Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Julho

Curta excursão espírita

A Sociedade de Bordéus, reconstituída, como dissemos no último número, reuniu-se este ano, como no ano passado, num banquete no dia de Pentecostes. Banquete simples, digamo-lo logo, como convém em semelhante circunstância, e para pessoas cujo objetivo principal é encontrar uma ocasião para se reunir e estreitar os laços de confraternidade, porquanto a pesquisa e o luxo aí seriam uma insensatez. Malgrado as ocupações que nos retinham em Paris, foi-nos possível atender ao gentil e instante convite que nos foi feito para nele tomar parte. O do ano passado, que era o primeiro, só havia reunido uns trinta convivas; no deste ano havia quatro vezes mais, dos quais alguns vindos de grande distância. Toulouse, Marmande, Villeneuve, Libourne, Niort, Blaye e até Carcassonne, que fica a 80 léguas, aí tinham seus representantes. Todas as classes da Sociedade aí estavam confundidas numa comunidade de sentimentos; aí se encontravam o artífice, o agricultor ao lado do burguês, do negociante, do médico, dos funcionários, dos advogados, dos homens de ciência, etc.

Seria supérfluo acrescentar que tudo se passou como devia ter se passado entre gente que tem por divisa: “Fora da caridade não há salvação,” e que professa a tolerância por todas as opiniões e todas as convicções. Assim, nas oportunas alocuções que foram pronunciadas, nem uma palavra foi dita que pudesse ferir a mais sombria suscetibilidade. Se os nossos maiores adversários estivessem presentes, não teriam uma palavra ou uma alusão à sua atitude.

A autoridade se havia mostrado plena de benevolência e de cortesia em relação a essa reunião, pelo que lhe devemos agradecer. Ignoramos se ela aí estava representada de maneira oculta, mas certamente pôde convencer-se, como sempre, que as doutrinas professadas pelos espíritas, longe de ser subversivas, são uma garantia de paz e de tranquilidade; que a ordem pública nada tem a temer de gente cujos princípios são os do respeito às leis, e que em nenhuma circunstância cedeu às sugestões dos agentes provocadores que procuravam comprometê-la. Eles sempre foram vistos retirando-se e abstendo-se de toda manifestação ostensiva, todas as vezes que temeram ser tomados como um motivo de escândalo.

É fraqueza de sua parte? Certamente não; ao contrário, é a consciência da força de seus princípios que os torna calmos, e a certeza que eles têm da inutilidade dos esforços empreendidos para abafá-los; quando se abstêm não é para pôr-se em segurança, mas para evitar o que poderia refletir sobre a sua doutrina. Eles sabem que ela não necessita de demonstrações exteriores para triunfar. Eles veem suas ideias germinarem por toda parte e propagar-se com uma força irresistível. Por que precisariam fazer barulho? Deixam essa necessidade aos seus antagonistas que, por seus clamores, ajudam na propagação. As próprias perseguições são o batismo necessário de todas as ideias novas um pouco grandes. Em vez de prejudicá-las, dãolhes brilho. Mede-se a sua importância pelo encarniçamento com que a combatem. As ideias que não se aclimatam senão à força de reclames e de exibições têm apenas uma vitalidade factícia e de curta duração; as que se propagam por si mesmas e pela força das coisas têm vida em si, e são as únicas duráveis. É o caso em que se encontra o Espiritismo.

A festa terminou por uma coleta em benefício dos infelizes, sem distinção de crenças, e com uma precaução cuja sabedoria só merece elogios. Para deixar toda liberdade, não humilhar ninguém e não estimular a vaidade daqueles que dariam mais que os outros, as coisas foram dispostas de maneira a que ninguém, nem mesmo os coletores, soubessem quanto cada um havia dado. A receita foi de 85 francos, e encarregados foram designados imediatamente para fazer a sua aplicação.

Malgrado nossa curta demora em Bordéus, pudemos assistir a duas sessões na Sociedade: uma consagrada ao tratamento de doentes e outra a estudos filosóficos. Assim pudemos constatar por nós mesmo os bons resultados que sempre são o fruto da perseverança e da boa vontade. Pelo relato que publicamos em nosso número precedente sobre a Sociedade Bordelesa, podemos, com conhecimento de causa, acrescentar nossas felicitações pessoais. Mas ela não deve dissimular que quanto mais prosperar, mais estará exposta aos ataques de nossos adversários. Que ela desconfie sempre das manobras surdas que contra ela poderiam ser urdidas e dos pomos de discórdia que, sob a aparência de um zelo exagerado, poderiam lançar em seu seio.

Sendo limitado o tempo de nossa ausência de Paris, pela obrigação de aí estar de volta em dia fixo, não pudemos, para nosso grande pesar, ir aos diversos centros que nos convidaram. Não pudemos parar senão alguns instantes em Tours e Orléans, que estavam em nosso caminho. Também aí pudemos constatar o ascendente que adquire a doutrina dia a dia na opinião pública, e seus felizes resultados que, a despeito de serem ainda individuais, não são menos satisfatórios.

Em Tours, a reunião devia ter cerca de cento e cinquenta pessoas, tanto da cidade quanto das cercanias, mas em consequência da precipitação com que foi organizada a convocação, só dois terços puderam comparecer. Uma circunstância imprevista não tendo permitido aproveitar a sala que fora escolhida, reunimo-nos, em noite magnífica, no jardim de um dos membros da Sociedade. Em Orléans, os espíritas são menos numerosos, mas nem por isso esse centro deixa de ter bom número de adeptos sinceros e devotados, cujas mãos tivemos o prazer de apertar.

Um fato constante e característico, e que devemos considerar como um grande progresso, é a diminuição gradativa e mais ou menos geral das prevenções contra as ideias espíritas, mesmo entre os que delas não compartilham. Agora se reconhece a cada um o direito de ser espírita, como o de ser judeu ou protestante. Já é alguma coisa. As localidades onde, como em Illiers, no departamento de Eure-et-Loir, estimulam os garotos a corrê-los a pedradas, são exceções cada vez mais raras.

Um outro sinal de progresso não menos característico é a pouca importância que, por toda parte, os adeptos, mesmo nas classes menos esclarecidas, ligam aos fatos de manifestações extraordinárias. Se efeitos desse gênero se produzem espontaneamente, constatam-nos, mas não se comovem, não os procuram e, ainda menos, tratam de provocá-los. Apegam-se pouco àquilo que apenas satisfaz aos olhos e à curiosidade; o objetivo sério da doutrina; suas consequências morais; os recursos que ela pode oferecer para alívio do sofrimento; a felicidade de reencontrar parentes ou amigos que se perdeu, conversar com eles, escutar conselhos que vêm dar, constituem o objetivo exclusivo e preferido das reuniões espíritas. Mesmo no campo e entre os artífices, um poderoso médium de efeitos físicos seria menos apreciado que um bom médium escrevente que desse, por comunicações raciocinadas, o consolo e a esperança. O que se busca na doutrina é, antes de tudo, o que toca o coração. É uma coisa notável a faculdade com que mesmo as pessoas mais iletradas[1] compreendem e assimilam os princípios desta filosofia. É porque não é necessário ser sábio para ter sentimento e raciocínio. Ah! dizem eles, se sempre nos tivessem falado assim, jamais teríamos duvidado de Deus e de sua bondade, mesmo nas maiores misérias.

Sem dúvida, crer é alguma coisa, porque já é um pé no bom caminho, mas a crença sem a prática é letra morta; ora, sentimo-nos feliz em dizer que, em nossa curta excursão, entre numerosos exemplos de efeitos moralizadores da doutrina, encontramos bom número desses espíritas de coração que poderíamos dizer completos se fosse dado ao homem ser completo no que quer que fosse, e que podem ser olhados como os tipos da geração futura transformada; há representantes de todos os sexos, de todas as idades e condições, desde a juventude até o limite extremo da idade, que a partir desta vida compreendem as promessas que nos são feitas para o futuro. Eles são fáceis de reconhecer; há em todo o seu ser um reflexo de franqueza e de sinceridade que a confiança impõe; desde logo sente-se que não há nenhuma segunda intenção dissimulada sob palavras douradas e cumprimentos hipócritas. Em torno deles, e mesmo nas classes menos favorecidas, sabem fazer reinar a calma e o contentamento. Nessas abençoadas regiões interioranas respira-se uma atmosfera serena que nos reconcilia com a Humanidade, e compreendemos o reino de Deus sobre a Terra. Felizes os que sabem gozá-lo por antecipação! Em nossas excursões espíritas, o que mais nos satisfaz não é o número dos crentes que contamos. O que mais nos satisfaz são esses adeptos que são a honra da doutrina e que são, ao mesmo tempo, os mais firmes esteios, porque fazem-na estimada e respeitada por eles mesmos.

Vendo o número de felizes que faz o Espiritismo, esquecemos facilmente as fadigas inseparáveis de nossa tarefa. Eis uma satisfação, um resultado positivo que a malevolência mais encarniçada não nos pode roubar. Poderiam tirar-nos a vida, os bens materiais, mas jamais a felicidade de ter contribuído para reconduzir a paz a corações ulcerados. Para quem quer que sonde os motivos secretos que fazem certos homens agirem, há lama que suja as mãos dos que a atiram e não aqueles em quem é lançada.

Que todos os que nos deram, nessa última viagem, tão tocantes testemunhos de simpatia, recebam aqui nossos mui sinceros agradecimentos e estejam certos de que receberão sua retribuição na mesma moeda.



