O Céu e o Inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo

Allan Kardec

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CAPÍTULO VII
AS PENAS FUTURAS SEGUNDO O ESPIRITISMO

A carne é fraca: estudo fisiológico e moral. — Princípio da doutrina espírita sobre as penas futuras. — Código penal da vida futura.

A carne é fraca:
Estudo fisiológico e moral.

Há tendências viciosas que são evidentemente inerentes ao Espírito, porque se devem mais ao moral do que ao físico; outras parecem mais consequência do organismo, e, por esse motivo, acredita-se que se é menos responsável: tais são as predisposições à cólera, à moleza, à sensualidade, etc.

É perfeitamente reconhecido hoje em dia, pelos filósofos espiritualistas, que os órgãos cerebrais, correspondendo às diversas aptidões, devem seu desenvolvimento à atividade do Espírito; que esse desenvolvimento é assim um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tem a bossa da música, mas ele só tem a bossa da música porque seu Espírito é músico.

Se a atividade do Espírito reage sobre o cérebro, ela deve reagir igualmente sobre as outras partes do organismo. O Espírito é assim o artesão de seu próprio corpo, que ele modela, por assim dizer, a fim de adequá-lo a suas necessidades e à manifestação de suas tendências. Dado isso, a perfeição do corpo das raças avançadas não seria o produto de criações distintas, mas o resultado do trabalho do Espírito, que aperfeiçoa sua ferramenta à medida que suas faculdades aumentam.

Por uma consequência natural desse princípio, as disposições morais do Espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe mais ou menos atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de bile ou outros fluidos. É assim, por exemplo, que o guloso sente vir saliva à boca à vista de um prato apetitoso. Não é o prato que pode excitar o órgão do paladar, visto que não há contato; é portanto o Espírito, cuja sensualidade está desperta, que age, pelo pensamento, sobre esse órgão, ao passo que, sobre um outro, a vista desse prato não produz nenhum efeito. É ainda pela mesma razão que uma pessoa sensível derrama facilmente lágrimas; não é a abundância das lágrima que dá a sensibilidade ao Espírito, mas é a sensibilidade do Espírito que provoca a secreção abundante das lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo adequou-se a essa disposição normal do Espírito, como se adequou à do Espírito guloso.

Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se que um Espírito irascível deve impelir ao temperamento bilioso; de onde decorre que um homem não é colérico porque é bilioso, mas que é bilioso porque é colérico. O mesmo ocorre com todas as outras disposições instintivas; um Espírito mole e indolente deixará seu organismo num estado de atonia em relação com seu caráter, ao passo que, se for ativo e enérgico, dará a seu sangue, a seus nervos qualidades completamente diferentes. A ação do Espírito sobre o físico é tão evidente, que se veem com frequência graves desordens orgânicas se produzir pelo efeito de violentas comoções morais. A expressão vulgar: “A emoção modificou-lhe o sangue” não é tão desprovida de sentido quanto se poderia crer; ora, o que pôde modificar o sangue, senão as disposições morais do Espírito?

Pode-se então admitir que o temperamento é, ao menos em parte, determinado pela natureza do Espírito, que é causa e não efeito. Dizemos em parte, porque há casos em que o físico influi evidentemente sobre o moral: é quando um estado mórbido ou anormal é determinado por uma causa externa, acidental, independente do Espírito, como a temperatura, o clima, os vícios hereditários de constituição, um mal estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode então ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que sua natureza intrínseca seja modificada.

Lançar a culpa de suas más ações à fraqueza da carne não é, portanto, senão um subterfúgio para escapar da responsabilidade. A carne só é fraca porque o Espírito é fraco, o que inverte a questão, e deixa ao Espírito a responsabilidade por todos os seus atos. A carne, que não tem pensamento nem vontade, nunca prevalece sobre o Espírito, que é o ser pensante e desejante; é o Espírito que dá à carne as qualidades correspondentes a seus instintos, como um artista imprime à sua obra material o cunho de seu gênio. O Espírito, libertado dos instintos da bestialidade, modela um corpo que não é mais um tirano para suas aspirações à espiritualidade de seu ser; é então que o homem come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive mais para comer.

