Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

Allan Kardec

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Conferência do Sr. Trousseau

Professor da faculdade de medicina - Feita na associação politécnica, para ensino gratuito dos operários a 18 e 25 de maio de 1862 (Brochura in - 8º)

Se usaram inutilmente os cornos do diabo para derrubar o Espiritismo, eis um reforço que chega aos adversários: É o Sr. doutor Trousseau, que vem dar o golpe de misericórdia nos Espíritos. Infelizmente, se o Sr. Trousseau não acredita nos Espíritos, também não crê no diabo. Mas pouco importa o auxiliar, se ele derrota o inimigo. Sem dúvida esse novo campeão vai dizer a respeito a última palavra da Ciência. É o mínimo que se há de esperar de um homem tão altamente colocado por seu saber.

Atacando as ideias novas, ele não quererá deixar um argumento sem réplica. Não quererá que possam acusá-lo de falar de uma coisa que desconhece. Sem dúvida vai tomar os fenômenos um por um, pesquisá-los, analisá-los, comentá-los, explicálos, demoli-los, demonstrando por a mais b que são ilusões.

Ah! Espíritas! Fiquemos firmes! Se o Sr. Trousseau não fosse um sábio ou se não passasse de um pseudossábio, bem que poderia esquecer alguma coisa. Mas um verdadeiro sábio não quererá deixar a tarefa pela metade. Em geral hábil, quererá a vitória completa. Escutemos e tremamos!

Depois de uma tirada contra as pessoas que se deixam levar por anúncios, ele assim se exprime:

“É que, na verdade, as pessoas capazes de julgar seja o que for, não são as mais numerosas. O Sr. de Sartines queria mandar para a cadeia um charlatão que vendia suas drogas na Ponte Nova e fazia bons negócios. Mandou chamá-lo e lhe perguntou:

“─ Maroto, o que você faz para atrair tanta gente e ganhar tanto dinheiro?

“O homem respondeu:

“─ Senhor, quantas pessoas pensais que passam diariamente pela Ponte Nova?

“─ Não sei.

“─ Vou dizer-vos: cerca de dez mil. Entre elas, quantas pensais que são espertas?

“─ Oh! Oh! Talvez cem, disse o Sr. Sartines.

“─ É muito, mas vo-las deixo e fico com as outras nove mil e novecentas para mim.

“O charlatão era muito modesto e o Sr. Sartines muito severo para com a população de Paris. Sem a menor dúvida, mais de cem pessoas inteligentes atravessavam a Ponte Nova, e os mais inteligentes talvez parassem diante dos cavaletes do charlatão com tanta confiança quanto a multidão, porque, senhores, direi que as classes elevadas sofrem a influência do charlatanismo.

“Entre as nossas sociedades científicas citarei o Instituto. Citarei a seção da Academia de Ciências que encerra, com certeza, a elite dos cientistas do nosso país. Desses sábios, há uns vinte que procuram charlatães.”

Prova evidente da grande confiança que eles têm no saber de seus confrades, pois que a estes preferem os charlatães.

“São pessoas de grande mérito, é certo, entretanto, pelo fato de serem matemáticos, químicos ou naturalistas eminentes, eles concluem que são muito bons médicos, e então se julgam perfeitamente capazes de julgar as coisas que ignoram completamente.”

Se isso constitui prova de seu saber, não constitui prova de sua modéstia nem de sua opinião. Foram feitas muitas sátiras contra os sábios do Instituto. Não conheço nenhuma mais mordaz. É provável, pois, que juntando o exemplo ao preceito, o professor só fale do que sabe.

“Nós, que somos apenas um médico, por vezes temos essa modéstia, porquanto, se nos apresentam grandes teoremas de Matemática ou de Mecânica, confessamos que não sabemos e declinamos da competência. Mas os verdadeiros sábios jamais declinam de sua competência em coisa alguma, sobretudo no que se refere à Medicina.”

Já que os médicos declinam de sua competência naquilo que não sabem, temos uma garantia de que o Sr. Trousseau não tratará, sobretudo numa lição pública, de questões ligadas à Psicologia, desde que não seja profundamente versado nessas matérias. Esses conhecimentos lhe fornecerão, sem dúvida, argumentos irresistíveis em apoio de seu argumento.