[1] No original constou ilustres, falha corrigida através de erratum inserido na última página da Revista Espírita de janeiro de 1868. Nota da equipe revisora.



A lei e os médiuns curadores

Sob o título de Um Mistério, vários jornais de maio último relataram o seguinte fato:

“Duas senhoras do bairro de Saint-Germain apresentaram-se, num destes últimos dias, ao comissário de seu quarteirão, e denunciaram um tal de P..., que segundo elas tinha abusado de sua confiança e de sua credulidade, afirmando que as curaria de moléstias contra as quais seus cuidados tinham sido impotentes.

“Tendo aberto um inquérito a respeito, o magistrado soube que P... passava por

hábil médico, cuja clientela aumentava diariamente, e que fazia curas extraordinárias.

“Conforme suas respostas às perguntas do comissário, P... parece convencido de que é dotado de uma faculdade sobrenatural, que lhe dá o poder de curar apenas pela aposição das mãos sobre os órgãos doentes.

“Durante vinte anos ele foi cozinheiro; era mesmo citado como um dos maishábeis no seu ofício, que abandonou há um ano para consagrar-se à arte de curar.

“Se lhe quisermos dar crédito, ele teria tido várias visões e aparições misteriosas, nas quais um enviado de Deus lhe teria revelado que tinha que cumprir na Terra uma missão de humanidade à qual não devia faltar, sob pena de ser danado. Obedecendo, disse ele, a essa ordem vinda do céu, o antigo cozinheiro instalou-se num apartamento da Rua Saint-Placide, e os doentes não tardaram em sobejar em suas consultas.

“Ele não receita medicamentos; examina o paciente que deve tratar quando está em jejum, apalpa-o, procura e descobre a sede do mal, sobre a qual aplica as mãos dispostas em cruz, pronuncia algumas palavras que são, diz ele, o seu segredo; depois, à sua prece, vem um Espírito invisível e arranca o mal.

“Certamente P... é um louco, mas o que há de extraordinário, de inexplicável, é que ele provou, conforme constata o inquérito, que, por esse processo singular, ele curou mais de quarenta pessoas afetadas de doenças graves.

“Várias lhe testemunharam o seu reconhecimento por donativos em dinheiro; uma senhora idosa, proprietária nas proximidades de Fontainebleau, por um testamento encontrado em casa dele, onde foi feita uma busca, o fez seu herdeiro de uma soma de 40.000 francos.

“P... foi mantido em detenção, e seu processo, que sem dúvida não tardará na polícia correcional, promete ser curioso.”

Não somos apologista nem detrator do Sr. P..., a quem não conhecemos. Está ele em boas ou más condições? É sincero ou charlatão? Ignoramo-lo. É o futuro que o provará; não tomamos posição nem pró nem contra ele. Mencionamos o fato tal qual é relatado, porque vem juntar-se à ideia de todos os que acreditam na existência de uma dessas faculdades estranhas que confundem a Ciência e os que nada querem admitir fora do mundo visível e tangível. De tanto ouvir falar nisto e ver os fatos se multiplicando, somos forçados a convir que há qualquer coisa, e pouco a pouco fazemos a distinção entre a verdade e a charlatanice.

No relato acima, sem dúvida notaram esta curiosa passagem, e a contradição não menos curiosa que ela encerra:

“Certamente P... é um louco, mas o que há de extraordinário, de inexplicável, é que ele provou, conforme constata o inquérito, que, por esse processo singular, ele curou mais de quarenta pessoas afetadas de doenças graves.”

Assim, o inquérito constata as curas; mas, porque o meio que ele emprega é inexplicável e não é reconhecido pela Faculdade, certamente ele é um louco. Assim sendo, o abade Príncipe de Hohenlohe, cujas curas maravilhosas descrevemos na Revista de dezembro de 1866, era um louco; o venerável cura d’Ars, que, também ele, fazia curas por singulares processos, era um louco; e tantos outros. O Cristo, que curava sem diploma e não empregava medicamentos, era louco, e teria pago muitas multas em nossos dias. Loucos ou não, quando há cura, muitas pessoas preferem ser curadas por um louco do que enterradas por um homem de bom senso.

Com um diploma, todas as excentricidades médicas são permitidas. Um médico, cujo nome esquecemos, mas que ganha muito dinheiro, emprega um processo não menos bizarro: Com um pincel, ele pinta na cara de seus doentes pequenos losangos vermelhos, verdes, amarelos, azuis em torno dos olhos, do nariz e da boca, em quantidade proporcional à natureza da doença. Sobre que dado científico é baseado esse gênero de medicação? Uma troça de mau gosto de um redator pretendeu que, para poupar enormes gastos de publicidade, esse médico fazia que os doentes a levassem de graça, no rosto. Vendo nas ruas esses rostos tatuados, naturalmente pergunta-se de que se trata. E os doentes respondem: É o processo do célebre doutor fulano. Mas ele é médico; se seu processo é bom, mau ou insignificante, não vem ao caso; tudo lhe é permitido, mesmo ser charlatão; ele está autorizado pela Faculdade. Se um indivíduo não diplomado quiser imitá-lo, será perseguido por gatunice.

Eles gritam contra a credulidade do público em relação aos charlatães; admiram-se da influência exercida pelo primeiro que surge anunciando um novo método de curar, pelos sonâmbulos, quiropráticos e outros; da predileção pelos remédios das comadres, e se prendem à inépcia da espécie humana! A verdadeira causa se deve à vontade muito natural que têm os doentes de se curar, e ao insucesso da Medicina em grandíssimo número de casos. Se os médicos curassem com mais frequência e mais segurança, não se iria alhures. Acontece mesmo quase sempre que não se recorre a meios excepcionais senão depois de haver esgotado inutilmente os recursos oficiais. Ora, o doente que quer ser curado a qualquer preço, pouco se inquieta que seja segundo a regra ou contra a regra.

Não repetiremos aqui o que hoje está claramente demonstrado quanto às causas de certas curas, inexplicáveis apenas para os que não se querem dar ao trabalho de remontar à fonte do fenômeno. Se se dá a cura, é um fato, e esse fato tem uma causa. Será mais racional negá-la do que procurá-la? ─ Dirão que é o acaso; o doente foi curado por si só. ─ Seja, mas então o médico que o declarou incurável dava prova de grande ignorância. E depois, se há vinte, quarenta, cem curas semelhantes, é sempre o acaso? Convenhamos que seria um acaso singularmente perseverante e inteligente, ao qual poderia dar-se o nome de doutor Acaso.

Examinaremos a questão de um ponto de vista mais sério.

As pessoas não diplomadas que tratam os doentes pelo magnetismo; pela água magnetizada, que não é senão uma dissolução do fluido magnético; pela imposição das mãos, que é uma magnetização instantânea e poderosa; pela prece, que é uma magnetização mental; com o concurso dos Espíritos, o que é ainda uma variedade de magnetização, são passíveis da lei contra o exercício ilegal da Medicina?

Os termos da lei certamente são muito elásticos, porque ela não especifica os meios. Rigorosamente e logicamente não podemos considerar como exercendo a arte de curar senão aqueles que dela fazem profissão, isto é, que dela tiram proveito. Entretanto vimos ser pronunciadas condenações contra indivíduos que se ocupam desses cuidados por puro devotamento, sem qualquer interesse, ostensivo ou dissimulado. O delito é, pois, a prescrição de remédios. Contudo, o desinteresse notório geralmente é tomado em consideração, como atenuante.

Até agora não se tinha pensado que se pudesse operar uma cura sem o emprego de medicamentos; então a lei não previu o caso dos tratamentos curativos sem remédios, e não seria senão por extensão que ela seria aplicada aos magnetizadores e aos médiuns curadores. Não reconhecendo a Medicina oficial nenhuma eficácia no magnetismo e seus anexos, e ainda menos na intervenção dos Espíritos, não se poderia legalmente condenar, pelo exercício ilegal da Medicina, os magnetizadores e os médiuns curadores que nada prescrevem, ou nada além de água magnetizada, porque então seria reconhecer oficialmente uma virtude no agente magnético, e colocá-lo na classe dos meios curativos; seria compreender o magnetismo e a mediunidade curadora na arte de curar, e dar um desmentido à Faculdade. O que se faz, por vezes, em semelhantes casos, é condenar por delito de gatunice e abuso de confiança, como pela venda de uma coisa sem valor, aquele que disso tira proveito direto ou indireto, ou mesmo dissimulado sob o nome de retribuição facultativa, disfarce no qual não deve sempre confiar. A apreciação do fato depende inteiramente da maneira de encarar a coisa em si mesma; é, muitas vezes, uma questão de opinião pessoal, a menos que não haja abuso presumido, caso em que a questão de boa-fé sempre entra em consideração. Então a justiça aprecia as circunstâncias agravantes ou atenuantes.

Tudo é completamente diferente para aquele cujo completo desinteresse é constatado. Considerando-se que ele nada prescreve e nada recebe, a lei não pode atingi-lo, do contrário seria preciso dar-lhe uma extensão que não comportam nem o espírito nem a letra. Onde nada há a ganhar, não pode haver charlatanismo. Não há nenhum poder no mundo que possa opor-se ao exercício da mediunidade ou magnetização curadora, na verdadeira acepção da palavra.

