Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Allan Kardec

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Criações fantásticas da imaginação

As visões da senhora Cantianille

L’Événement de 19 de junho contém o seguinte artigo.

“Fatos estranhos, ainda inexplicados, produziram-se no ano passado em Auxerre e abalaram a população. Os partidários do Espiritismo neles viram manifestações de sua doutrina, e o clero os considerou como novos exemplos de possessão. Falaram de exorcismos, como se tivessem voltado os belos tempos das Ursulinas de Loudun. A pessoa em torno da qual se fazia todo esse alvoroço chamavase Cantianille B... Um vigário da catedral de Sens, o Sr. Padre Thorey, autorizado por seu bispo, constatou essas aparentes derrogações das leis naturais. Hoje esse padre publica o resultado de suas observações, sob o título de Relações maravilhosas da senhora Cantianille B... com o mundo sobrenatural. Ele nos traz uma prova de seu trabalho e é com prazer que dele destacamos um trecho, curioso sob vários aspectos.

“No prefácio, depois de haver exposto o plano de seu livro, o autor acrescenta:

“Que o meu leitor, ao percorrer estas páginas, não precipite o seu julgamento. Sem dúvida esses fatos lhe parecerão incríveis, mas lhe peço lembrar-se que afirmamos sob juramento, Cantianille e eu, a sua veracidade. No relato abaixo, nada de exagerado nem inventado ao bel-prazer; tudo aí é perfeitamente exato.

“Além disto, esses fatos, essas manifestações prodigiosas do mundo superior, se repetem todos os dias e todas as vezes que o desejo, e pedimos que não nos acreditem por nossa simples afirmação. Ao contrário, pedimos insistentemente que os estudem; que se façam reuniões de homens competentes, apenas desejosos da verdade e dispostos a buscá-la lealmente. Todas essas maravilhas reproduzir-se-ão à sua vista e tantas vezes quantas forem necessárias para convencê-los. Nós assumimos o compromisso.

“Possam os Espíritos com ideias largas considerar este livro como uma boa nova!”

No correr da obra, a senhora Cantianille B... conta como ela mesma se tornou membro e presidente de uma sociedade de Espíritos, em 1840, durante sua passagem por um convento de religiosas:

“Ossian, Espírito de segunda ordem, tendo vindo, como de hábito, buscar-me no convento, logo me vi transportada para o meio da reunião. Colocou-me sobre um trono, onde os aplausos mais barulhentos acolheram a minha aparição.

“Fizeram-me proferir o juramento ordinário: ‘Juro ofender a Deus por todos os meios possíveis e não recuar ante coisa alguma para fazer triunfar o inferno sobre o Céu. Amo Satã! Odeio Deus! Quero a queda do Céu e o reino do inferno!...’

“Depois disto, cada um me veio felicitar e encorajar-me para me mostrar forte nas provas que me restavam a passar. Prometi.

“Esses gritos, esse tumulto, esse interesse de cada um, a música e os feixes de luz que clareavam a sala, tudo me eletrizava, me inebriava!... Então eu gritava com voz forte: ‘Estou pronta; não temo vossas provas; ides ver se sou digna de estar entre os vossos.’ Logo cessou todo ruído, toda luz desapareceu. ‘Anda’, disse-me uma voz. Avancei sem hesitação por um estreito corredor, pois sentia de cada lado como duas muralhas, e essas muralhas pareciam aproximar-se cada vez mais. Pensei que ia ser esmagada, e o terror apoderou-se de mim. Quis voltar, mas no mesmo instante senti-me nos braços de Ossian. Ele exerceu sobre todo o meu corpo uma pressão tão viva que soltei um grito penetrante. ‘Cala-te, disse-me ele, ou estarás morta.’ O perigo restaurou-me a coragem...

“Não, não gritarei mais; não, não recuarei.” E fazendo um esforço sobre-humano, transpus como um raio esse longo corredor, que a cada passo se tomava mais escuro e estreito. A despeito de meus esforços, meu espanto redobrava e eu talvez fosse fugir, quando de repente, fugindo a terra de meus pés, caí num abismo cuja profundidade não podia avaliar. Fiquei um instante atordoada nessa queda, entretanto sem me desencorajar. Um pensamento infernal acabava de atravessar-me o espírito. “Ah! Eles querem me apavorar!... Eles verão se eu temo os demônios...” E logo me levantei para buscar uma saída. Mas... eis que de todos os lados apareciam chamas!... Elas se aproximavam de mim como para me queimar...

“E no meio desse fogo, os Espíritos gritando, urrando, que terror! “─ Para que me queres? Perguntei a Ossian.

“─ Quero que sejas a presidente de nossa associação... Quero que nos ajudes a odiar a Deus; quero que jures ser nossa, por nós e conosco, em toda parte e para sempre!

“Tão logo fiz essas promessas, o fogo apagou-se subitamente.