“É triste dizer que os empíricos sempre tiveram muito acesso às criaturas inteligentes. Tive a extrema honra de ser amigo íntimo do ilustre Béranger. “Em 1848 tinha ele uma pequena oftalmia, para a qual o Sr. Bretonneau lhe havia aconselhado um colírio. A oftalmia foi curada. Mas como Béranger lia e trabalhava muito, e como fosse um pouco dartroso, a oftalmia reapareceu. Então ele se dirigiu a um sacerdote polonês que curava moléstias de olhos com um remédio secreto. Nessa época eu era, na faculdade, presidente do júri encarregado do exame de oficiais da saúde. Como o sacerdote polonês tinha contas a ajustar com a polícia, porque tinha inutilizado alguns olhos, quis regularizar-se. Com esse objetivo foi procurar Béranger e lhe perguntar se, por sua influência, poderia conseguir que fosse reconhecido como oficial de saúde, a fim de estar em condições de tratar dos olhos e à vontade vazar os olhos dos clientes.”

Se Béranger tinha sido curado pelo Sr. Bretonneau, por que motivo iria dirigirse a um outro? É natural ter mais confiança naquele que nos curou e que tem mais experiência do nosso temperamento do que um estranho.

Na verdade, o diploma é um salvo-conduto que não só permite aos oficiais de saúde arrancar os olhos dos clientes, mas aos médicos a matá-los sem remorso e sem responsabilidade. É certamente por isso que os seus sábios confrades, como confessa o Sr. Trousseau, são tão arrastados a se dirigirem aos empíricos e charlatães.

“Béranger procurou-me e me disse:

“─ Meu amigo, prestai-me um grande obséquio. Tratai de fazer aprovarem esse pobre diabo. Ele só se ocupa de moléstia dos olhos e, posto o exame para oficiais de saúde abranja todos os ramos da arte de curar, sede indulgente e manso. É um refugiado, e depois, ele me curou, eis a melhor razão.

“Eu lhe respondi:

“─ Mandai-me o vosso homem.

“O sacerdote polonês veio à minha casa.

“─ Vós me fostes recomendado, disse-lhe eu, por um homem a quem particularmente devo obrigações. É o mais caro de meus amigos. Além disso, é Béranger, o que é mais importante. Dois de meus colegas, com quem falei, e eu, estamos decididos a fazer o que for possível; apenas os exames são públicos, e será bom tapar um pouco os ouvidos, mas isto é o de menos. Vejamos. Serei generoso. Tomarei o exame de anatomia, e não vos será difícil saber tanta anatomia quanto eu.

Eu interrogarei sobre o olho.

“Nosso homem pareceu desconcertado. Continuei:

“─ Sabeis o que é o olho?

“─ Muito bem.

“─ Sabeis o que é a pálpebra?

“─ Sim.

“─ Tendes ideia do que é uma córnea?

“Ele hesitou.

“─ A pupila?

“─ Ah! Senhor, a pupila, essa eu conheço bem.

“─ Sabeis o que é o cristalino, o humor vítreo, a retina?

“─ Não, senhor. Para que me serviria isso? Só me ocupo de doença de olhos.

“Digo-lhe:

“─ Isso serve para alguma coisa, e vos garanto que quase seria necessário suspeitar da existência de um cristalino, principalmente se quiserdes, como por vezes o fazeis, segundo me parece, operar cataratas.

“─ Eu não opero.

“─ Mas se vos desse na telha extrair uma...

“Não houve saída. O infeliz queria exercer a arte de oculista sem a menor noção de anatomia do olho.”

É realmente difícil mostrar-se menos exigente para dar a esse infeliz o direito de legalmente vazar os olhos do próximo. Contudo parece que ele não operava ─ embora a fantasia pudesse arrastá-lo a isso ─ e que apenas estava de posse de um remédio para curar as oftalmias, e cuja aplicação absolutamente empírica, não requer conhecimentos especiais, pois isso não é bem o que se chama a arte do oculista.

A nosso ver, o mais importante era assegurar-se de que o remédio nada continha de ofensivo. Ele tinha curado o Sr. Béranger, e isto era um indício favorável. No interesse da Humanidade poderia ser útil permitir seu uso.

Aquele homem poderia ter os conhecimentos de anatomia exigidos para obter seu diploma, o que não tornaria bom o remédio, caso fosse mau. Entretanto, graças ao diploma, teria podido receitá-lo com segurança, por mais perigoso que fosse.

Jesus Cristo, que curava os cegos, os surdos, os mudos e os paralíticos, provavelmente não sabia mais de anatomia do que aquele, e o Sr. Trousseau incontestavelmente ter-lhe-ia recusado o direito de fazer milagres. Quantas multas teria ele que pagar hoje se não pudesse curar sem diploma!

