Há, por vezes, sobre os homens e sobre as coisas, opiniões nas quais acreditamos e que passam ao estado de coisas aceitas, por mais errôneas que sejam, porque achamos mais cômodo aceitá-las prontas e acabadas. Assim é com Maomé e sua religião, da qual se conhece quase só o lado legendário. O antagonismo das crenças, quer por espírito de partido, quer por ignorância, houve por bem fazer ressaltar os pontos mais acessíveis à crítica, muitas vezes e de propósito deixando na sombra as partes favoráveis. Quanto ao público imparcial e desinteressado, é preciso dizer em seu favor que faltaram elementos necessários para julgar por ele mesmo. As obras que poderiam tê-lo esclarecido, escritas numa língua apenas conhecida de raros cientistas, eram-lhe inacessíveis; e como, em definitivo, não havia para ele nenhum interesse direto, ele acreditou sob palavra naquilo que lhe disseram, sem perguntar mais. Disto resultou que sobre o fundador do Islamismo se fizeram ideias muitas vezes falsas ou ridículas, baseadas em preconceitos que não encontravam nenhuma contestação na discussão.
Os trabalhos perseverantes e conscienciosos de alguns sábios orientalistas modernos, tais como Caussin de Perceval, na França, o Dr. W. Muir, na Inglaterra, G. Weil e Sprenger, na Alemanha, hoje permitem encarar a questão sob seu verdadeiro prisma
[1]. Graças a eles, Maomé nos aparece completamente diverso dos contos populares. O lugar considerável que sua religião ocupa na Humanidade e sua influência política hoje fazem desse estudo uma necessidade. A diversidade das religiões foi durante muito tempo uma das principais causas de antagonismo entre os povos. No momento em que elas têm uma tendência manifesta para aproximar-se, para fazer desaparecerem as barreiras que as separam, é útil conhecer o que, em suas crenças, pode favorecer ou retardar a aplicação do grande princípio da fraternidade universal. De todas as religiões, o Islamismo é a que, à primeira vista, parece encerrar maiores obstáculos a essa aproximação. Deste ponto de vista, como se vê, este assunto não poderia ser indiferente aos espíritas, e é esta a razão pela qual julgamos dever tratá-lo aqui.
Sempre julgamos mal uma religião quando tomamos por ponto de partida exclusivo suas crenças pessoais, porque então é difícil nos alhearmos de um sentimento de parcialidade na apreciação dos princípios. Para compreender o seu ponto forte e o fraco, é preciso vê-la de um ponto de vista mais elevado; abarcar o conjunto de suas causas e efeitos. Se nos reportarmos ao meio onde ela surgiu, aí encontraremos, quase sempre, senão uma justificativa completa, pelo menos uma razão de ser. É necessário, sobretudo, penetrar-se do primeiro pensamento do fundador e dos motivos que o guiaram. Longe de nós a intenção de absolver Maomé de todos os seus erros, bem como sua religião de todos os erros que ferem o mais vulgar bom-senso
. Contudo, a bem da verdade devemos dizer que também seria tão pouco lógico julgar essa religião conforme o que dela fez o fanatismo, quanto o seria julgar o Cristianismo segundo a maneira pela qual alguns cristãos o praticam. É bem certo que, se os muçulmanos seguissem em espírito o
Alcorão que o Profeta lhes deu por guia, eles seriam, sob muitos aspectos, muito diferentes do que são. Entretanto, esse livro, tão sagrado para eles que só o tocam com respeito, leem-no e o releem sem cessar; os fervorosos até o sabem de cor. Mas quantos o compreendem? Comentam-no, mas do ponto de vista de ideias preconcebidas, de cujo afastamento fariam um caso de consciência. Aí não veem, pois, senão o que querem ver. Aliás, a linguagem figurada permite aí encontrar tudo o que se quer, e os sacerdotes que, lá como alhures, governam pela fé cega, não buscam ali descobrir o que pudesse contrariá-los. Não é, pois, junto aos doutores da lei que se deve inquirir do espírito da lei de Maomé. Os cristãos também têm o Evangelho, muito mais explícito que o
Alcorão, como código de moral, o que não impede que em nome desse mesmo Evangelho, que manda amar até os inimigos, tenham torturado e queimado milhares de vítimas, e que de uma lei toda de caridade tenham feito uma arma de intolerância e perseguição. Podemos exigir que povos ainda meio bárbaros façam uma interpretação mais sã de suas Escrituras do que o fazem os cristãos civilizados?