A responsabilidade moral pelos atos da vida é, pois, total; mas a razão diz que as consequências dessa responsabilidade devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito; quanto mais esclarecido ele for, menos é desculpável, porque com a inteligência e o senso moral nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto.

Esta lei explica o insucesso da medicina em certos casos. Uma vez que o temperamento é um efeito e não uma causa, os esforços tentados para modificá-lo são necessariamente paralisados pelas disposições morais do Espírito, que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a ação terapêutica. É, portanto, sobre a primeira causa que é preciso agir. Dai, se possível, coragem ao covarde, e vereis cessar os efeitos fisiológicos do medo.

Isto prova uma vez mais a necessidade, para a arte de curar, de levar em conta a ação do elemento espiritual sobre o organismo. ( Revista espírita, março de 1869, p. 65.)

Princípio da doutrina espírita sobre as penas futuras.

A doutrina espírita, no que toca às penas futuras, não se baseia mais sobre uma teoria preconcebida do que nas suas outras partes; não é um sistema substituindo outro sistema: em todas as coisas ela se apoia sobre observações, e é o que constitui sua autoridade. Ninguém, pois, imaginou que as almas, após a morte, deviam encontrar-se em tal ou qual situação; são os próprios seres que deixaram a terra que vêm hoje iniciar-nos nos mistérios da vida futura, descrever sua posição feliz ou desgraçada, suas impressões e sua transformação com a morte do corpo; numa palavra, completar sobre este ponto o ensinamento do Cristo.

Não se trata aqui do relato de um único Espírito, que poderia ver as coisas somente do seu ponto de vista, sob um único aspecto, ou estar ainda dominado pelos preconceitos terrestres, nem de uma revelação feita a um único indivíduo, que poderia se deixar enganar pelas aparências, nem de uma visão extática que se presta a ilusões, e é com frequência apenas o reflexo de uma imaginação exaltada;* mas trata-se de inúmeros exemplos fornecidos por todas as categorias de Espíritos, de alto a baixo da escala, com a ajuda de inúmeros intermediários disseminados em todos os pontos do globo, de tal modo que a revelação não é privilégio de ninguém, cada qual é capaz de ver e observar, e ninguém é obrigado a crer apoiando-se na fé de outrem.


* Ver acima, cap. VI, n.o 7, e Livro dos Espíritos, n.os 443, 444.


Código penal da vida futura.

O Espiritismo não vem, portanto, mediante sua autoridade privada, formular um código de fantasia; sua lei, no que toca ao futuro da alma, deduzida de observações feitas sobre o fato, pode resumir-se nos seguintes pontos:

1.º — A alma ou o Espírito sofre, na vida espiritual, as consequências de todas as imperfeições de que não se despojou durante a vida corporal. Seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao grau de sua purificação ou de suas imperfeições.

2.º — A felicidade perfeita está ligada à perfeição, ou seja, à purificação completa do Espírito. Toda imperfeição é ao mesmo tempo uma causa de sofrimento e de privação de gozo, assim como toda qualidade adquirida é uma causa de gozo e de atenuação dos sofrimentos.

3.º — Não há uma única imperfeição da alma que não traga consigo suas consequências lastimáveis, inevitáveis, e nem uma única boa qualidade que não seja a fonte de um gozo. A soma das penas é assim proporcionada à soma das imperfeições, como a dos gozos está na razão da soma das qualidades.

A alma que tem dez imperfeições, por exemplo, sofre mais do que a que tem só três ou quatro; quando dessas dez imperfeições, não lhe restar senão um quarto ou a metade, ela sofrerá menos, e quando não lhe restar nenhuma, não sofrerá mais e será perfeitamente feliz. Tal como, na terra, aquele que tem várias doenças sofre mais do que o que só tem uma, ou nenhuma. Pela mesma razão, a alma que possui dez qualidades tem mais gozos do que a que tem menos qualidades.