“─ Não me fujas, disse-me ele, eu te trago a felicidade e a grandeza. Olha.”

“Achei-me em meio aos associados, no meio da sala que haviam embelezado ainda mais em minha ausência. Um repasto suntuoso foi servido.

“Então me deram o lugar de honra, e no fim, quando todos estavam aquecidos pelo vinho e pelos licores e superexcitados pela música, fui nomeada presidente.

“Aquele que me havia entregue ressaltou nalgumas palavras a coragem que eu havia mostrado nessas provas terríveis e, em meio a mil bravos, aceitei o título fatal de presidente.

“Eu estava, assim, à testa de alguns milhares de pessoas atentas ao menor sinal. Não tive senão um pensamento: merecer sua confiança e sua submissão. Infelizmente, fui muito bem sucedida.”

O autor tem razão ao dizer que os partidários do Espiritismo podem ver nestes fatos manifestações de sua doutrina. É que, com efeito, o Espiritismo, para os que o estudaram alhures que não na escola dos senhores Davenport e Robin, é a revelação de um novo princípio, de uma nova lei da Natureza, que nos dá a razão daquilo que, na falta de melhor, convencionou-se atribuir à imaginação. Esse princípio está no mundo extracorpóreo, intimamente ligado à nossa existência. Aquele que não admite a alma individual e independente da matéria, rejeitando a causa a priori, não pode compreender os seus efeitos. Contudo, esses efeitos saltam incessantemente aos nossos olhos, inumeráveis e patentes. Seguindo-os passo a passo em sua sucessão, chega-se à fonte. É o que faz o Espiritismo, sempre procedendo pela observação, remontando do efeito à causa, e jamais pela teoria preconcebida.

Eis um ponto capital sobre o qual não seria demasiado insistir. O Espiritismo não adotou como ponto de partida a existência dos Espíritos e do mundo invisível, a título de suposição gratuita, a não ser para mais tarde provar essa existência, mas na observação dos fatos, e dos fatos constatados ele concluiu pela teoria. Essa observação o levou a reconhecer não apenas a existência da alma como ser principal, pois que nela residem a inteligência e as sensações, e ela sobrevive ao corpo, mas que fenômenos de uma ordem particular se passam na esfera da atividade da alma, encarnada ou desencarnada, fora da percepção dos sentidos. Como a ação da alma se liga essencialmente à do organismo durante a vida, é um campo de exploração vasto e novo aberto à psicologia e à fisiologia, e no qual a Ciência encontrará o que inutilmente procura há tanto tempo.

O Espiritismo, portanto, encontrou um princípio fecundo, mas não se segue que tudo possa explicar. O conhecimento das leis da eletricidade deu a explicação dos efeitos do raio. Ninguém tratou desse assunto com mais saber e lucidez do que Arago, contudo, no fenômeno tão vulgar do raio, há efeitos que ele declara, sábio que é, não poder explicar, como por exemplo o dos relâmpagos bifurcados. Nega-os por isso? Não, pois tem muito bom-senso e, aliás, não se pode negar um fato. Que faz ele? Ele diz: Observemos e esperemos estar mais adiantados. O Espiritismo não age diferentemente. Ele confessa a sua ignorância sobre aquilo que não sabe e, esperando sabê-lo, busca e observa.

As visões da senhora Cantianille pertencem a essa categoria de questões sobre as quais, de certo modo, não se pode, até mais ampla informação, senão tentar uma explicação. Cremos achá-la no princípio das criações fluídicas pelo pensamento.

Quando as visões têm por objeto uma coisa positiva, real, cuja existência é constatada, sua explicação é muito simples: A alma vê, por efeito de sua radiação, o que os olhos do corpo não podem ver. Se o Espiritismo tivesse explicado apenas isto, já teria levantado o véu de muitos mistérios. Mas a questão se complica quando se trata de visões que, como as da senhora Cantianille, são puramente fantásticas. Como pode a alma ver o que não existe? De onde vêm essas imagens que, para os que as veem, têm toda a aparência de realidade? Dizem que são efeitos da imaginação. Que seja, mas esses efeitos têm uma causa. Em que consiste esse poder da imaginação? Como e sobre o que age ela? Se uma pessoa medrosa ouve um ruído de camundongos durante a noite, é tomada de pavor e imagina ouvir passos de ladrões; se toma uma sombra ou uma forma vaga por um ser vivo que a persegue, aí estão verdadeiros efeitos da imaginação. Mas nas visões do gênero das de que aqui se trata, existe algo mais, porque não é mais apenas uma ideia falsa, é uma imagem com suas formas e cores, tão claras e precisas que poderiam ser desenhadas. Contudo, não passam de ilusão! De onde vem isto?

Para nos darmos conta do que se passa nessa circunstância, é necessário sair de nosso ponto de vista exclusivamente material e penetrar, pelo pensamento, no mundo incorpóreo; identificarmo-nos com a sua natureza e com os fenômenos especiais que se devem passar num meio completamente diferente do nosso. Estamos aqui embaixo na posição de um espectador que se admira de um efeito cênico, porque não compreende o seu mecanismo, mas se ele for para trás dos bastidores, compreenderá tudo.