Para apreciar a obra de Maomé é preciso remontar à fonte, conhecer o homem e o povo ao qual ele se havia imposto a missão de regenerar, e só então compreenderemos que, para o meio onde ele vivia, seu código religioso era um progresso real.
Lancemos, inicialmente, um golpe de vista sobre a região.
Em época imemorial, a Arábia era povoada por diversas tribos, quase todas nômades, e perpetuamente em guerra umas contra as outras, suplementando pela pilhagem a pouca riqueza que proporcionava um trabalho penoso, sob um clima causticante. Os rebanhos eram sua principal fonte de recursos; algumas se dedicavam ao comércio, que era feito por caravanas partindo anualmente do Sul, para irem à Síria ou à Mesopotâmia. Sendo quase inacessível o centro da península, as caravanas pouco se afastavam das bordas do mar; as principais seguiam o Hidjaz, região que forma, nas margens do Mar Vermelho, uma faixa estreita, na extensão de quinhentas léguas, separada do centro por uma cadeia de montanhas, prolongamento das da Palestina. A palavra árabe
hidjaz significa barreira, e se dizia da cadeia de montanhas que borda essa região e a separa do resto da Arábia. O Hidjaz e o Yemen, ao sul, são as partes mais férteis; o centro quase que não passa de um vasto deserto.
Essas tribos haviam estabelecido mercados para onde eles convergiam de todas as partes da Arábia. Ali se regulavam os negócios comuns; as tribos inimigas trocavam os seus prisioneiros de guerra, e muitas vezes resolviam as suas divergências por arbitragem. Coisa singular, essas populações, inteiramente bárbaras que eram, apaixonavam-se pela poesia. Nesses lugares de reunião, durante os intervalos de lazer deixados pelo cuidado dos negócios, havia desafios entre os poetas mais hábeis de cada tribo. O concurso era julgado pelos assistentes e era para uma tribo uma grande honra conquistar a vitória. As poesias de mérito excepcional eram transcritas em letras de ouro e pregadas nos muros sagrados da Caaba, em Meca, onde lhes veio o nome de
Moudhahabat, ou poemas dourados.
Como para ir a esses mercados anuais e voltar com segurança era preciso certo tempo, havia quatro meses do ano em que os combates eram interditos e nos quais não era permitido perturbar as caravanas e os viajantes. Combater durante esses meses reservados era visto como um sacrilégio, que provocava as mais terríveis represálias.
Os pontos de estação das caravanas, que paravam nos lugares onde encontravam água e árvores tornaram-se centros onde pouco a pouco formaram-se cidades, das quais as duas principais, no Hidjaz, são Meca e Yathrib, hoje Medina.
A maior parte dessas tribos consideravam-se descendentes de Abraão. Assim, esse patriarca era tido em grande honra entre eles. Sua língua, pelas semelhanças com o hebraico, realmente atestava uma identidade de origem entre o povo árabe e o povo judeu. Mas não parece menos certo que o sul da Arábia tenha tido seus habitantes indígenas.
Entre essas populações havia uma crença, tida como certa, de que a famosa fonte de Zemzem, no vale do Meca, era a que tinha feito jorrar o anjo Gabriel, quando Agar, perdida no deserto, ia morrer de sede com o seu filho Ismael. A tradição dizia igualmente que Abraão, tendo vindo ver seu filho exilado, tinha construído com suas próprias mãos, não longe dessa fonte, a
Caaba, casa quadrada de nove côvados
[2] de altura por trinta e dois de comprimento e vinte e dois de largura. Essa casa, religiosamente conservada, tornou-se um lugar de grande devoção, que era um dever visitar, e foi transformada em templo. As caravanas aí paravam naturalmente e os peregrinos aproveitavam a companhia para viajar com mais segurança. É assim que as peregrinações a Meca existiram desde tempos imemoriais. Maomé nada mais fez que consagrar e tornar obrigatório um costume estabelecido. Para tanto teve um objetivo político, que veremos mais adiante.