4.º — Em virtude da lei do progresso, toda alma tendo a possibilidade de adquirir o bem que lhe falta e se desfazer do que tem de mau, segundo seus esforços e sua vontade, resulta daí que o futuro não está fechado a nenhuma criatura. Deus não repudia nenhum de seus filhos; recebe-os no seu seio à medida que atingem a perfeição, deixando assim a cada um o mérito de suas obras.

5.º — Estando o sofrimento vinculado à imperfeição, como o gozo à perfeição, a alma carrega em si mesma seu próprio castigo em toda parte onde se encontra: não é preciso para isso de um lugar circunscrito. O inferno está portanto em todo lugar onde há almas sofredoras, como o céu está em toda parte onde há almas bem aventuradas.

6.º — O bem e o mal que se faz são o produto das boas e das más qualidades que se possui. Não fazer o bem que se é capaz de fazer é então o resultado de uma imperfeição. Se toda imperfeição é uma fonte de sofrimento, o Espírito deve sofrer não só por todo o mal que fez, mas por todo o bem que poderia ter feito e não fez durante sua vida terrestre.

7.º — O Espírito sofre pelo próprio mal que fez, de maneira que sua atenção estando incessantemente concentrada nas consequências desse mal, ele compreenda melhor seus inconvenientes e seja motivado a corrigir-se.

8.º — Sendo a justiça de Deus infinita, é mantida uma conta rigorosa do bem e do mal; se não há uma única má ação, um único mau pensamento que não tenha suas consequências fatais, não há uma única boa ação, um único bom movimento da alma, o mais leve mérito, numa palavra, que seja perdido, mesmo nos mais perversos, porque é um começo de progresso.

9.º — Toda falta cometida, todo mal realizado, é uma dívida contraída que deve ser paga; se não o for numa existência, sê-lo-á na seguinte ou nas seguintes, porque todas as existências são solidárias umas das outras. Aquele que a quita na existência presente não terá de pagar uma segunda vez.

10.º — O Espírito sofre a pena de suas imperfeições, seja no mundo espiritual, seja no mundo corporal. Todas as misérias, todas as vicissitudes que suportamos na vida corporal são decorrentes de nossas imperfeições, expiações de faltas cometidas, seja na existência presente, seja nas precedentes.

Pela natureza dos sofrimentos e das vicissitudes suportadas na vida corpórea, pode-se julgar da natureza das faltas cometidas numa existência precedente, e das imperfeições que lhe são a causa.

11.º — A expiação varia segundo a natureza e a gravidade da falta; a mesma falta pode assim dar lugar a expiações diferentes, segundo as circunstâncias atenuantes ou agravantes nas quais ela foi cometida.

12.º — Não há, em relação à natureza e à duração do castigo, nenhuma regra absoluta e uniforme; a única lei geral é que toda falta recebe sua punição e toda boa ação sua recompensa, segundo seu valor.

13.º — A duração do castigo está subordinada ao aperfeiçoamento do Espírito culpado. Nenhuma condenação por um tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige para pôr um fim aos sofrimentos, é um aperfeiçoamento sério, efetivo, e um retorno sincero ao bem.

O Espírito é assim sempre o árbitro de seu próprio destino; pode prolongar seus sofrimentos pela persistência no mal, aliviá-los ou abreviá-los por seus esforços para fazer o bem.

Uma condenação por um tempo determinado qualquer teria o duplo inconveniente: de continuar a atingir o Espírito que se tivesse melhorado, ou de cessar quando ele ainda estivesse no mal. Deus, que é justo, pune o mal enquanto ele existe; cessa de punir quando o mal não existe mais*; ou, sendo o mal moral, por si mesmo, uma causa de sofrimento, o sofrimento dura enquanto o mal subsistir; sua intensidade diminui à medida que o mal perde força.