Entretanto, dirão, o Sr. Jacob nada cobrava e nem por isso deixou de ser interdito. É verdade, mas não foi perseguido nem condenado pelo caso de que se tratava. A interdição era uma medida de disciplina militar, por causa da perturbação que podia causar no campo a afluência de pessoas que lá iam; e se depois ele se desculpou dessa interdição, foi porque lhe convinha. Se ele não pertencesse ao exército, ninguém poderia perturbá-lo. (Vide a Revista de março de 1866: O Espiritismo e a Magistratura).


Illiers e os espíritas

Sob este título, o Journal de Chartres de 26 de maio último trazia a seguinte correspondência:

“Illiers, 20 de maio de 1867.

“Estamos em maio ou no carnaval? Domingo último julguei-me nesta última época. Quando atravessava Illiers, pelas quatro horas da tarde, encontrei-me em frente a um ajuntamento de sessenta ou oitenta garotos, talvez uns cem, seguidos de numerosa multidão, gritando a plenos pulmões, à luz de lampiões: Olha o feiticeiro! Olha o feiticeiro! Olha o cachorro louco! Olha Grezelle! Eles vaiavam um bravo e plácido camponês de olhar esgazeado e ar assustado que teve a sorte de encontrar uma mercearia para lhe servir de refúgio. É que depois dos cantos e da algazarra vinham as injúrias e as pedras voavam, e o pobre-diabo, sem esse asilo, talvez se desse mal.

“Perguntei a um grupo que lá se achava o que aquilo significava. Contaram-me que há algum tempo todas as sextas-feiras havia uma reunião de espíritas na Sorcellerie, comuna de Vieuvicq, às portas de Illiers. O grande Pontífice que presidia a essas reuniões era um pedreiro chamado Grezelle, e era esse infeliz que acabava de se ver tão maltratado. Diziam que há alguns dias aconteceram algumas coisas muito esquisitas. Ele teria visto o diabo, teria evocado almas que lhe haviam revelado coisas pouco lisonjeiras para certas famílias.

“Em breve várias senhoras ficariam loucas e certos homens seguiam nos seus rastros; parece mesmo que o Pontífice abre o caminho; devido a ele uma jovem senhora de Illiers perdeu completamente a cabeça. Ter-lhe-iam dito que, por certas faltas, ela teria que ir para o purgatório. Sexta-feira ela se despedia de todos os parentes e vizinhos, e sábado, depois de haver feito os preparativos para a partida, ia atirar-se no rio. Felizmente estava sendo vigiada e chegaram a tempo de retardar-lhe a viagem.

“Compreende-se que tal acontecimento tenha emocionado a opinião pública. A família dessa senhora tinha perdido a cabeça, e vários membros, armados de bons chicotes, deram uma surra no Pontífice, que teve a felicidade de escapar de suas mãos.

“Ele queria sair da Sorcellerie de Vieuvicq para vir montar o seu sabá em Illiers, no lugar chamado La Folie-Valleran. Diz-se que dois valentes pais de família que lhe serviam de acólitos lhe pediram que não viesse para La Folie, pois é loucura[1] ir para lá. Falavam também que a polícia iria ocupar-se do caso.

“Deixai, então, por conta dos garotos de Illiers. Eles saberão como liquidar a coisa. Há dessas coisas que morrem espancadas pelo ridículo.

“LÉON GAUBERT.”

O mesmo jornal, em seu número de 13 de junho de 1867, traz o que se segue:

Em resposta a uma carta com a assinatura do Sr. Léon Gaubert, publicada em nosso número de 26 de maio último, recebemos a comunicação seguinte, da qual conservamos escrupulosamente a originalidade:

“La Certellerie, 4 de junho de 1867.

“Senhor Redator,

“Em vosso jornal de 26 de maio, dais publicidade a uma carta, na qual o vosso corresponde me desanca, para mostrar quanto fui maltratado em Illiers. Pedreiro e pai de família, tenho direito à reparação, depois de ter sido tão violentamente atacado, e espero de vossa bondade dar a conhecer a verdade, depois de ter deixado propagar o erro.

“É bem verdade, como diz aquela carta, que os meninos da escola e muitas pessoas que eu estimava me perseguem todas as vezes que passo por Illiers. Duas vezes, sobretudo, quase morri a pedradas e cacetadas e atingido por outros objetos que me atiravam, e ainda hoje, se eu fosse a Illiers, onde sou muito conhecido, seria cercado, ameaçado, maltratado. Além dos materiais que chovem, eles enchem o ar de injúrias: louco, feiticeiro, espírita, tais são as doçuras mais ordinárias com que me regalam. Felizmente há somente isto de verdadeiro, porquanto tudo o que o vosso correspondente vos escreve (o texto diz: tudo o que o vosso correspondente acrescenta) é falso e jamais existiu senão na imaginação de pessoas que procuraram amotinar a população contra nós.

“O Sr. Léon Gaubert, que assinou vossa carta, é completamente desconhecido nesta região; dizem-me que é um anônimo, se bem me lembro da palavra. Digo que se a pessoa se oculta, é que ela sente que não se faz o bem; direi, pois, com toda a franqueza ao Sr. Léon Gaubert: Fazei como eu e usai o vosso verdadeiro nome.

“Disse o Sr. Léon Gaubert que uma senhora, por força de excitações e práticas espíritas, enlouqueceu e quis afogar-se. Não sei se realmente ela quis afogar-se; muitas pessoas me dizem que não é verdade, mas mesmo que assim fosse, eu nada tenho com isso. Essa mulher é uma biscateira. Sua reputação aqui e conhecida há muito tempo. Ainda não se falava de Espiritismo e ela já era conhecida aqui, como é agora. Suas irmãs a ajudam a me perseguir. Eu vos declaro que ela jamais se ocupou de Espiritismo, pois seus instintos a levam em direção contrária. Ela jamais assistiu às nossas reuniões e jamais pôs os pés na casa de qualquer espírita da região.

“Por que, então, perguntareis, ela vos odeia, e por que tantos vos odeiam em

Illiers? É um enigma para mim. Só me apercebi de uma coisa: é que muitas pessoas, antes que a primeira cena estourasse, pareciam previamente instruídas, e naquele dia, quando entrei nas ruas de Illiers, notei muita gente às portas e às janelas.

“Sou um operário honesto, senhor. Ganho honestamente o meu pão. O Espiritismo absolutamente não me impede de trabalhar, e se alguém tem o menor reproche sério a me dirigir, que nada tema. Nós temos leis, e, nas circunstâncias em que me encontro, sou o primeiro a pedir que as leis do país sejam bem observadas.

“Quanto a ser espírita, não o escondo: é bem verdade, sou espírita. Meus dois filhos, jovens ativos, ordeiros e prósperos, são ambos médiuns. Tanto um como outro gostam do Espiritismo e, como seu pai, creem, oram, trabalham, melhoram-se e procuram elevar-se. Mas, que mal há nisto? Quando a cólera me diz que me vingue, o Espiritismo me barra e me diz: Todos os homens são irmãos; faze o bem aos que te fazem mal, e eu me sinto mais calmo, mais forte.

O cura me repele do confessionário porque sou espírita. Se eu fosse a ele carregado de todos os crimes possíveis, ele me absolveria; mas espírita, crente em Deus e fazendo o bem segundo as minhas possibilidades, não encontro graça aos seus olhos. Muitas pessoas de Illiers não procedem de outro modo, e aquele dos nossos inimigos que a esta hora me joga pedra porque sou espírita faria mais do que absolver-me no dia em que me encontrasse numa orgia. Aplaudir-me-ia

OBSERVAÇÃO: Este último parágrafo, que estava na carta original, foi suprimido pelo jornal.

“Para agradar, eu não poderia dizer preto quando vejo branco. Eu tenho convicções, e o Espiritismo é para mim a mais bela das verdades. O que quereis? Quereis forçar-me a dizer o contrário do que penso, de tudo o que vejo, e quando se fala tanto em liberdade, há que suprimi-la na prática?

“Vosso correspondente diz que eu queria deixar a Sorcellerie para ir estabelecer meu sabá em Folie-Valleron. Ao ver o Sr. Léon Gaubert inventar tantas palavras desagradáveis, na verdade dir-se-ia que ele está possuído da raiva a ponto de dar os mais desajeitados golpes de troalha na cabeça de todo mundo. O Sr. Valleran é um dos proprietários mais respeitáveis da região. Fazendo uma construção magnífica, ele dá oportunidade para muitos operários ganharem dinheiro por um trabalho honesto e lucrativo. Tanto pior para quem ficasse vexado por isso e não o imitasse senão aos recuos.

“Tende a bondade, senhor, de levar minha carta ao conhecimento de vossos leitores, a fim de esclarecer, como é justo, as pessoas que a primeira carta por vós publicada induziu em erro.

“Aceitai, etc.

“GREZELLE.”

O redator do jornal diz que preserva escrupulosamente a originalidade da carta. Sem dúvida ele se refere à forma do estilo, que num pedreiro de aldeia não é a de um literato. É provável que se esse pedreiro tivesse escrito contra o Espiritismo num estilo ainda mais incorreto, não o teriam achado ridículo. Mas se ele queria conservar tão escrupulosamente a originalidade da carta, por que lhe suprimir um parágrafo? Em caso de inexatidão, a responsabilidade cairia sobre o seu autor. Para estar rigorosamente certo, o jornal deveria ter acrescentado que a princípio se tinha recusado a publicar essa carta e que não cedeu senão ante a iminência de perseguição judiciária, cujas consequências eram inevitáveis, levando-se em conta que se tratava de um homem estimado, atacado pelo próprio jornal em sua honra e sua consideração.