Num dos ângulos externos do templo estava incrustada a famosa
pedra negra, trazida dos céus, ao que se diz, pelo anjo Gabriel, para marcar o ponto onde deviam começar os giros que os peregrinos deviam fazer sete vezes em redor da Caaba. Dizem que originalmente essa pedra era de uma brancura deslumbrante, mas que o toque dos pecadores a enegreceu. No dizer dos viajantes que a viram, ela não tem mais de seis polegadas de altura por oito de comprimento. Pareceria um simples pedaço de basalto, ou talvez um aerólito, o que explicaria a sua origem celeste, segundo as crenças populares.
Construída por Abraão, a Caaba não tinha porta que a fechasse e era ao nível do solo. Destruída por uma torrente que irrompeu pelo ano 150 da era cristã, foi reconstruída e elevada acima do solo, para pô-la ao abrigo de semelhantes acidentes. Cerca de cinquenta anos mais tarde, um chefe de tribo do Yemen aí pôs uma cobertura de estofos preciosos e mandou colocar uma porta com fechadura para pôr em segurança os presentes preciosos acumulados incessantemente pela piedade dos peregrinos.
A veneração dos árabes pela Caaba e pelo território que a circundava era tão grande que eles não tinham ousado aí construir habitações. Essa área tão respeitada, chamada o Haram, compreendia todo o vale do Meca, cuja circunferência é de cerca de quinze léguas. A honra de guardar esse templo venerado era muito cobiçada; as tribos a disputavam e o mais das vezes essa atribuição era direito de conquista. No século quinto, Cossayy, chefe da tribo dos coraicitas, quinto antepassado de Maomé, tendo-se tornado senhor do Haram e tendo sido investido do poder civil e religioso, mandou construir um palácio ao lado da Caaba e permitiu que os de sua tribo aí se estabelecessem. Assim foi fundada a cidade de Meca. Parece que ele foi o primeiro que colocou uma cobertura de madeira na Caaba. A Caaba está hoje na área de uma mesquita, e Meca é uma cidade de cerca de quarenta mil habitantes, depois de ter tido, ao que se diz, cem mil.
No princípio, a religião dos árabes consistia na adoração de um Deus único, a cujas vontades o homem deve ser completamente submisso. Essa religião, que era a de Abraão, chamava-se
Islã e os que a professavam diziam-se
muçulmanos, isto é, submetidos à vontade de Deus. Mas, pouco a pouco, o puro Islã degenerou em grosseira idolatria; cada tribo tinha os seus deuses e os seus ídolos, que defendia obstinadamente pelas armas, para provar a superioridade de seu poder. Muitas vezes foram essas as causas ou pretextos de guerras longas e encarniçadas.
A fé de Abraão havia, pois, desaparecido entre esses povos, malgrado o respeito que conservavam por sua memória, ou pelo menos tinha sido de tal modo desfigurada que em realidade não mais existia. A veneração pelos objetos considerados sagrados tinha descido ao mais absurdo fetichismo; o culto da matéria tinha substituído o do espírito. Atribuía-se um poder sobrenatural aos mais vulgares objetos consagrados pela superstição, a uma imagem, a uma estátua. Tendo o pensamento abandonado o princípio pelo seu símbolo, a piedade não passava de uma série de práticas exteriores minuciosas, nas quais a menor infração era olhada como um sacrilégio.