* Ver acima, cap. VI, n.º 25, citação de Ezequiel.


14.º — Estando a duração do castigo subordinada à melhoria, daí resulta que o Espírito culpado que jamais se melhorasse sofreria sempre, e, para ele, a pena seria eterna.

15.º — Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é não ver o termo de sua situação e crer que sofrerão sempre. É para eles um castigo que lhes parece dever ser eterno.*


* Perpétuo é sinônimo de eterno. Diz-se: o limite das neves perpétuas; o gelo eterno dos polos; diz-se também o secretário perpétuo da Academia, o que não quer dizer que ele o será perpetuamente, mas somente por um tempo ilimitado. Eterno e perpétuo empregam-se portanto no sentido de indeterminado. Nesta acepção, pode-se dizer que as penas são eternas, se se compreender que não têm uma duração limitada; elas são eternas para o Espírito que não vê seu fim.


16.º — O arrependimento é o primeiro passo para o aperfeiçoamento; mas sozinho não basta; são precisas ainda a expiação e a reparação.

Arrependimento, expiação e reparação são as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências.

O arrependimento suaviza as dores da expiação, dando esperança e preparando as vias da reabilitação; mas somente a reparação pode anular o efeito, destruindo a causa; o perdão seria uma graça e não uma anulação.

17.º — O arrependimento pode ocorrer em todo lugar e a qualquer tempo; se for tardio, o culpado sofre por mais longo tempo.

A expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais que são a consequência da falta cometida, seja desde a vida presente, seja, após a morte, na vida espiritual, seja numa nova existência corpórea, até que os traços da falta sejam apagados.

A reparação consiste em fazer bem àquele a quem se fez mal. Quem não repara suas faltas nesta vida, por impotência ou má vontade, encontrar-se-á, numa existência ulterior, em contato com as mesmas pessoas que tiveram queixas dele, e em condições escolhidas por ele mesmo, de maneira a poder provar-lhes sua dedicação, e fazer-lhes tanto bem quanto lhes fez mal.

Nem todas as faltas acarretam um prejuízo direto e efetivo; neste caso, a reparação se realiza: fazendo o que se devia fazer e que não se fez, cumprindo os deveres que foram negligenciados ou ignorados, as missões nas quais se falhou; praticando o bem contrário ao que se fez de mal: isto é, sendo humilde se foi orgulhoso, terno se foi duro, caridoso se foi egoísta, benevolente se foi malevolente, laborioso se foi preguiçoso, útil se foi inútil, temperante se foi dissoluto, um bom exemplo se deu mau exemplo, etc. É assim que o Espírito progride tirando proveito de seu passado.*


* A necessidade da reparação é um princípio de rigorosa justiça que se pode considerar como a verdadeira lei de reabilitação moral dos Espíritos. É uma doutrina que nenhuma religião proclamou ainda.

Entretanto algumas pessoas a repelem, porque achariam mais cômodo poder apagar suas más ações com um simples arrependimento, que custa apenas palavras, e com a ajuda de algumas fórmulas; elas podem acreditar que estão quites: verão mais tarde se isso lhes basta. Poder-se-ia perguntar-lhes se esse princípio não é consagrado pela lei humana, e se a justiça de Deus pode ser inferior à dos homens? Se elas se achariam satisfeitas com um indivíduo que, tendo-as arruinado por abuso de confiança, se limitasse a dizer que lamenta infinitamente. Por que recuariam perante uma obrigação que todo homem de bem reconhece ser seu dever cumprir, na medida das suas forças?

Quando essa perspectiva da reparação for inculcada na crença das massas, será um freio muito mais poderoso do que a do inferno e das penas eternas, porque se refere à atualidade da vida, e o homem compreenderá a razão de ser das circunstâncias penosas em que se acha colocado.


18.º — Os Espíritos imperfeitos são excluídos dos mundos felizes, cuja harmonia perturbariam; permanecem nos mundos inferiores, onde expiam suas faltas pelas tribulações da vida, e se purificam de suas imperfeições, até que mereçam encarnar-se nos mundos mais avançados moral e fisicamente.

