Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Médicos - médiuns

A Sra. Condessa de Clérambert, da qual falamos no artigo anterior, oferecia uma das variedades da faculdade de curar, que se apresenta sob uma infinidade de aspectos e nuanças apropriadas às aptidões especiais de cada indivíduo. Em nossa opinião, ela era o modelo do que poderiam ser muitos médicos; do que muitos poderão ser, sem dúvida, quando entrarem na via da espiritualidade que o Espiritismo que lhes abre, porque muitos verão desenvolver-se em si faculdades intuitivas que lhes serão um precioso auxílio na prática.

Dissemos e repetimos que seria um erro crer que a mediunidade curadora venha destronar a Medicina e os médicos. Ela vem lhes abrir um novo caminho, mostrarlhes, na Natureza, recursos e forças que eles ignoravam e com as quais podem beneficiar a ciência e seus doentes; numa palavra, provar-lhes que eles não sabem tudo, pois há pessoas que, fora da ciência oficial, conseguem o que eles mesmos não conseguem. Assim, não temos a menor dúvida de que um dia haja médicos-médiuns, como há médiuns-médicos que, à ciência adquirida, juntarão o dom de faculdades mediúnicas especiais.

Apenas, como essas faculdades só têm valor efetivo pela assistência dos Espíritos, que podem paralisar os seus efeitos pela retirada de seu concurso; que frustram à sua vontade os cálculos do orgulho e da cupidez, é evidente que não prestarão sua assistência aos que os renegarem e pretenderem servir-se deles secretamente, em proveito de sua própria reputação e de sua fortuna. Como os Espíritos trabalham para a Humanidade e não vêm para servir a interesses egoísticos individuais; como, em tudo o que fazem, agem com vistas à propagação das doutrinas novas, são-lhes necessários soldados corajosos e devotados, e eles nada têm a fazer com os poltrões que têm medo da sombra da verdade. Assim, eles secundarão aqueles que sem resistência e sem premeditação colocarem suas aptidões a serviço da causa que se esforçam por fazer prevalecer.

O desinteresse material, que é um dos atributos essenciais da mediunidade curadora, será, também ele, uma das condições da medicina mediúnica? Como, então, conciliar as exigências da profissão com uma abnegação absoluta?

Isto requer algumas explicações, porque a situação não é mais a mesma.

A faculdade do médium curador nada lhe custou; não lhe exigiu estudo, nem trabalho, nem despesas; ele recebeu-a gratuitamente, para o bem dos outros, e deve usá-la gratuitamente. Como antes de tudo é preciso viver, se ele não tem, por si mesmo, recursos que o tornem independente, deve buscar os seus meios no seu trabalho ordinário, como teria feito antes de conhecer a mediunidade; ele não dá ao exercício de sua faculdade senão o tempo que lhe pode consagrar materialmente. Se ele tira esse tempo de seu repouso e se emprega em trabalho útil aos seus semelhantes o tempo que teria consagrado a distrações mundanas, é um verdadeiro devotamento, e nisto só tem mais mérito. Os Espíritos não pedem mais e não exigem nenhum sacrifício desarrazoado. Não se poderia considerar devotamento e abnegação o abandono de sua condição para entregar-se a um trabalho menos penoso e mais lucrativo. Na proteção que eles concedem, os Espíritos, aos quais a gente não se pode impor, sabem perfeitamente distinguir os devotamentos reais dos devotamentos fictícios.

Muito diferente seria a posição dos médicos-médiuns. A Medicina é uma das carreiras sociais que se abraça para dela fazer uma profissão, e a ciência médica só se adquire a título oneroso, por um trabalho assíduo, por vezes penoso; o saber do médico é, pois, uma conquista pessoal, o que não é o caso da mediunidade. Se, ao saber humano, os Espíritos juntam seu concurso pelo dom de uma aptidão mediúnica, é para o médico um meio a mais para se esclarecer, para agir mais segura e eficazmente, pelo que ele deve ser reconhecido, mas ele não deixa de ser médico; é a sua profissão, que não deixa para fazer-se médium. Nada há, pois, de repreensível em que continue a dela viver, e isto com tanto mais razão quanto a assistência dos Espíritos por vezes é inconsciente, intuitiva, e sua intervenção se confunde, às vezes, com o emprego dos meios ordinários de cura.