Contudo, ainda se encontravam, em certas tribos, alguns adoradores do Deus único, homens piedosos que praticavam a mais inteira submissão à sua vontade suprema e condenavam o culto aos ídolos. Eles eram chamados de
hanyfes. Eram os verdadeiros muçulmanos, os que tinham conservado a fé pura do Islã. Mas eles eram pouco numerosos e sem influência sobre o espírito das massas. Há muito tempo colônias judias se haviam estabelecido no Hidjaz e haviam conquistado um certo número de prosélitos ao Judaísmo, principalmente entre os hanyfes. O Cristianismo também aí teve os seus representantes e propagadores nos primeiros séculos de nossa era, mas nem uma nem outra dessas crenças aí lançaram raízes profundas e duráveis. A idolatria tinha-se transformado em religião dominante. Ela convinha melhor, por sua diversidade, à independência turbulenta e à divisão infinita das tribos, que a praticavam com o mais violento fanatismo. Para triunfar dessa anarquia religiosa e política, era preciso um homem de gênio, capaz de se impor por sua energia e firmeza, bastante hábil para partilhar dos costumes e do caráter desses povos, e cuja missão fosse exaltada aos seus olhos pelo prestígio de suas qualidades de profeta. Esse homem foi Maomé.
Maomé nasceu em Meca a 27 de agosto do ano 570
da era cristã, no ano dito do elefante. Não era, como pensam vulgarmente, um homem de condição obscura. Ao contrário, ele pertencia a uma família poderosa e considerada, da tribo dos coraicitas, uma das mais importantes da Arábia, que então dominava em Meca. Fazem-no descender em linha reta de Ismael, filho de Abraão e de Agar. Seus últimos antepassados, Cossayy, Abd-Menab, Hachim e Abd-el-Moutalib, seu avô, se haviam ilustrado por eminentes qualidades e altas funções que tinham desempenhado. Sua mãe, Amina, era de nobre família coraicita e descendia também de Cossayy. Seu pai Abd-Allah morreu dois meses antes de seu nascimento; assim, ele foi criado com muita ternura por sua mãe, que o deixou órfão com a idade de seis anos; depois por seu avô Abd-el-Moutalib, que o queria muito e se comprazia muitas vezes em lhe predizer altos destinos, mas que, ele próprio, morreu dois anos depois.
A despeito da posição que tinha ocupado sua família, Maomé passou sua infância e sua juventude numa situação bem próxima da miséria; sua mãe lhe havia deixado por única herança um rebanho de carneiros, cinco camelos e uma fiel escrava negra, que havia cuidado dele, e pela qual ele conservou sempre um vivo apego. Depois da morte de seu avô, ele foi recolhido pelos tios, cujos rebanhos pastoreou até a idade de vinte anos; ele os acompanhava inclusive em suas expedições guerreiras contra as outras tribos; mas, sendo de humor suave e pacífico, nelas não tomava parte ativa, sem contudo fugir ou temer o perigo, limitando-se a ir apanhar suas flechas. Quando ele chegou ao topo da glória, gostava de lembrar que Moisés e David, ambos profetas, tinham sido pastores, como ele.
Tinha o espírito meditativo e sonhador; seu caráter, de uma solidez e de uma maturidade precoces, a par de uma extrema direitura, de um perfeito desinteresse e de costumes irreprocháveis, lhe valeram uma tal confiança da parte de seus companheiros que o designavam pela alcunha de
El-Amin, “o homem seguro, o homem fiel”. Embora jovem e pobre, convocavam-no às assembleias da tribo para os negócios mais importantes. Ele fazia parte de uma associação formada entre as principais famílias coraicitas, com vistas a prevenir as desordens da guerra, a proteger os fracos e a lhes fazer justiça. Considerava sempre uma glória ter concorrido para isto, e, nos últimos anos de sua vida, sempre se via ligado pelo juramento que neste sentido havia prestado na mocidade. Dizia que estava sempre pronto a responder ao apelo que lhe fizesse o homem mais obscuro em nome desse juramento, e que não queria, pelos mais belos camelos da Arábia, faltar à fé que ele havia jurado. Por esse juramento, os associados juravam ante uma divindade vingadora, que eles tomariam a defesa dos oprimidos e perseguiriam a punição dos culpados enquanto houvesse uma gota d’água no oceano.
Fisicamente, Maomé era de estatura pouco acima da média, fortemente constituído; a cabeça muito grande; sua fisionomia, sem ser bela, era agradável e respirava calma e tranquilidade e era marcada por uma suave gravidade.