Se pudéssemos conceber um lugar de castigo circunscrito, é nos mundos de expiação, pois é em volta desses mundos que pululam os Espíritos imperfeitos desencarnados, esperando uma nova existência que, permitindo-lhes reparar o mal que fizeram, ajudará em seu adiantamento.

19.º — Tendo sempre o Espírito seu livre-arbítrio, seu melhoramento é por vezes lento, e sua obstinação no mal muito tenaz. Ele pode persistir anos e séculos; mas chega sempre um momento em que sua teimosia em enfrentar a justiça de Deus se dobra diante do sofrimento, e em que, apesar de sua soberba, reconhece o poder superior que o domina. Assim que se manifestam nele as primeiras luzes do arrependimento, Deus lhe faz entrever a esperança.

Nenhum Espírito está na condição de jamais aperfeiçoar-se; de outro modo, estaria destinado a uma eterna inferioridade, e escaparia à lei do progresso que rege providencialmente todas as criaturas.

20.º — Sejam quais forem a inferioridade e a perversidade dos Espíritos, Deus nunca os abandona. Todos têm seu anjo guardião que vela por eles, espia os movimentos de sua alma e esforça-se para suscitar neles bons pensamentos, o desejo de progredir e de reparar, numa nova existência, o mal que fizeram. Contudo o guia protetor age quase sempre de maneira oculta, sem exercer nenhuma pressão. O Espírito deve aperfeiçoar-se pelo fato de sua própria vontade, e não em decorrência de qualquer coerção. Ele age bem ou mal em virtude de seu livre-arbítrio, mas sem ser fatalmente impelido num sentido ou noutro. Se age mal, sofre as consequências do mal enquanto persistir no mau caminho; desde que dá um passo para o bem, sente imediatamente os efeitos.

Observação. — Seria um erro crer que em virtude da lei do progresso, a certeza de chegar cedo ou tarde à perfeição e à bem aventurança pode ser um encorajamento a perseverar no mal, sob a condição de se arrepender mais tarde: primeiro, porque o Espírito inferior não vê o termo de sua situação; em segundo lugar, porque o Espírito, sendo o artífice de sua própria desgraça, acaba por compreender que depende dele fazê-la cessar, e que quanto mais tempo persistir no mal, por mais tempo será desgraçado; que seu sofrimento durará para sempre se ele mesmo não lhe puser fim. Seria portanto de sua parte um cálculo errado, e ele seria o primeiro enganado. Se, ao contrário, segundo o dogma das penas irremissíveis, toda esperança lhe está vedada para sempre, ele não tem nenhum interesse em voltar ao bem, que não lhe traz proveito.

Diante desta lei cai igualmente a objeção tirada da presciência divina. Deus, criando uma alma, sabe efetivamente se, em virtude de seu livre-arbítrio, ela tomará o bom ou o mau caminho; sabe que ela será punida se agir mal; mas sabe também que esse castigo temporário é um meio de lhe fazer compreender seu erro e de fazê-la entrar no bom caminho, ao qual ela chegará cedo ou arde. Segundo a doutrina das penas eternas, Deus sabe que ela falhará, e que está de antemão condenada a torturas sem fim.

21.º — Cada um é responsável apenas por suas faltas pessoais; ninguém carrega a pena das faltas de outrem, a menos que tenha dado lugar a tal, seja provocando-as por seu exemplo, seja não as impedindo quando tinha esse poder. É assim, por exemplo, que o suicida é sempre punido; mas aquele que, por sua dureza, impele um indivíduo ao desespero e daí a destruir-se, sofre uma pena ainda maior.

22.º — Embora a diversidade das punições seja infinita, há aquelas que são inerentes à inferioridade dos Espíritos, e cujas consequências, exceto as nuances, são quase idênticas.