Nada disso tem relação com os Espíritos, mas são as premissas do argumento com os quais ele vai esmagar os seus partidários.

“Procurei Béranger e lhe contei a história. Béranger exclamou:

“─ Coitado!...”

É provável que dissesse, de si para consigo: Entretanto me curou! Longe de fazermos a apologia dos charlatães e dos vendedores de panaceias, queremos apenas dizer que pode haver remédios eficazes, fora das fórmulas do códex; que os selvagens que têm segredos infalíveis nas picadas de cobras, não conhecem a teoria da circulação do sangue nem a diferença entre sangue venoso e sangue arterial. Queríamos saber se o Sr. Trousseau, picado por uma cascavel ou por uma coral recusaria os socorros daqueles, apenas porque não têm diploma.

Num próximo artigo falaremos especialmente das diversas categorias de médiuns curadores, que parecem multiplicar-se de uns tempos para cá.

“Eu lhe disse:

“─ Meu caro Béranger, sou vosso médico há oito anos. Hoje vou cobrar os meus honorários.

“─ E quais são eles?

“─ Ides fazer uma canção dedicada a mim, mas eu vou dar o estribilho.

“─ Ah! Bem! E o estribilho?

“─ Ah! Como a gente sabida é boba!

Ficou acertado entre nós que ele não mais me falaria do seu sacerdote polonês. Não é triste ver um homem como Béranger, a quem eu contava tais coisas, não compreender que o seu protegido podia fazer muito mal e era absolutamente incapaz de fazer fosse o que fosse de útil pelas mais simples doença dos olhos?”

Parece que Béranger não estava muito convencido da infalibilidade dos doutores diplomados e podia repetir o estribilho:

Ah! Como a gente sabida é boba.

“Como vedes, senhores, as pessoas inteligentes são as que caem primeiro. Lembrai-vos do que se passava no fim do século passado. ─ Um empírico alemão emprega a eletricidade, ainda mal conhecida naquela época. Ele submete algumas mulheres vaporosas à ação do fluido, e acontecem pequenos acidentes nervosos, que ele atribui a um fluido emanado de si próprio. Então ele estabelece uma teoria bizarra, na época chamada Mesmerismo. Ele vem e se instala na Praça Vendôme, no centro da grande Paris. Aí as pessoas mais ricas, as pessoas da mais alta aristocracia da capital, vêm reunir-se em torno da varinha de Mesmer. Eu não saberia dizer quantas curas foram atribuídas a Mesmer, que aliás é o inventor e o importador, entre nós, dessa maravilha que se chama sonambulismo, isto é, de uma das mais vergonhosas chagas do empirismo.

“Com efeito, que dizer do sonambulismo? Moças histéricas, geralmente perdidas, juntam-se a qualquer charlatão famélico e simulando o êxtase, a catalepsia, o sono, e ei-los, com a mais truanesca segurança, exibindo mais inépcias do que se poderia imaginar, inépcias bem pagas, bem aceitas, acreditadas com uma fé mais robusta que os conselhos do clínico mais esclarecido.”

De que serve serem inteligentes, se são os que caem primeiro? Que é preciso para não se deixar cair? Ser sábio?

─ Não.

─ Ser membro do Instituto?

─ Não, pois um bom número deles tem a fraqueza de preferir os charlatães aos seus confrades. É o Sr. Trousseau que no-lo diz.

─ Ser médico?

─ Também não, pois um bom número deles se dá ao absurdo do magnetismo.

─ Que é, então, necessário para ter bom senso?

─ Ser o Sr. Trousseau.

Sem dúvida o Sr. Trousseau tem direito a externar a sua opinião; de crer ou não no sonambulismo, mas não é transpor os limites da educação tratar todas as sonâmbulas de moças perdidas unidas a charlatães?

É inevitável que nisso, como em tudo, haja abusos, do que não está isenta a medicina oficial. Sem dúvida há simulacros de sonambulismo, mas pelo fato de haver falsos devotos, pode-se dizer que não haja verdadeira devoção?

O Sr. Trousseau ignora que entre os sonâmbulos profissionais há senhoras casadas muito respeitáveis; que o número das que não se põem em evidência é muito maior; que as há nas famílias mais honradas e mais altamente colocadas; que muitos médicos, devidamente diplomados, de um saber incontestável, são hoje campeões declarados do magnetismo, que empregam com sucesso numa porção de casos rebeldes à medicina comum.