Aos vinte e cinco anos de idade, casou-se com sua prima Khadidja, viúva rica, mais velha do que ele pelo menos quinze anos, da qual ele havia conquistado a confiança, pela inteligente probidade que ele havia desenvolvido na condução de uma de suas caravanas. Era uma mulher superior. Essa união, que durou vinte e quatro anos e que só terminou pela morte de Khadidja, aos sessenta e quatro anos de idade, foi constantemente feliz. Maomé tinha então quarenta e nove anos e essa perda lhe causou uma dor profunda.
Depois da morte de Khadidja, seus costumes mudaram. Desposou várias mulheres; teve doze ou treze em casamentos legítimos, e ao morrer deixou nove viúvas. Incontestavelmente isto foi um erro capital, cujas lamentáveis consequências veremos mais tarde.
Até os quarenta anos sua vida pacífica nada oferece de saliente. Só um fato o tirou um instante da obscuridade. Ele tinha, então, trinta e cinco anos. Os coraicitas resolveram reconstruir a Caaba, que ameaçava ruir. Só com muito trabalho apaziguaram, pela divisão dos trabalhos, as diferenças suscitadas pela rivalidade das famílias que aí queriam participar. Esses conflitos reapareceram com extrema violência quando se tratou de recolocar a famosa pedra negra. Ninguém queria ceder seu direito. Os trabalhos tinham sido interrompidos e de todos os lados corriam às armas. Por proposta do decano, concordaram em aceitar a decisão da primeira pessoa que entrasse na sala das deliberações: foi Maomé. Quando o viram, todos gritaram:
“El-amin! El-amin! o homem firme e fiel”, e aguardaram o seu julgamento. Por sua presença de espírito, ele resolveu a dificuldade. Tendo estendido seu manto no chão, nele pôs a pedra e pediu a quatro dos principais chefes facciosos que o tomassem, cada um por uma ponta, e o levantassem, todos juntos, à altura que a pedra deveria ocupar, isto é, a quatro ou cinco pés acima do solo. Então tomou-a e a colocou com suas próprias mãos. Os assistentes se declararam satisfeitos e a paz foi restabelecida.
Maomé gostava de passear sozinho nos arredores de Meca, e todos os anos, durante os meses sagrados de trégua, retirava-se para o monte Hira, numa gruta estreita, onde se entregava à meditação. Ele estava com quarenta anos quando, num de seus retiros, teve uma visão durante o sono. O anjo Gabriel lhe apareceu, mostrando-lhe um livro que o aconselhou a ler. Três vezes Maomé resistiu a essa ordem, e só para escapar ao constrangimento exercido sobre ele é que consentiu em ler. Ao despertar disse ter sentido “que um livro tinha sido escrito em seu coração”. O sentido desta expressão é evidente. Significa que havia tido a inspiração de um livro. Mais tarde, porém, ela foi tomada ao pé da letra, como geralmente acontece com as coisas ditas em linguagem figurada.
Um outro fato prova a que erros de interpretação podem conduzir a ignorância e o fanatismo. Diz Maomé, em algum lugar, no
Alcorão:
“Nós não abrimos teu coração e não tiramos o fardo de teus ombros?” Estas palavras, relacionadas com um acidente ocorrido com Maomé quando ela era ainda garoto, deram lugar à fábula, propagada entre os crentes e ensinada pelos sacerdotes como um fato miraculoso, de que dois anjos abriram o ventre do menino e tiraram de seu coração uma mancha negra, sinal do pecado original. Deve-se acusar Maomé por esses absurdos, ou aqueles que não o compreenderam? Dá-se o mesmo com uma porção de histórias ridículas sobre as quais o acusam de haver apoiado sua religião. É por isso que não hesitamos em dizer que um cristão esclarecido e imparcial está em melhores condições de fazer uma interpretação sadia do
Alcorão do que um muçulmano fanático.