O autor da primeira carta sem dúvida pensou que a adulteração burlesca dos fatos não seria bastante para lançar o ridículo sobre os espíritas. Acrescentou uma grossa malícia, transformando o nome da localidade, que é la Certellerie, no de la Sorcellerie (feitiçaria). Talvez seja muito espirituoso para as pessoas que gostam de piadas de mau gosto, mas não é uma piada engraçada nem elegante; este gênero de ridículo jamais matou coisa alguma.

É preciso considerar esses fatos como lamentáveis? Sem dúvida o são para os que foram suas vítimas, mas não para a doutrina, à qual só podem beneficiar.

De duas uma: ou as pessoas que se reúnem nessa localidade se entregam a uma comédia indigna, ou são criaturas respeitáveis, sinceramente espíritas. No primeiro caso, é prestar um grande serviço à doutrina desmascarar os que dela abusam, ou que misturam seu nome a práticas ridículas. Os espíritas sinceros não podem senão aplaudir tudo o que tende a desembaraçar o Espiritismo dos parasitas de má-fé, seja qual for a forma pela qual se apresentem e que jamais passaram de pelotiqueiros e charlatães. No segundo caso, ele não pode senão ganhar com a repercussão que lhe dá uma perseguição apoiada em fatos controvertidos, porque ela excita as pessoas a se inquirir o que ele é. Ora, o Espiritismo só pede para ser conhecido, perfeitamente convicto que um exame sério é o melhor meio de destruir as prevenções suscitadas pela malevolência dos que não o conhecem. Assim, não ficaríamos surpresos se essa empresa temerária tiver um resultado muito diferente do que aquele que esperavam os que a provocaram e se ela não for a causa de uma recrudescência no número dos adeptos da localidade. Assim tem sido por toda parte onde uma oposição um pouco violenta se manifestou.

Que fazer então? perguntar-se-ão os adversários. Se os deixamos agir, o Espiritismo avança; se agimos contra, ele avança com mais força. ─ A resposta é muito simples: reconhecer que aquilo que não podemos impedir está na vontade de Deus, e o que há de melhor a fazer é franquear-lhe o caminho.

Dois de nossos correspondentes, estranhos um ao outro, sobre estes fatos nos transmitiram informações precisas e perfeitamente concordantes. O Sr. Quômes d’Arras, um deles, homem de ciência e distinto escritor, ao primeiro relato desses acontecimentos noticiados pelo jornal de Chartres, ignorando a causa do conflito, não quis apressar-se em tomar a defesa dos fatos nem das pessoas, que abandonava à severidade da crítica, se as merecessem; mas tomou a do Espiritismo. Numa carta cheia de moderação e de conveniência, dirigida ao jornal, tratou de demonstrar que se os fatos fossem como eram descritos pelo Sr. Léon Gaubert, o Espiritismo nada tinha a ver com nisso, mesmo que tivessem usado o seu nome. Qualquer pessoa imparcial teria olhado como um dever dar lugar a uma retificação tão legítima. Assim não aconteceu, e as reiteradas instâncias apenas conduziram a uma recusa formal. Isto se passava antes da carta de Grezelle que, como se viu, devia ter a mesma sorte. Se o jornal temia levantar em suas colunas a questão do Espiritismo, não devia ter admitido a carta do Sr. Gaubert. Reservar-se o direito de atacar e recusar o de defesa é um meio fácil, mas muito pouco lógico, de ter razão.

A fim tomar conhecimento pessoalmente do estado das coisas, o Sr. Quômes d’Arras foi àqueles lugares. Teve a bondade de nos enviar um relato minucioso de sua visita. Lamentamos que a extensão desse documento não nos permita publicá-lo neste número, onde tudo o que nele devia estar não encontrou espaço. Resumimos suas principais consequências. Eis o que ele colheu em Illiers, junto a diversas pessoas honradas, estranhas ao Espiritismo.

Grezelle é um excelente pedreiro, proprietário em La Certellerie. Longe de desarrazoar, todos os que o conhecem não podem senão fazer justiça ao seu bomsenso, a seus hábitos de ordem, de trabalho, de regularidade. É um bom pai de família; todo o seu erro é inquietar os materialistas e os indiferentes da região por suas afirmações enérgicas, multiplicadas, sobre a alma, sobre suas manifestações após a morte e sobre o nossos destinos futuros. Ele está longe de ser, na região, o único partidário do Espiritismo, que aí conta, sobretudo em Brou, com numerosos e dedicados adeptos.

Quanto às mulheres que, segundo le Journal de Chartres, o Espiritismo teria enlouquecido ou arrastado a atos culposos, é uma pura invenção. O caso a que ele faz alusão é o de uma vendedora muito conhecida em Illiers, dada à bebida, e cuja razão sempre foi fraca. Ela se refere a Grezelle e fala mal dele, não se sabe por que razão. Como as ideias espíritas circulam na região, delas deve ter ouvido falar e as mistura com suas próprias incoerências, mas dele jamais se ocupou seriamente. Quanto a ter querido afogar-se, tal pensamento nada teria de impossível, dado o seu estado habitual. Mas o fato parece invenção.

De lá o Sr. Quômes d’Arras foi a La Certellerie, cinco quilômetros além de Illiers. “Lá chegando, diz ele, procurei a casa da Sra. Jacquet, cujo nome me haviam dito em Illiers. Ela estava no jardim com seu filho, em meio às flores, fazendo tricô. Assim que soube o motivo de minha viagem, conduziu-me à sua casa, onde logo se juntaram a sua empregada, moça de vinte anos, médium falante e espírita fervorosa, Grezelle e seu filho mais velho, de vinte anos. Não foi preciso conversar muito com essas pessoas, para perceber que não se tratava de espíritos agitados, tristes, singulares, exaltados ou fanáticos, mas de pessoas sérias, razoáveis, benevolentes, de uma sociabilidade perfeita; franqueza, clareza, simplicidade, amor ao bem, tais eram os traços evidentes que se pintavam em seu exterior, em suas palavras e, confessarei para minha confusão, eu não esperava tanto.

“Grezelle tem quarenta e cinco anos, é casado e tem dois filhos; ambos são médiuns escreventes, como o pai. Ele contou-me calmamente os sofrimentos que suportava e os ardis de que era objeto. A Sra. Jacquet também me disse que na região muitas pessoas alimentavam contra eles os piores sentimentos porque eles são espíritas. Aos meus olhos pareceu muito provável, e na conversa adquiri a mais completa certeza de que essas diversas famílias são tranquilas, benevolentes para com todos, incapazes de fazer mal a alguém, sinceramente apegadas a todos os seus deveres; dando graças ao céu, admirei a firmeza, a força de caráter, a solidez das convicções, o profundo apego ao bem dessas excelentes criaturas que, no campo, sem grande instrução, sem encorajamento e sem recursos visíveis, cercadas de inimigos e de trocistas, mantêm alto, há quatro anos, os seus princípios, a sua fé, as suas esperanças; para defender sua bandeira contra os risos, têm uma coragem que infelizmente muitas vezes falta aos nossos sábios das cidades, e mesmo a muitos espíritas adiantados.

“Grezelle, o único que foi realmente maltratado, embora seja espírita há três anos, tem todo o fervor de um neófito, todo o zelo de um apóstolo e ainda toda a atividade exuberante de uma natureza ativa, enérgica e empreendedora. Devido aos seus negócios, está continuamente em contato com a gente da região e, cheio do Espiritismo, amando-o mais que a vida, não pode impedir-se de falar nele, de exaltálo, de mostrar sua beleza, sua grandeza, suas maravilhas. De uma palavra realmente convincente e forte, produz no meio dos indiferentes que o cercam o efeito de fogo na água. Como não leva em conta o tempo nem as circunstâncias contrárias, poderse-ia dizer que peca um pouco por excesso de zelo, e talvez também por falta de prudência.”

No dia seguinte, à noite, o Sr. Quômes assistiu, na casa de Grezelle, a uma sessão espírita composta de dezoito a vinte pessoas, entre as quais se achava o prefeito, notabilidades do lugar, pessoas de notória honorabilidade, que certamente não teriam ido a uma assembleia de loucos e de visionários. Tudo aí se passou na melhor ordem, com o mais perfeito recolhimento e sem o menor vestígio de práticas ridículas da magia e da feitiçaria. Começam pela prece, durante a qual todos se ajoelharam. Às preces tiradas do Evangelho segundo o Espiritismo, juntam a prece da noite e outras, tiradas do ritual ordinário da Igreja. “Nossos detratores, sobretudo os eclesiásticos, acrescenta o Sr. Quômes, talvez não tivessem notado sem embaraço e sem espanto o fervor dessas almas sinceras e sua atitude recolhida, denotando um profundo sentimento religioso. Havia seis médiuns, dos quais quatro homens e duas mulheres, entre as quais a empregada da Sra. Jacquet, médium falante e escrevente. As comunicações em geral são fracas de estilo; as ideias aí são diluídas e sem encadeamento; algumas manias, mesmo, aparecem no modo de comunicação. Mas, tudo somado, nada há de mau, de perigoso, e tudo quanto se obtém edifica, encoraja, fortalece, leva o espírito ao bem ou o eleva para Deus.”