A punição mais imediata, sobretudo para os que se apegaram à vida material negligenciando o progresso espiritual, consiste na lentidão da separação da alma e do corpo, nas angústias que acompanham a morte e o despertar na outra vida, na duração da perturbação que pode durar meses e anos. Para aqueles, ao contrário, cuja consciência é pura, que, durante a vida se identificaram com a vida espiritual e se desprenderam das coisas materiais, a separação é rápida, sem abalos, o despertar pacífico e a perturbação quase inexistente.

23.º — Um fenômeno, muito frequente nos Espíritos de alguma inferioridade moral, consiste em acreditar que ainda estão vivos, e essa ilusão pode prolongar-se durante anos, ao longo dos quais experimentam todas as necessidades, todos os tormentos e todas as perplexidades da vida.

24.º — Para o criminoso, a visão incessante de suas vítimas e das circunstâncias do crime é um cruel suplício.

25.º — Certos Espíritos estão mergulhados em espessas trevas; outros estão num isolamento absoluto no meio do espaço, atormentados pela ignorância de sua posição e de seu destino. Os mais culpados sofrem torturas tanto mais pungentes quanto não lhes veem o fim. Muitos são privados da visão dos seres que lhes são caros. Todos, geralmente, suportam com intensidade relativa os males, as dores e as necessidades que fizeram suportar aos outros, até que o arrependimento e o desejo de reparação venham trazer um alívio, fazendo entrever a possibilidade de pôr, por si mesmo, um fim a essa situação.

26.º — É um suplício para o orgulhoso ver acima de si, na glória, rodeados e festejados, aqueles que ele desprezara na terra, ao passo que ele é relegado às últimas fileiras; para o hipócrita, ver-se penetrado pela luz que põe a nu seus mais secretos pensamentos, que todos podem ler: nenhum meio têm de se esconder e dissimular-se; para o sensual, ter todas as tentações, todos os desejos, sem poder satisfazê-los; para o avaro, ver seu ouro dilapidado e não poder retê-lo; para o egoísta, ser abandonado por todos e sofrer tudo o que outros sofreram por sua causa: terá sede, e ninguém lhe dará de beber; terá fome, e ninguém lhe dará de comer; nenhuma mão amiga vem apertar a sua, nenhuma voz compassiva o vem consolar; não pensou senão em si próprio durante a vida, ninguém pensa nele nem o lastima depois da morte.

27.º — O meio de evitar ou atenuar as consequências de seus defeitos na vida futura é desfazer-se deles o máximo possível na vida presente; é reparar o mal, para não ter de repará-lo mais tarde de maneira horrível. Quanto mais se demora a se desfazer dos defeitos, mais as consequências são penosas e mais a reparação que se deve realizar é rigorosa.

28.º — A situação do Espírito, desde sua entrada na vida espiritual, é a que ele preparou pela vida corporal. Mais tarde, outra encarnação lhe é dada para a expiação e a reparação por novas provas; mas ele as aproveita mais ou menos em virtude de seu livre-arbítrio; se não aproveita, é uma tarefa a recomeçar cada vez em condições mais penosas: de modo que aquele que sofre muito na terra pode dizer que tinha muito que expiar; aqueles que gozam de uma felicidade aparente, apesar de seus vícios e sua inutilidade, estejam certos de pagá-lo muito caro numa existência ulterior. É neste sentido que Jesus disse: “Bem aventurados os aflitos, pois eles serão consolados.” ( Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V.)

29.º — A misericórdia de Deus é infinita, sem dúvida, mas não é cega. O culpado que ele perdoa não é exonerado, e enquanto não satisfez a justiça sofre as consequências de suas faltas. Por misericórdia infinita, é preciso entender que Deus não é inexorável, e que deixa sempre aberta a porta do retorno ao bem.