Seja como for, Maomé foi profundamente perturbado em sua visão, que se apressou em contar à sua mulher. Tendo voltado ao monte Hira, presa da mais viva agitação, julgou-se possuído por Espíritos malignos e, para escapar do mal que temia, ia precipitar-se do alto de um rochedo, quando uma voz, partida do céu, se fez ouvir e lhe disse: “Ó Maomé! Tu és o enviado de Deus; eu sou o anjo Gabriel!” Então, levantando os olhos, viu o anjo sob forma humana, que desapareceu pouco a pouco no horizonte. Essa nova visão apenas aumentou a sua perturbação. Comunicou-a a Khadidja, que se esforçou por acalmá-lo; mas, pouco segura de si mesma, foi procurar seu primo Varaka, velho famoso por sua sabedoria e convertido ao Cristianismo, que lhe disse: “Se o que acabas de dizer-me é verdade, teu marido foi visitado pelo grande
Nâmous, que outrora visitou Moisés, e ele será profeta deste povo. Anuncia-lho, e que ele se tranquilize.” Algum tempo depois, Varaka, tendo encontrado Maomé, fê-lo contar suas visões e lhe repetiu as palavras que havia dito à sua mulher, acrescentando: “Tratar-te-ão como impostor e te expulsarão; combater-te-ão violentamente. Que eu possa viver até essa hora para te assistir nessa luta!”
O que resulta destes fatos e de muitos outros é que a missão de Maomé não foi um cálculo premeditado de sua parte; ela foi confirmada por outros, antes de ser confirmado por ele. Ele custou muito a persuadir-se, mas a partir de quando ficou persuadido, tomou-a muito a sério. Para convencer-se, ele desejava uma nova aparição do anjo, que, segundo uns, demorou dois anos, segundo outros, seis meses. É a esse intervalo de incerteza e de hesitação que os muçulmanos chamam de
fitreh. Durante todo esse tempo seu espírito foi presa de perplexidade e dos mais vivos temores. Parecia-lhe que ia perder a razão e esta era também a opinião de alguns daqueles que o rodeavam. Ele era sujeito a desfalecimentos e síncopes que os escritores modernos atribuíram, sem outras provas além de sua opinião pessoal, a ataques de epilepsia, que poderiam antes ser o efeito de um estado extático, cataléptico ou sonambúlico espontâneo. Nesses momentos de lucidez extracorpórea, muitas vezes se produziam, como se sabe, fenômenos estranhos, dos quais o Espiritismo se dá conta perfeitamente. Aos olhos de certas pessoas, ele deveria passar por louco; outros viam nesses fenômenos, para si singulares, algo de sobrenatural que colocava o homem acima da Humanidade. Diz o Sr. Barthélemy Sainte-Hilaire que “Quando se admite a ação da Providência nos negócios humanos, não se pode deixar de vê-la também nessas inteligências dominadoras que surgem de tempos em tempos para esclarecer e conduzir o resto dos homens
O
Alcorão não é uma obra escrita por Maomé com a cabeça fria e de maneira continuada, mas o registro feito por seus amigos das palavras que ele pronunciava quando estava inspirado. Nesses momentos, dos quais não era senhor, ele caía num estado extraordinário e muito apavorante; o suor corria-lhe da fronte; os olhos tornavam-se vermelhos de sangue; ele soltava gemidos e a crise terminava, o mais das vezes, por uma síncope que durava mais ou menos tempo, o que por vezes lhe acontecia em meio à multidão, e mesmo quando montado em seu camelo, tanto quanto em casa. A inspiração era irregular e instantânea, e ele não podia prever o momento em que seria tomado.
Segundo o que hoje conhecemos desse estado, por uma porção de exemplos análogos, é provável que, sobretudo no princípio, ele não tivesse consciência do que dizia, e que se suas palavras não tivessem sido recolhidas, teriam ficado perdidas. Mais tarde, porém, quando ele tomou a sério o seu papel de reformador, é evidente que ele tenha falado com mais conhecimento de causa e tenha mesclado às inspirações o produto de seus próprios pensamentos, conforme os lugares e as circunstâncias, as paixões ou os sentimentos que o agitavam, em vista do objetivo que queria atingir, acreditando, talvez de boa-fé, falar em nome de Deus.