O Sr. Quômes encontrou nos espíritas a sinceridade e um devotamento a toda prova, mas também uma falta de experiência que ele procurou suprir com seus conselhos. O fato essencial que constatou é que nada em sua maneira de agir justifica o quadro ridículo que o Journal de Chartres fez dele. Os atos selvagens que se passaram em Illiers foram evidentemente suscitados pela malevolência e parecem ter sido premeditados.

De nossa parte, sentimo-nos feliz que assim seja, e felicitamos os nossos irmãos do cantão de Illiers pelos excelentes sentimentos que os animam.

Como temos dito, as perseguições são o prêmio inevitável de todas as grandes ideias novas, e todas têm tido os seus mártires. Os que as suportam um dia serão felizes por terem sofrido pelo triunfo da verdade. Que perseverem, portanto, sem desanimar e sem enfraquecer, e serão sustentados pelos bons Espíritos que os observam. Mas, também, que jamais renunciem à prudência que as circunstâncias exigem, e evitem com cuidado tudo o que possa dar oportunidade aos nossos adversários. É no interesse da Doutrina.



[1] Aqui há um trocadilho, no original. Loucura, em francês, é folie.



Epidemia na Ilha Maurícia

Há alguns meses um dos nossos médiuns, o Sr. T..., que frequentemente cai em sonambulismo espontâneo sob a magnetização dos Espíritos, nos disse que a ilha Maurício era devastada, naquele momento, por uma epidemia terrível que dizimava a população. Essa previsão realizou-se, até com circunstâncias agravantes. Acabamos de receber de um dos nossos correspondentes da ilha Maurício uma carta, datada de 8 de maio, da qual extraímos as passagens seguintes:

“Vários Espíritos nos anunciaram, uns claramente, outros em termos proféticos, um flagelo destruidor prestes a nos ferir.

“Tomamos estas revelações do ponto de vista moral e não do ponto de vista físico. Subitamente uma moléstia estranha rompe nesta pobre ilha; uma febre sem nome, que reveste todas as formas, começa suavemente, hipocritamente, depois aumenta e derruba todos os que ela atinge. É agora uma verdadeira peste. Os médicos não a entendem. Todos os que foram atingidos não puderam ser curados até agora. São terríveis acessos que vos prostram e vos torturam durante pelo menos doze horas, atacando, cada um a seu turno, cada órgão importante. Depois o mal cessa durante um ou dois dias, deixando o doente abatido até o próximo acesso, e ele se vai assim, mais ou menos rapidamente, para o termo fatal.

“Para mim, vejo em tudo isto um desses flagelos anunciados, que devem retirar do mundo uma parte da geração presente, que tem como finalidade operar uma renovação que se tornou necessária. Vou dar-vos um exemplo das infâmias que aqui se passam:

“O quinino em dose muito forte detém os acessos apenas por alguns dias. É o único específico capaz de parar, ao menos momentaneamente, os progressos da cruel moléstia que nos dizima.

“Os negociantes e farmacêuticos tinham-no em certa quantidade, que lhes custava cerca de 7 francos a onça. Ora, como esse remédio era forçosamente comprado por todo mundo, aqueles senhores aproveitaram a ocasião para elevar o preço normal da poção de um indivíduo, de l para 15 francos. Depois o quinino veio a faltar, por isso aqueles que o tinham, ou que o recebiam pelo correio, vendiam ao preço fabuloso de 2,50 francos o grão, no varejo, e no atacado a 675 e 800 francos a onça. Numa poção entram pelo menos 30 grãos, o que eleva a poção para 75 francos. Assim, só os ricos podiam comprar, e aqueles negociantes viam com indiferença milhares de infelizes expirarem ao seu redor, por falta do dinheiro necessário para adquirir o medicamento.

“Que dizeis disto? Ah! É história! Ainda neste momento o quinino chega em quantidade. As farmácias regurgitam. Não obstante, os farmacêuticos não querem dar uma dose por menos de 12,50 francos. Assim, os pobres morrem sempre, olhando desolados esse tesouro que não podem alcançar!

“Eu mesmo fui atingido pela epidemia e estou na quarta recaída. Arruíno-me com o quinino. Isto prolonga-me a existência, mas se, como receio, as recaídas continuarem, palavra, caro senhor, é muito provável que em pouco tempo terei o prazer de assistir como Espírito às vossas sessões parisienses e nelas tomar parte, se Deus o permitir. Uma vez no mundo dos Espíritos, estarei mais perto de vós e da Sociedade do que estou na ilha Maurício. Num pensamento e sem fadiga transporto-me às vossas sessões, e sem temer o mau tempo. Aliás, não tenho o menor receio, eu vo-lo juro; sou muito sinceramente espírita para tanto. Todas as minhas precauções estão tomadas, e se vier a deixar este mundo, sereis avisado.

“Enquanto se espera, caro senhor, tende a bondade de pedir aos meus irmãos da Sociedade Espírita que unam as suas preces às nossas pelas infelizes vítimas da epidemia, pobres Espíritos muito vinculados à matéria, na maioria, e cujo desprendimento deve ser penoso e longo. Oremos também por aqueles, infelizes de outra maneira, que ao flagelo da moléstia acrescentam o da desumanidade.

“Nosso pequeno grupo está disperso há três meses; todos os membros foram mais ou menos atingidos, mas até agora nenhum morreu.

“Recebei, etc.”

É preciso ser verdadeiramente espírita para encarar a morte com esse sangue frio e essa indiferença, quando ela estende seus estragos em redor de nós e quando se sentem os seus ataques. É que, em semelhantes casos, a fé séria no futuro, tal qual só o Espiritismo pode dar, proporciona uma força moral que é, ela própria, um poderoso preservativo, assim como foi dito a propósito da cólera. (Revista de novembro de 1865). Isto não quer dizer que nas epidemias os espíritas sejam necessariamente poupados, mas não há dúvida que em tais casos, até agora eles têm sido os menos atingidos. É preciso dizer que se trata de espíritas de coração, e não dos que são espíritas apenas em aparência.

Os flagelos destruidores que devem punir a Humanidade, não sobre um ponto, mas por toda superfície do globo terrestre, são pressentidos em toda parte pelos Espíritos.

A comunicação que segue, verbal e espontânea, foi dada a esse respeito e após a leitura da carta acima.

(Sociedade de Paris, 21 de junho de 1867.) (Médium, Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo)

“Aproxima-se a hora, a hora marcada no grande e perpétuo quadrante do infinito, a hora na qual vai começar a operar-se a transformação do vosso globo, para fazê-lo gravitar para a perfeição. Muitas vezes vos foi dito que os mais terríveis flagelos dizimariam as populações. Não é preciso que tudo morra para se regenerar? Mas, o que é isto? A morte não é senão a transformação da matéria. O Espírito não morre, apenas muda de habitação. Observai, e vereis começar a realização de todas essas previsões. Oh! Como são felizes aqueles que nessas terríveis provações foram tocados pela fé espírita! Eles ficam calmos no meio da tormenta, como o marinheiro aguerrido em meio à tempestade.

“Eu, neste momento personalidade espiritual, muitas vezes fui acusado por personalidades terrestres de brutalidade, de dureza, de insensibilidade!... É verdade, contemplo com calma todos esses flagelos destruidores, todos esses terríveis sofrimentos físicos. Sim, atravesso, sem me emocionar, todas essas planícies devastadas, juncadas de restos humanos! Mas se posso fazê-lo, é que minha visão espiritual vai além desses sofrimentos; é que, antecipando-se sobre o futuro, ela se apoia no bem-estar geral, que será a consequência desses males passageiros para a geração futura, para vós mesmos que fazeis parte dessa geração, e que então recolhereis os frutos que tiverdes semeado.

“Espírito de conjunto, olhando do alto de uma esfera onde morava (muitas vezes fala de si na terceira pessoa), seu olhar fica enxuto. Contudo, sua alma palpita, seu coração sangra em face de todas as misérias que a Humanidade deve atravessar, mas a visão espiritual repousa do outro lado do horizonte, contemplando o resultado que será a sua consequência certa.

“A grande emigração é útil, e aproxima-se a hora em que se deve efetuar... ela já começa... A quem será ela fatal ou proveitosa? Olhai bem, observadores; considerai os atos desses exploradores dos flagelos humanos, e distinguireis, mesmo com os olhos do corpo, os homens predestinados à falência. Vede-os ávidos à carniça, duros no ganho, presos como à sua vida a todas as posses terrenas, e sofrendo mil mortes quando perdem uma parcela do que, entretanto, ser-lhes-á preciso deixar... Como será terrível para eles a pena de talião, porque no exílio que os aguarda, verão ser-lhes recusado um copo d’água para estancar a sede!... Olhai-os, e neles reconhecereis, sob as riquezas que acumulam à custa dos infelizes, os futuros humanos decaídos! Considerai seus trabalhos, e vossa consciência vos dirá se esses trabalhos devem ser pagos lá no alto, ou embaixo! Olhai-os bem, homens de boa vontade, e vereis que o joio começa, desde esta Terra, a ser separado do bom grão.

“Minha alma é forte, minha vontade é grande! ─ Minha alma é forte porque sua força é o resultado de um trabalho coletivo de alma a alma; minha vontade é grande porque tem como ponto de apoio a imensa coluna formada por todos os sentimentos de justiça e de bem, de amor e de caridade. Eis por que sou forte, eis por que sou calmo para olhar; eis por que seu coração, que bate como se fosse estourar dentro do peito não se comove. Se a decomposição é o instrumento necessário à transformação, assiste, ó minha alma, calma e impassível, a essa destruição!”