Em nosso mundo tudo é matéria tangível; no mundo invisível tudo é, se assim nos podemos exprimir, matéria intangível, isto é, intangível para nós que só percebemos por órgãos materiais, mas tangível para os seres desse mundo, que percebem por sentidos espirituais. Tudo é fluídico nesse mundo, homens e coisas, e as coisas fluídicas aí são também reais, relativamente, como as coisas materiais são reais para nós. Eis um primeiro princípio.

O segundo princípio está nas modificações que o pensamento imprime ao elemento fluídico. Pode-se dizer que ele o modela à vontade, como modelamos um pouco de terra para dela fazer uma estátua. Apenas, sendo a terra uma matéria compacta e resistente, para a manipular é necessário um instrumento resistente, ao passo que a matéria etérea sofre sem esforço a ação do pensamento. Sob essa ação, ela é susceptível de revestir todas as formas e todas as aparências. É assim que vemos os Espíritos ainda pouco desmaterializados se apresentarem tendo em suas mãos os objetos que tinham em vida; vestir-se com as mesmas roupas; usarem os mesmos ornamentos e tomarem, à vontade, a mesma aparência. A rainha de Oude, cuja comunicação publicamos na Revista de março de 1858, sempre se via com suas joias e dizia que elas não a haviam deixado. Para isto basta-lhes um ato do pensamento, sem que, o mais das vezes, se deem conta da maneira pela qual a coisa se opera, como entre os vivos muita gente anda, vê e ouve sem poder dizer como e por quê. Acontecia o mesmo também com o Espírito do zuavo de Magenta (Revista de julho de 1859), que dizia ter o mesmo traje, e quando lhe perguntavam onde o tinha obtido, pois o seu havia ficado no campo de batalha, respondia: Isto é lá com o meu alfaiate. Citamos vários fatos deste gênero, entre outros o do homem da caixa de rapé (agosto de 1859), e o de Pierre Legay (novembro de 1864), que pagava sua passagem de ônibus. Essas criações fluídicas por vezes podem revestir, para os vivos, aparências momentaneamente visíveis e tangíveis, porque, na verdade, elas são devidas a uma transformação da matéria etérea. O princípio das criações fluídicas parece ser uma das mais importantes leis do mundo incorpóreo.

Nos seus momentos de emancipação, gozando a alma encarnada parcialmente das faculdades de Espírito livre, pode produzir efeitos análogos. Aí pode estar a causa das visões ditas fantásticas. Quando o Espírito está fortemente imbuído de uma ideia, seu pensamento pode criar uma imagem fluídica correspondente, que para ele tem todas as aparências da realidade, como no caso do dinheiro de Pierre Legay, embora a coisa não exista por si mesma. Tal é, sem dúvida, o caso que aconteceu com a senhora Cantianille. Preocupada com as descrições que tinha ouvido fazer do inferno, dos demônios e de suas tentações, dos pactos pelos quais eles se apoderam das almas, das torturas dos danados, seu pensamento criou um quadro fluídico que só tinha realidade para ela.

Podemos colocar na mesma categoria as visões da Irmã Elmerick, que afirmava ter visto todas as cenas da Paixão e encontrado o cálice no qual Jesus tinha bebido, bem como outros objetos análogos aos que são utilizados no culto atual, que certamente não existiam naquela época, e dos quais, entretanto, ela fazia uma descrição minuciosa. Dizendo que tinha visto tudo isso, ela agia de boa-fé, porque realmente tinha visto, pelos olhos da alma, mas uma imagem fluídica, criada por seu pensamento.

Todas as visões têm seu princípio nas percepções da alma, como a vista corporal tem a sua na sensibilidade do nervo óptico. Mas elas variam em sua causa e em seu objeto. Quanto menos desenvolvida é a alma, mais susceptível de criar ilusão sobre o que vê. Suas imperfeições a tornam sujeita ao erro. As mais desmaterializadas são aquelas cujas percepções são mais extensas e mais justas. Mas, por mais imperfeitas que sejam, são faculdades não menos úteis para estudo.

Se esta explicação não oferece uma certeza absoluta, pelo menos tem um caráter evidente de probabilidade. Ela prova sobretudo uma coisa, é que os espíritas não são tão crédulos quanto pretendem os seus detratores e não concordam com tudo o que parece maravilhoso. Todas as visões estão, pois, longe de ser para eles artigos de fé; mas, sejam o que forem, ilusão ou verdade, são efeitos que não poderiam ser negados. Eles os estudam e procuram compreendê-los, sem a pretensão de tudo saber e de tudo explicar. Só afirmam uma coisa quando está demonstrada pela evidência, pois seria tão inconsequente tudo aceitar quanto tudo negar.

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