Esses fragmentos avulsos, recolhidos em diversas épocas, em número de 114, formam no
Alcorão os capítulos chamados
suratas. Eles
ficaram esparsos durante sua vida, e só após a sua morte foram reunidos num corpo oficial de doutrina, pelos cuidados de Abu-Becr e de Omar. Dessas inspirações súbitas, recolhidas à medida que ocorriam, resultou uma falta absoluta de ordem e de método. Os assuntos mais díspares são aí tratados sem nenhuma ordem, por vezes na mesma surata, e apresentam tamanha confusão e tão numerosas repetições que uma leitura sequencial é penosa e fastidiosa para quem quer que não seja um fiel.
Segundo a crença vulgar, tornada artigo de fé, as páginas do
Alcorão foram escritas no Céu e trazidas prontas e acabadas a Maomé pelo anjo Gabriel, porque numa passagem está escrito que: “Teu Senhor é misericordioso e poderoso, e o
Alcorão é uma revelação do senhor do Universo. O Espírito fiel (o anjo Gabriel) o trouxe do alto e depositou-o em teu coração, ó Maomé, para que fosses apóstolo.” Maomé se exprime da mesma maneira a respeito do livro de Moisés e do Evangelho. Ele diz, na surata III, versículo 2: “Ele fez descer do alto o Pentateuco e o Evangelho, para servir de direção aos homens”, querendo dizer com isto que esses dois livros tinham sido inspirados por Deus a Moisés e a Jesus, como lhe havia sido inspirado o
Alcorão. Suas primeiras prédicas foram secretas durante dois anos, e nesse intervalo ele se ligou a uns cinquenta adeptos, entre os membros de sua família e seus amigos. Os primeiros convertidos à nova fé foram Khadidja, sua mulher; Ali, seu filho adotivo, de dez anos; Zeïd, Varaka e Abu-Becr, seu mais íntimo amigo, que devia ser o seu sucessor. Ele tinha quarenta e três anos quando começou a pregar publicamente, e a partir desse momento realizou-se a predição que lhe havia feito Varaka. Sua religião, fundada na unidade de Deus e na reforma de certos abusos, sendo a ruína da idolatria e dos que dela viviam, os coraicitas, guardas da Caaba e do culto nacional, levantaram-se contra ele. A princípio o trataram de louco; depois o acusaram de sacrilégio; amotinaram o povo. Perseguiram-no, e a perseguição tornou-se tão violenta que por duas vezes seus partidários tiveram que buscar refúgio na Abissínia. Entretanto, aos ultrajes ele sempre opunha a calma, o sangue-frio e a moderação. Sua seita crescia e seus adversários, vendo que não podiam reduzi-la pela força, resolveram desacreditá-la pela calúnia. A troça e o ridículo não lhe foram poupados. Como se viu, os poetas eram numerosos entre os árabes; eles manejavam a sátira habilmente e seus versos eram lidos com avidez. Era o meio empregado pela crítica malévola, que não deixavam de empregá-la contra ele. Como ele resistisse a tudo, seus inimigos finalmente recorreram aos conluios para matá-lo, e ele só escapou pela fuga do perigo que o ameaçava. Foi então que se refugiou em
Yathrib, depois chamada
Medina (Medinet-en-Nabi, cidade do Profeta), em 622, e é dessa época que data a
Hégira, ou era dos muçulmanos. Ele tinha mandado antecipadamente a essa cidade, em pequenas tropas, para não levantar suspeitas, todos os seus partidários de Meca, e ele foi o último a se retirar, com Abu-Becr e Ali, seus discípulos mais devotados, quando soube que os outros estavam em segurança.
Nessa época inicia-se, para Maomé, uma nova fase em sua existência. De simples profeta que era, ele foi constrangido a tornar-se guerreiro.
(Continua no próximo número).
O Sr. Barthélemy Saint-Hilaire, do Instituto, resumiu esses trabalhos numa interessante obra intitulada
Mahomet et le Coran. l volume in-12. Preço 3,50 francos. Livraria Didier.
O côvado equivale a cerca de 45 centímetros. É uma medida natural das mais antigas, que tinha por base a distância entre o cotovelo e a ponta dos dedos.