Variedades

Caso de identidade

Um dos nossos correspondentes de Maine-et-Loire transmite-nos o fato seguinte, que se passou aos seus olhos, como prova de identidade:

Há algum tempo o Sr. X... estava gravemente doente em C..., em Touraine, e sua morte era esperada a cada instante. A 23 de abril último, tínhamos por alguns dias em nosso grupo uma senhora médium a quem devemos comunicações muito interessantes. Veio ao pensamento de um dos assistentes, que conhecia o Sr. X..., perguntar a um Espírito familiar do nosso grupo, Espírito leviano, mas não mau, se aquele senhor tinha morrido.

─ Sim, foi a resposta.

─ Mas, é verdade mesmo? Porque às vezes falas levianamente.

O Espírito respondeu de novo afirmativamente. No dia seguinte, o Sr. A. C..., que até então tinha sido pouco crédulo, e que também conhecia particularmente o Sr. X..., quis, ele próprio, tentar evocá-lo, se com efeito estivesse morto. O Espírito veio imediatamente ao seu apelo e disse:

─ Peço-vos que não me esqueçais. Orai por mim.

─ Há quanto tempo estais morto? perguntou o Sr. A. C...

─ Um dia.

─ Quando sereis enterrado?

─ Esta tarde, às quatro horas.

─ Sofreis?

─ Tudo o que uma alma pode sofrer.

─ Conservais-me rancor?

─ Sim.

─ Por que?

─ Sempre fui muito duro convosco.

As relações desses dois senhores tinham sido sempre frias, embora perfeitamente polidas. Rogado a assinar, o Espírito deu as três iniciais de seu nome e de seu sobrenome. No mesmo dia o Sr. A. C. recebeu uma carta anunciando-lhe a morte do Sr. X... À noite, após o jantar, ouviram-se pancadas. O Sr. A. C. tomou da pena e escreveu o ditado batido pelo Espírito:

Fui ambicioso, sem dúvida todo homem é; Mas nunca rei, pontífice, chefe ou cidadão concebeu Um projeto tão grande quanto o meu.

As batidas eram fortes, acentuadas, quase imperiosas, como vindas de um Espírito iniciado há muito tempo nas relações do mundo invisível com os homens. O Sr. X... tinha desempenhado altas funções administrativas; talvez nos lazeres da aposentadoria e sob a influência da lembrança de suas antigas ocupações, seu Espírito tinha elaborado algum grande projeto. Uma carta recebida há dois dias confirma todos os detalhes acima.

OBSERVAÇÃO: Sem dúvida este fato nada tem de extraordinário que não se encontre muitas vezes, mas esses fatos íntimos nem sempre são os menos instrutivos e convincentes; fazem mais impressão nos círculos onde se passam do que o fariam fenômenos estranhos, que seriam olhados como excepcionais. O mundo invisível aí se revela em condições de simplicidade que o aproximam de nós e melhor convencem da continuidade de suas relações com o mundo visível. Numa palavra, os mortos e os vivos aí estão mais em família e se reconhecem melhor. Os fatos deste gênero, por sua multiplicidade e pela facilidade de obtê-los, contribuíram mais para a propagação do Espiritismo do que as manifestações que têm as aparências do maravilhoso. Um incrédulo ficará mais tocado por uma simples prova de identidade dada espontaneamente, na intimidade, por algum parente, amigo ou conhecido, do que por prodígios que pouco o tocam e nos quais não acredita.


Poesia Espírita

Aos Espíritos protetores


Mais alto, ainda mais alto!

Alça teu voo, alma minha,

Para esse puro ideal que Deus te revelou!

Para além dos céus e desses mundos em chama,

Para o absoluto divino eu me sinto chamado.

Adormecido subirei a escada de Jacob,

Subirei sempre e jamais descerei,

Porque benévolo e doce, com fraterna mão,

Em caminho um Espírito assegura-me os passos.

Mostra-me o fim, me ama e me consola;

Aqui está, eu o sinto e ouço a sua voz

Ressoar-me no peito, como um sopro de Éolo

Ressoa pelos montes, planícies e florestas!

Que importa seu nome! Ele não é da Terra;

Anjo misterioso dos amores celestes,

Ele tem do ignorado o encanto solitário;

Habita muito longe, inefáveis moradas!

Lá!... seu corpo, que um raio de glória transfigura

Tem sutilezas do impalpável éter;

Ignora os males da fraca natureza,

Contudo é bom, porque também sofreu.

Tu me falas no silêncio,

Vejo-te na obscuridade;

Fazes-me sentir de antemão

As glórias da Eternidade.

Se faço o mal me desculpas;

Nas vigílias e nos sonhos,

O que empreendo, completas;

Facho que luz na sombra,

Tu me susténs a coragem,

Impeles minha nave para a margem,

Na tempestade me proteges

E me aclaras dentro da noite.

Tu dizes: amor; tu dizes: prece;

Tu dizes: esperança; tu dizes: virtude,

E dás o nome de irmão

À humilde criança frágil e abatida;

Tão forte, buscas minha fraqueza,

Tão grande, vens à minha baixeza

E tão afortunado, à minha aflição.

Anjo abençoado, sagrado guardião,

Teu fluido depurado se mistura

Ao meu invólucro mortal,

E sinto o vento de tuas asas

Passar-me sobre o ébrio coração.

Quem quer que sejas, graças, alma querida.

Obrigado, irmão meu do Além;

Criança, velho ou moça,

Que importa! Não estás aqui?

Às vezes planas sobre a minha cabeça,

Tu que, na corrida inquieta

Atravessaste algum cometa,

Ou terra em formação;

Moras na atmosfera,

Marte ou Saturno, a enorme esfera;

Desces da Ursa Polar,

De Aldebaran ou de Órion?

E que me importa onde resides!

E que me importa de onde vens!

Que céus incríveis e esplêndidos

Quando te sinto, valem os meus?

Salve, pois, ó minha doce estrela;

Guia minha vela incerta

No mar que a bruma vela,

Longe dos escolhos, longe do perigo.

Sê um farol na tormenta,

Erguendo sobre a vaga espumante,

A luz amiga e tremulante,

E vem buscar-me, após o exílio.



Jules-Stany Doinel. (d’Aurillac).

Notícias bibliográficas

Le Roman de L'Avenir (Por E. Bonnemère)

No ano passado os Espíritos nos haviam dito que em pouco a literatura entraria na via do Espiritismo, e que 1867 veria aparecerem várias obras importantes. Com efeito, pouco depois apareceu o Spirite, de Théophile Gautier. Era, como dissemos, menos um romance espírita que o romance do Espiritismo, mas que teve a sua importância pelo nome do autor.

Veio a seguir, no começo deste ano, a tocante e graciosa história de Mirette. Nessa ocasião o Espírito do Dr. Morel Lavallée disse na Sociedade:

"O ano de 1866 apresenta a filosofia nova sob todas as suas formas; mas é ainda a haste verde que encerra a espiga de trigo, e para mostrá-la espera que o calor da primavera a tenha amadurecido e feito entreabrir. 1866 preparou, 1867 amadurecerá e realizará. O ano se abre sob os auspícios de Mirette e não terminará sem ver aparecerem novas publicações do mesmo gênero e mais sérias ainda, de tal forma que o romance tornar-se-á filosofia e a filosofia far-se-á história" (Revista de fevereiro de 1867).

Estas palavras proféticas se realizam. Temos como certo que uma obra importante aparecerá dentro em pouco; não será um romance, que podemos considerar como obra de imaginação e de fantasia, mas a própria filosofia do Espiritismo, altamente proclamada e desenvolvida por um nome que poderá ensejar a reflexão aos que pretendem que todos os partidários do Espiritismo são loucos.

Enquanto esperamos, eis uma obra que de romance só tem o nome, porque a intriga aí é quase nula e é apenas um quadro para desenvolver, sob a forma de palestras, os mais altos pensamentos da filosofia moral, social e religiosa. O título de Romance do Futuro não parece lhe ter sido dado senão por alusão às ideias que regerão a Sociedade no futuro, e que no momento apenas estão no estado de romance. O Espiritismo aí não é citado, mas pode tanto melhor reivindicar as suas ideias, cuja maior parte parece colhida textualmente na Doutrina, e se algumas delas se afastam um pouco, são em pequeno número e não vão ao fundo da questão. O autor admite a pluralidade das existências, não só como racional, conforme à justiça de Deus, mas como necessária, indispensável ao progresso da alma e haurida da sã filosofia. Mas o autor parece inclinado a crer, embora não o diga claramente, que a sucessão das existências se realiza de mundo a mundo, mais do que no mesmo meio, porque não fala de modo explícito das múltiplas existências num mesmo mundo, embora essa ideia possa ser subentendida. Talvez aí esteja um dos pontos mais divergentes, mas que, aliás, absolutamente não prejudica o fundo, porquanto, definitivamente, o princípio seria o mesmo.

Essa obra, por conseguinte, pode ser posta na classe dos livros mais sérios destinados a vulgarizar os princípios filosóficos da Doutrina no mundo literário em que o autor goza de uma posição de destaque. Disseram-nos que quando ele o escreveu, não conhecia o Espiritismo. Isto parece difícil, mas se assim é, seria uma das mais brilhantes provas da fermentação espontânea dessas ideias e de seu poder irresistível, porque só o acaso não reúne tantos pesquisadores no mesmo terreno.