30.º — Sendo as penas temporárias e subordinadas ao arrependimento e à reparação, que dependem da livre vontade do homem, são ao mesmo tempo castigos e remédios que devem ajudar a curar as feridas do mal. Os Espíritos em punição são, portanto, não como condenados às galés por tempo, mas como doentes no hospital, que sofrem da doença que quase sempre é culpa deles, e dos meios curativos dolorosos de que ela necessita, mas que têm esperança de sarar, e que saram tanto mais depressa se seguirem mais exatamente as prescrições do médico que vela por eles com solicitude. Se prolongam seus sofrimentos por falta sua, o médico nada tem com isso.

31.º — Às penas que o Espírito suporta na vida espiritual vêm juntar-se as da vida corporal, que são a consequência das imperfeições do homem, de suas paixões, do mau emprego de suas faculdades, e a expiação de suas faltas presentes e passadas. É na vida corporal que o Espírito repara o mal das existências anteriores, que põe em prática as resoluções tomadas na vida espiritual. Assim se explicam essas misérias e essas vicissitudes que, ao primeiro olhar, parecem não ter razão de ser, e são absolutamente justas pois são a quitação do passado e servem ao nosso adiantamento.*


* Ver acima, cap. VI, “O Purgatório”, nos 3 e seguintes; e a seguir, cap. XX, “Exemplos de expiações terrestres”. — Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V: “Bem aventurados os aflitos”.


32.º — Deus, diz-se, não provaria um amor maior por suas criaturas se as tivesse criado infalíveis e, por conseguinte, isentas das vicissitudes vinculadas à imperfeição?

Teria sido preciso, para isso, que criasse seres perfeitos, nada tendo de adquirir, nem em conhecimento, nem em moralidade. Sem dúvida nenhuma, ele podia; se não o fez, é que, na sua sabedoria, quis que o progresso fosse a lei geral.

Os homens são imperfeitos, e, como tais, sujeitos a vicissitudes mais ou menos penosas; é um fato que é preciso aceitar, visto que existe. Inferir daí que Deus não é bom nem justo seria uma revolta contra ele.

Haveria injustiça se ele tivesse criado seres privilegiados, uns mais favorecidos que outros, gozando sem trabalho da felicidade que outros só atingem com dificuldade, ou nunca podem atingir. Mas onde sua justiça brilha é na igualdade absoluta que preside à criação de todos os Espíritos; todos têm um mesmo ponto de partida; nenhum que seja, na formação, mais bem dotado que os outros; nenhum cuja marcha ascensional seja facilitada por exceção: os que chegaram ao objetivo passaram, como os outros, pela sucessão das provas e da inferioridade.

Admitido isto, o que há de mais justo do que a liberdade de ação deixada a cada um? A estrada da felicidade está aberta a todos; o objetivo é o mesmo para todos; as condições para atingi-lo são as mesmas para todos; a lei gravada em todas as consciências é ensinada a todos. Deus fez da felicidade o prêmio do trabalho, e não do favor, a fim de que cada um tivesse seu mérito; cada um é livre de trabalhar ou de não fazer nada para seu adiantamento; aquele que trabalha muito e depressa é recompensado por isso mais cedo; aquele que se desvia do caminho ou perde tempo retarda a chegada, e só pode acusar a si mesmo. O bem e o mal são voluntários e facultativos; o homem, sendo livre, não é fatalmente impelido nem para um, nem para outro.

33.º — Apesar da diversidade dos gêneros e dos graus de sofrimento dos Espíritos imperfeitos, o código penal da vida futura pode resumir-se nestes três princípios:

O sofrimento está vinculado à imperfeição.

Toda imperfeição, e toda falta que dela decorre, traz consigo seu próprio castigo, por suas consequências naturais e inevitáveis, como a doença é decorrente dos excessos, o tédio da ociosidade, sem que haja necessidade de uma condenação especial para cada falta e cada indivíduo.

Todo homem, podendo desfazer-se das imperfeições pelo efeito de sua vontade, pode poupar a si mesmo os males que delas decorrem, e assegurar sua felicidade futura.

Tal é a lei da justiça divina: a cada um segundo suas obras, no céu como na terra.

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