Não tentamos fazer o Sr. Trousseau mudar de opinião, provando a existência do magnetismo e do sonambulismo, pois talvez fosse tempo perdido. Aliás isso nos desviaria do nosso escopo. Diremos, porém, que se o ataque e o sarcasmo são armas pouco dignas da Ciência, é ainda mais indigno que ela arraste na lama uma ciência hoje espalhada no mundo inteiro, reconhecida e praticada pelos mais eminentes homens, e atirar sobre os que a professam os insultos mais grosseiros que se possam encontrar no vocabulário da injúria. Só podemos lamentar por ouvirmos expressões tão triviais, feitas para inspirar desgosto, descendo das cátedras do ensino.

Vós vos admirais que inépcias, como vos apraz chamá-las, sejam acreditadas com uma fé mais robusta que os conselhos de clínico mais esclarecido. A razão disso está na inumerável quantidade de erros cometidos pelos clínicos mais esclarecidos, dos quais citaremos apenas dois exemplos.

Uma senhora do nosso conhecimento tinha um filho de quatro a cinco anos, com um tumor no joelho, em consequência de uma queda. O mal tornara-se tão grave que ela julgou que deveria consultar uma celebridade da Medicina, que declarou ser a amputação indispensável e urgente, para salvar a vida da criança. A mãe era sonâmbula. Não podendo decidir o caso da operação de sucesso duvidoso, resolveu tratá-lo ela própria. Ao cabo de um mês a cura era completa. Um ano depois o menino estava forte e sadio. Ela foi ver o médico e lhe disse: “Eis o menino que, em vossa opinião, deveria morrer se a perna não fosse cortada.” ─ Que quereis? respondeu ele, a Natureza tem recursos imprevistos!

O outro caso é pessoal. Há doze anos fiquei quase cego, a ponto de quase não poder ler nem escrever e não reconhecer as pessoas a quem dava a mão. Consultei as notabilidades da Ciência, entre outras o doutor L..., professor de clínica para as moléstias dos olhos. Depois de um exame muito atento e consciencioso, ele declarou que eu sofria de uma amaurose, e que devia resignar-me.

Fui ver uma sonâmbula, que me disse que não era amaurose, mas uma apoplexia nos olhos, que podia degenerar em amaurose se não fosse cuidada adequadamente. Declarou responder pela cura. Em quinze dias, disse ela, experimentareis uma ligeira melhora; em um mês começareis a ver e em dois ou três meses nada mais tereis. Tudo se passou como ela tinha previsto e hoje minha visão está completamente restabelecida.

O Sr. Trousseau continua:

“Ainda em nossos dias tendes um americano que evoca os Espíritos, fazendo falar Sócrates, Voltaire, Rousseau, Jesus Cristo e quem se queira! Em que lugares? Nas espeluncas de alguns bêbados?”

A escolha de expressões do professor é realmente notável.

“Não, ele os faz falar nos palácios, no senado, nos mais aristocráticos salões de Paris. E há gente decente que diz: ‘Mas eu vi; recebi um toque de mão invisível; a mesa foi até o teto!’ Eles vo-lo dizem e repetem. E durante sete ou oito meses os Espíritos batedores deslumbraram os homens, espantaram as mulheres e lhes deram ataques de nervos. Essa estupidez que não tem nome; essa estupidez que o homem mais grosseiro teria vergonha de aceitar, foi aceita por gente esclarecida, mais ainda, por gente das classes altas de Paris.”

O Sr. Trousseau poderia acrescentar: e do mundo inteiro. Parece que ele ignora que essa estupidez sem nome não durou sete ou oito meses, mas dura ainda e se propaga cada vez mais por toda parte; que a evocação dos Espíritos não é privilégio de um americano, mas de milhares de pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e de todos os países.

Até o presente, em boa lógica, a adesão das massas e principalmente das pessoas esclarecidas tinha sido considerada como de certo valor. Parece, porém, que não vale nada, e que a única opinião sensata é a do Sr. Trousseau e dos que pensam como ele.

Quanto aos outros, seja qual for a sua posição social, a sua instrução, morem em palácios e ocupem no Estado as primeiras posições, estão abaixo do homem mais grosseiro, porque o homem mais grosseiro teria vergonha de aceitar suas ideias.

Quando uma opinião se acha tão espalhada quanto a do Espiritismo; quando, em vez de diminuir, progride rapidamente e prodigiosamente, quando é aceita pela elite da Sociedade, se ela é falsa e perigosa, é necessário opor-lhe um dique; é preciso combatê-la com provas contrárias.

Ora! Parece que o Sr. Trousseau só dispõe deste argumento: Ah! Como as pessoas sabidas são tolas!

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