O prefácio não é a parte menos curiosa do livro. O autor aí explica a origem de seu manuscrito. Pergunta ele:

"Qual a minha colaboração no Roman de l‘Avenir? Somos dois, ou três, ou o autor se chama legião? Deixo estas coisas à apreciação do leitor, depois que lhe tiver contado uma aventura muito verídica, embora tenha todas as aparências de uma história do outro mundo."

Tendo parado um dia em modesta aldeia da Bretanha, a dona do albergue lhe contou que havia na região um jovem que fazia coisas extraordinárias, verdadeiros milagres.

"Sem ter nada aprendido, disse ela, ele sabe mais que o reitor, o médico e o escrivão juntos e mais do que todos os feiticeiros reunidos. Ele se fecha todas as manhãs em seu quarto; vê-se sua lâmpada através das cortinas, porque ele precisa da lâmpada, mesmo de dia, e então escreve coisas que ninguém jamais viu, mas que são soberbas. Ele anuncia com seis meses de antecedência, o dia, a hora, o minuto em que cairá nos seus grandes acessos de feitiçaria. Uma vez que disse ou escreveu, nada mais sabe, mas é verdadeiro como a palavra do Evangelho e infalível como decisão do papa em Roma. Ele cura à primeira vista, sem cobrar, aqueles que lhe são simpáticos, e, às barbas do médico, os doentes que este não cura, mesmo cobrando. O senhor reitor diz que não pode ser senão o diabo que lhe dá o poder de curar aqueles a quem Deus manda doenças para o seu bem, a fim de prová-los ou castigálos."

"Fui vê-lo, acrescenta o autor, e minha boa estrela quis que lhe fosse simpático. Era um jovem de 25 anos, ao qual seu pai, rico camponês da região, tinha propiciado uma certa educação, a despeito do que disse a minha hospedeira; simples, melancólico e sonhador, levando a bondade até a excelência, e dotado de um temperamento no qual o sistema nervoso dominava sem contrapeso. Levantava-se de madrugada, tomado de uma febre de inspiração que não podia dominar, e espalhava em ondas sobre o papel as estranhas ideias que germinavam por si mesmas, malgrado seu, em seu cérebro, e às vezes contra a sua vontade."

"Vi-o à obra. No espaço de uma hora ele cobria invariavelmente o seu caderno com quinze ou dezesseis páginas de escrita, sem hesitação, sem rasuras, sem parar um segundo à busca de uma ideia, de uma frase, de uma palavra. Era uma torneira aberta, de onde a inspiração jorrava em jato sempre igual. Absolutamente mudo durante essas horas de trabalho encarniçado, dentes serrados e lábios contraídos, recuperava a palavra no momento em que o relógio batia a hora de retomada dos trabalhos campestres. Ele voltava, então, à vida normal, e tudo quanto acabava de pensar ou escrever durante essas duas ou três horas de uma outra existência, pouco a pouco se apagava de sua memória, como o sonho que se apaga e desaparece à medida que a gente desperta. No dia seguinte, expulso da cama por uma força invencível, entregava-se à obra e continuava a frase ou a palavra começada na véspera."

"Abriu-me um armário, no qual se acumulavam cadernos cheios de seus escritos. ─ Que há em tudo isto? perguntei. ─ Ignoro-o tanto quanto vós, respondeu ele sorrindo. ─ Mas como vos vem tudo isso? ─ Não posso senão repetir a mesma resposta: ignoro-o tanto quanto vós. Por vezes sinto que está em mim; outras vezes sinto que me dizem. Então, sem ter consciência e sem ouvir o som de minhas próprias palavras, eu o repito aos que me cercam, ou o escrevo."

“Aquilo constituía cerca de dezessete mil páginas, escritas em quatro anos. Aí estavam uma centena de novelas e de romances; tratados sobre diversos assuntos; receitas médicas e outras; máximas, etc. Notei sobretudo isto:"

"Estas coisas me são reveladas, a mim, simples de espírito e de instrução, porque, nada sabendo, não tendo a respeito ideias preconcebidas, estou mais apto a assimilar as ideias alheias."

"Os seres superiores, que partiram primeiro, depurados ainda pela transformação, vêm envolver-me e me dizer:"

“Dão-vos tudo o que não se aprende e que pode esclarecer o mundo onde, ao partirmos, deixamos o nosso rastro indelével. Mas é preciso reservar sua parte ao trabalho pessoal, sem usurpar a ciência adquirida, nem o trabalho que cada um pode e deve fazer.”

"Nesse enorme amontoado, escolhi um simples idílio, obra de fantasia, estranho, impossível, e no qual são lançados, sob uma forma mais ou menos leve, as bases de uma nova cosmogonia completa. Em seus cadernos esse estudo tinha como título: a Unidade, que julguei que deveria substituir pelo de Romance do Futuro." Eis o dado principal do enredo:

Paul de Villeblanche morava na Normandia, com seu pai, nos restos de um velho castelo, outrora morada senhorial de sua família, arruinada e dispersa pela Revolução. Era um jovem de uns vinte anos, de grande inteligência, com as mais amplas e avançadas ideias, e que tinha posto de lado todos os preconceitos de raça.

No mesmo cantão vivia uma velha marquesa muito devota que, para resgatar os seus pecados e salvar sua alma, tinha imaginado tirar da miséria e do pântano social uma pequena boêmia e dela fazer uma religiosa. Dessa maneira, pensava ela, estaria certa de ter alguém que, pelo reconhecimento e pelo dever, por ela oraria incessantemente, durante sua vida e após a morte. Essa jovem era, pois, educada no convento, desde cerca dos oito anos, e enquanto esperava para tomar o hábito, vinha de dois em dois anos passar seis semanas na casa de sua benfeitora. Mas essa jovem, de rara inteligência, tinha intuitivamente e sobre muitas coisas, ideias à altura das de Paul. Ela estava então com dezesseis anos. Numa de suas férias, os dois jovens se encontram, ligam-se por uma afeição fraterna e têm conversas em que Paul desvela para sua inteligente companheira princípios filosóficos novos para ela, mas que ela compreende sem esforço e por vezes ultrapassa. As duas almas de escol estão à altura uma da outra. O romance acaba em casamento, como era de se esperar, mas aí está apenas um pretexto para dar uma lição prática sobre um dos pontos mais importantes da ordem social e dos preconceitos de casta.

Inscrevemos de boa vontade este livro no número dos que devem ser propagados, e que têm seu lugar marcado na biblioteca dos espíritas.

São essas conversas que fazem o assunto principal do livro; o resto é apenas um quadro muito simples para a exposição das ideias que um dia devem prevalecer na Sociedade.

Para relatar tudo o que sob esse ponto de vista mereceria ser relatado, haveria necessidade de citar a metade da obra. Reproduzimos apenas alguns dos pensamentos que poderão permitir o julgamento do espírito no qual ela foi concebida:

"Achar é a recompensa por haver procurado; tudo quanto nós mesmos podemos fazer, não deve ser pedido aos outros."

"O mundo é um vasto canteiro, no qual Deus a cada um distribui a sua tarefa, designando-nos o nosso trabalho conforme as nossas forças. Deste imenso atrito de inteligências diversas, opostas, aparentemente hostis, jorra a luz, sem que se apague na hora do nosso último sono. Ao contrário, a marcha constante das gerações que se sucedem traz uma nova pedra ao edifício social; a luz se torna mais brilhante quando nasce uma criança trazendo, para continuar o progresso, o primeiro elemento de uma inteligência constantemente renovada."

"Mas a marquesa me repete incessantemente, diz a moça, que todos nascemos maus; que não diferimos senão pela maior ou menor propensão para o pecado; que a existência inteira é uma luta contra as nossas inclinações; que todos tenderiam para a eterna danação, se a religião que ela me ensina não nos detivesse à borda do abismo."

"─ Não creia nesses blasfemos. Deus seria o agente do mal, se não tivesse posto em cada um de nós a bússola que deve guiar nossos passos para a realização dos nossos destinos, e se os homens não tivessem podido marchar em seu caminho até o dia em que a Igreja veio corrigir a obra imperfeita e mal acabada do Eterno."

"Quem sabe se, na imensa rotação do mundo, nossos filhos, por sua vez, não se tornarão nossos pais, e se não nos restituirão, intacta, esta soma de misérias que lhes teremos deixado ao partir?"

"Nenhum mal pode vir de Deus, nem no tempo nem na eternidade. A dor é obra nossa, é o protesto da Natureza para nos indicar que não mais estamos nas vias que ela assinala para a atividade humana. Ela se torna um meio de salvação, porque é o seu próprio excesso que nos leva à frente, incita nossa imaginação preguiçosa e nos leva a fazer grandes descobertas que aumentam o bem-estar dos que devem passar por este globo depois de nós."

"Cada um de nós é um anel dessa cadeia sublime e misteriosa que liga todos os homens entre si, bem como com a criação inteira, e que jamais, em parte alguma, poderiam ser quebradas."

"Após a morte, os órgãos gastos necessitam de repouso e o corpo devolve à terra os elementos de que se constituem, até o fim dos tempos, os seres que se sucedem. Mas a vida renasce da morte."

"Nós partimos, levando conosco a lembrança dos conhecimentos aqui adquiridos; o mundo para onde iremos nos dará os seus, e nós os agruparemos todos em feixe, para deles formar o progresso."

"Entretanto, aventurou a moça, haverá um termo, um inevitável fim, tão afastado quanto o supões."

