fourier, o qual me disse que seus alunos haviam truncado a sua doutrina, querendo saltar a etapa do garantismo, que me felicita por continuar.

Numa palavra, todos os Espíritos que professavam uma religião, uma idolatria ou um cisma, por convicção, persistem nas mesmas crenças, até serem esclarecidos pelo estudo e pela reflexão. Tal é o assunto das minhas preocupações neste momento. É evidentemente um Espírito lógico que as dita, porque, há uma hora, eu só pensava em ir para a cama e acabar a leitura do excelente livrinho da Sra. Henry Gaugain sobre os piedosos preconceitos dos bretões contra as novas invenções.

Continuando vossos estudos, reconhecereis que o mundo de além-túmulo é uma imagem fotográfica deste, que, como sabeis, encerra Espíritos perversos como o diabo, e maus como os demônios. Não é de admirar que a gente simples se engane e interdite todo comércio com eles. Isto os priva da visita dos bons e grandes Espíritos, menos raros lá em cima do que aqui embaixo, pois os há de todos os tempos e em toda parte, e eles só nos querem dar bons conselhos e nos fazer o bem. Por outro lado, sabeis com que repugnância e com que cólera os maus respondem ao apelo forçado. Mas o maior e mais raro de todos os Espíritos, aquele que vem apenas três vezes durante a vida de um globo, o Espírito Divino, enfim o Espírito Santo, não atende a evocações dos pneumatólogos: vem quando quer ─ spiritus flat ubi vult ─ o que não quer dizer que não envie outros para lhe preparar o caminho.

A hierarquia é uma lei universal ─ tudo é como tudo ─ aliás como entre nós. O que mais retarda o progresso das boas doutrinas, que a perseguição não deixa avançar, é o falso respeito humano.


Há tempos teria triunfado o magnetismo se, em vez de dizer: o Sr. X., o Sr. N., se tivesse dado o nome e o endereço das pessoas para referências, como dizem os ingleses. Mas se diz: Quem é esse Sr. M., que se esconde? Aparentemente um mentiroso. E esse Sr. J.? Um trapaceiro. E o Sr. F.? Um farsista, ou antes, um ser no qual não se deve confiar, porque se oculta e se mascara apenas para fazer mal e mentir.

Hoje, que enfim as academias admitem o magnetismo e o sonambulismo, primos-irmãos do Espiritismo, é necessário que seus partidários se disponham a assinar com todas as letras. O medo do que dirão é um sentimento covarde e mau.

A ação de subscrever aquilo que se viu, aquilo em que se crê, não deve mais ser considerada como um traço de coragem. Deveis, pois, aconselhar os vossos adeptos a fazer o que sempre faço: assinar.

Jobard


OBSERVAÇÃO: Concordamos em todos os pontos com o Sr. Jobard. Inicialmente, suas observações sobre o estado dos Espíritos são perfeitamente exatas. Quanto ao segundo ponto, como ele aspiramos ao momento em que o medo do que dirão não deterá mais ninguém. Mas, que quereis? É preciso admitir a fraqueza humana. Uns começam, e o Sr. Jobard terá o mérito de ter dado o exemplo. Outros seguirão, tende certeza, quando virem que se pode pôr o pé para fora sem medo de ser mordido. Para tudo é preciso tempo. Ora, o tempo chega mais depressa do que pensa o Sr. Jobard. A reserva que temos na publicação dos nomes obedece a razões de conveniência, pelo que, até agora, nos felicitamos, mas enquanto esperamos, constatamos um progresso muito sensível na coragem de opinião. Diariamente vemos pessoas que há bem pouco tempo ousavam quando muito confessar-se espíritas, hoje o fazerem abertamente nas conversas, e sustentarem as teses de sua doutrina, sem absolutamente se preocuparem com os epítetos grosseiros com que as mimoseiam. É um passo imenso. O resto virá. Eu disse de começo: Mais alguns anos e ver-se-á uma nova mudança; em pouco tempo dar-se-á com o Espiritismo o mesmo que com o magnetismo. Ainda há pouco, só entre quatro paredes se ousava dizer que se era magnetizador. Hoje é um título que nos honra. Quando estiverem convencidos de que o Espiritismo não queima, declarar-se-ão espíritas sem mais medo do que quando se declaram frenologistas, homeopatas, etc. Estamos num momento de transição e as transições nunca se fazem bruscamente.

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