Porque um médico tornou-se médium e é assistido por Espíritos no tratamento de seus doentes, não se segue que deva renunciar a toda remuneração, o que o obrigaria a procurar meios de subsistência fora da Medicina, e assim renunciar à sua profissão. Mas se for animado do sentimento das obrigações que lhe impõe o favor que lhe é concedido, ele saberá conciliar seus interesses com os deveres de humanidade.

Não se dá o mesmo com o desinteresse moral, que em todos os casos pode e deve ser absoluto. Aquele que em vez de ver na faculdade mediúnica um meio a mais de tornar-se útil aos seus semelhantes, nela só procurasse uma satisfação ao amor-próprio; que considerasse um mérito pessoal os sucessos obtidos por esse meio, dissimulando a causa verdadeira, faltaria ao seu primeiro dever. Aquele que, sem renegar os Espíritos, não visse em seu concurso direto ou indireto senão um meio de suplementar a deficiência de sua clientela produtiva, com qualquer aparência filantrópica que se cobrisse aos olhos dos homens, faria, por isso mesmo, ato de exploração. Num caso como no outro, tristes decepções seriam a sua consequência inevitável, porque os simulacros e os subterfúgios não podem enganar os Espíritos, que leem no fundo do pensamento.

Dissemos que a mediunidade curadora não matará nem a medicina nem os médicos, mas ela não pode deixar de modificar profundamente a ciência médica. Sem dúvida haverá sempre médiuns curadores, porque sempre os houve, e esta faculdade está na Natureza; mas eles serão menos numerosos e menos procurados, à medida que aumentar o número de médicos-médiuns, e quando a ciência e a mediunidade se prestarem mútuo apoio. Ter-se-á mais confiança nos médicos quando forem médiuns, e mais confiança nos médiuns quando forem médicos.

Não podem ser contestadas as virtudes curativas de certas plantas e de outras substâncias que a Providência pôs ao alcance do homem, colocando o remédio ao lado do mal. O estudo dessas propriedades é da alçada da medicina. Ora, como os médiuns curadores só agem por influência fluídica, sem o emprego de medicamentos, se um dia eles devessem suplantar a medicina, resultaria que, dotando as plantas de propriedades curativas, Deus teria feito uma coisa inútil, o que é inadmissível. É preciso, portanto, considerar a mediunidade curadora como um modo especial e não como meio absoluto de cura; o fluido, como um novo agente terapêutico aplicável em certos casos, e vindo somar um novo recurso à Medicina; em consequência, a mediunidade curadora e a Medicina como devendo de agora em diante caminhar lado a lado, destinadas a se auxiliarem mutuamente, a se suplementarem e a se completarem uma pela outra. Eis por que se pode ser médico sem ser médium curador, e médium curador sem ser médico.

Então, por que esta faculdade hoje se desenvolve quase que exclusivamente nos ignorantes, em vez de desenvolver-se nos homens de ciência? Pela razão muito simples que, até agora, os homens de ciência a repelem. Quando a aceitarem, vê-laão desenvolver-se entre eles, como entre os outros. Aquele que hoje a possuísse iria proclamá-la? Não. Ele a ocultaria com o maior cuidado. Considerando-se que ela seria inútil em suas mãos, por que dar-lha? Seria o mesmo que dar um violino a um homem que não sabe e não quer tocar.

A este estado de coisas junta-se outro motivo capital. Dando aos ignorantes o dom de curar males que os sábios não podem curar, é para provar a estes que eles não sabem tudo, e que há leis naturais além das que a Ciência reconhece. Quanto maior for a distância entre a ignorância e o saber, mais evidente será o fato. Quando ela se produz naquele que nada sabe, é uma prova certa de que ali em nada participou o saber humano.

Mas como a Ciência não pode ser um atributo da matéria, o conhecimento do mal e dos remédios por intuição, assim como a faculdade de vidência, só podem ser atributos do Espírito. Elas provam no homem a existência do ser espiritual, dotado de percepções independentes dos órgãos corporais e muitas vezes de conhecimentos adquiridos anteriormente, numa precedente existência. Esses fenômenos, consequentemente, têm o propósito de ser úteis à Humanidade e ao mesmo tempo de provar a existência do princípio espiritual.

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