"─ Por que limitar a eternidade, depois de tê-la admitido em princípio? Aquilo que se chama o fim do mundo é apenas uma imagem. Jamais houve começo e jamais haverá fim do mundo. Tudo vive, tudo respira, tudo é povoado. Para que o juízo final possa chegar, seria preciso um cataclismo geral, que fizesse o Universo inteiro entrar no nada. Deus, que tudo criou, não pode destruir sua obra. Para que serviria o aniquilamento da vida?"

"Sem dúvida a morte é inevitável. Mas, melhor compreendida no futuro, esta morte que nos apavora não será mais que a hora prevista, talvez esperada, da partida, para fornecer uma nova etapa. Um chega, outro se põe a caminho, e a esperança enxuga as lágrimas que correm no instante dos adeuses. A imensidade, o infinito, a eternidade prolongam aos nossos olhos ávidos as suas perspectivas cujo desconhecido nos atrai. Já mais aperfeiçoados, faremos uma mais bela viagem, depois partiremos ainda outra vez, e marcharemos sempre, elevando-nos incessantemente."

"Porque de nós depende que a morte seja a recompensa do dever cumprido, ou o castigo, quando a obra encomendada não tiver sido feita."

"Em qualquer lugar em que estejamos no Universo, prendemo-nos por laços misteriosos e sagrados que nos tornam solidários uns com os outros, e recolheremos fatalmente a colheita do bem e do mal que cada um de nós semeou atrás de si, antes de partir para a grande viagem."

"A criança que nasce traz seu germe de progresso; o homem que morre deixa o seu lugar para que depois dele o progresso se realize, e ele vá continuar a nele trabalhar também, lavando alhures, e a outro ser, sua alma aperfeiçoada."

“Aqueles a quem deves a luz expiaram nesta vida as faltas de um passado misterioso. Eles sofreram, mas sofreram corajosamente. O Deus de amor e de misericórdia necessitava deles, sem dúvida, para uma missão mais importante em outro mundo. Ele os chamou para si, concedendo-lhes assim o salário merecido antes que o dia tivesse acabado.”

(A propósito de uma jovem que, ainda criança, operava curas surpreendentes, indicando os remédios por intuição).

"Isto fez ruído, e a principal autoridade, o cura, emocionou-se e interveio. Por meios naturais, uma menina fazia o que nem o médico, com sua ciência, nem ele com suas preces podia obter!... Evidentemente ela era possessa. Para os homens de pouca fé e inteligência obtusa, é Deus que, com o propósito de nos castigar, como se não tivesse a eternidade à sua frente, ou de nos provar, como se ele não soubesse o que vamos fazer, nos envia todos os males, os flagelos de todo o gênero, as ruínas, a perda dos que nos são caros. Ao contrário, é Satã que dá a prosperidade, que ajuda a encontrar tesouros, que cura os doentes e que nos prodigaliza todas as felicidades, todas as alegrias deste mundo. Deus, enfim, segundo eles, faz o mal, ao passo que o diabo é o autor de todo o bem."

"Então Maria foi exorcizada, rebatizada ao acaso, a fim de não poder mais aliviar os seus semelhantes. Mas nada funcionou, pois ela continuou a fazer o bem em seu redor."

"─ Mas tu, que sabes tudo, Paul, que dizes de tudo isto?"

"─ Se não creio nunca no que a minha razão repele, respondeu o jovem conde, não nego os fatos atestados por numerosas testemunhas, apenas porque a Ciência não sabe explicá-los. Deus deu aos animais o instinto de ir diretamente à planta que pode curar as raras doenças que os atingem. Por que nos teria recusado esse precioso privilégio? Mas o homem saiu dos caminhos que o Criador lhe havia assinalado e pôs-se em hostilidade com a Natureza, cujos avisos cessou de escutar. Esse facho extinguiu-se nele, e a Ciência veio substituir o instinto que, em sua arrogância de bem sucedida, ela negou, combateu, perseguiu, aniquilou tanto quanto estava em suas possibilidades. Mas quem pode afirmar que ele não sobrevive nalguns seres simples e primitivos, decididos a se esclarecer docilmente por todos os clarões que eles próprios entreveem, animados que estão pelo desejo de vir em auxílio aos sofrimentos alheios?"

"Quem sabe se Maria, tendo vivido outrora entre povos na infância, entre os quais ainda sobrevive o instinto e que conhecem segredos maravilhosos, ou então nalgum mundo mais adiantado, de onde suas faltas a fizeram decair, Deus não lhe permita recordar-se de coisas que os outros esqueceram?

“Para cada um de nós, não são certos conhecimentos que parecem reencontrarse em nós, tão fácil nos é o seu estudo, ao passo que outros não podem penetrar em nosso espírito, sem dúvida porque vêm feri-lo pela primeira vez, ou porque várias gerações acumularam sobre esses conhecimentos montanhas de ignorância e de esquecimento?”

(A propósito das visões nos sonhos).

"É a alma mantida no seu exílio que conversa com a alma desprendida de sua parte terrena. Assim, essas visões são iluminadas por um raio luminoso que deixa entrever aos pobres humanos quanto é resplendente o ponto onde chegaram os que souberam dirigir o seu esquife no oceano perigoso, onde flutua a existência."

"Sem dúvida, em mundos diferentes, nossos corpos se constituem de elementos diferentes, e aí revestimos outro envoltório, mais perfeito ou mais imperfeito, conforme o meio onde eles devem agir. Mas, sobretudo, é certo que esses corpos vivem, animados todos pelo mesmo sopro de Deus; que a transmissão das almas se faz, tanto nuns quanto noutros dos inumeráveis planetas que povoam o espaço infinito, e que, sendo eles a própria emanação de Deus, existem identicamente nas mesmas condições em todos os mundos. Do outro lado da vida, ele nos dá uma alma sempre purificada, que nos permite que nos aproximemos incessantemente do Céu. Só a nossa vontade por vezes a faz desviar-se do reto caminho."

"─ Entretanto, Paul, ensinam-nos que ressuscitaremos com os nossos corpos de hoje!"

"─ Tudo isto não passa de loucura e orgulho! Nossos corpos não são nossos, mas de todo mundo, dos seres que ontem devoramos e daqueles que nos devorarão amanhã. Eles são de um dia; a Terra no-los empresta e no-los retomará. Só a nossa alma nos pertence; só ela é eterna, como tudo quanto vem de Deus e a ele retorna."


Dissertações espíritas

Luta dos Espíritos pela volta ao bem

(Paris, 24 de março de 1867 - Médium: Sr. Rul)

Obrigado, caro irmão, por vossa compaixão por aquele que expia pelo sofrimento as faltas cometidas; obrigado por vossas boas preces, inspiradas por vosso amor aos irmãos. Chamai-me algumas vezes. Será um encontro a que não faltarei nunca, ficai certo. Eu disse numa comunicação dada na Sociedade que depois de ter sofrido ser-me-ia permitido vir dar minha opinião sobre algumas questões de que vos ocupais. Deus é tão bom, que depois de me haver imposto a expiação pelo sofrimento, teve piedade de meu arrependimento, porque ele sabe que se eu fali, foi por fraqueza, e que o orgulho é filho da ignorância. É-me permitido instruir-me, e se não posso, como os bons Espíritos que deixaram a Terra, penetrar os mistérios da criação, posso estudar os rudimentos da ciência universal, a fim de progredir e ajudar os meus irmãos a progredir também.

Dir-vos-ei que relação existe entre o estado da alma e a natureza dos fluidos que a envolvem em cada meio em que se encontra momentaneamente. E se, como vos foi dito, a alma pura saneia os fluidos, acreditai que o pensamento impuro as vicia. Julgai que esforços deve fazer o Espírito que se arrepende, para combater a influência desses fluidos que o envolvem, aumentada ainda pela reunião de todos os maus fluidos que os Espíritos perversos lhe trazem para sufocá-lo. ─ Não creiais que me baste querer melhorar-me, para expulsar os Espíritos de orgulho de que estava rodeado em minha estada na Terra. Eles estão sempre perto de mim, procurando reter-me em sua atmosfera malsã. Os bons Espíritos vêm esclarecer-me, trazer-me a força de que necessito para lutar contra a influência dos maus Espíritos, depois eles se afastam, deixando-me entregue às minhas próprias forças para lutar contra o mal. É então que eu sinto a influência benéfica de vossas boas preces, porque, sem o saber, continuais a obra dos bons Espíritos de além-túmulo.

Vedes, caro irmão, que tudo se encadeia na imensidade; que todos somos solidários uns com os outros, e que não há um só pensamento bom que não leve consigo frutos de amor, de melhora e de progresso moral. Sim, tendes razão de dizer aos vossos irmãos que sofrem que uma palavra basta para explicar o Criador; que esta palavra deve ser a estrela que guia cada Espírito, seja qual for o grau da escada a que pertença por todos os seus pensamentos, por todos os seus atos, tanto nos mundos inferiores quanto nos superiores; que essa palavra, o evangelho de todos os séculos, o alfa e o ômega de toda a ciência, a luz da verdade eterna, é amor! Amor a Deus, amor aos irmãos. Felizes os que oram por seus irmãos que sofrem. Suas provações na Terra tornar-se-ão leves, e a recompensa que os espera estará acima de suas esperanças!...

Vedes, caro irmão, quanto o Senhor é cheio de misericórdia, pois que, malgrado meus sofrimentos, permite-me vir falar-vos a linguagem de um bom Espírito.

A...

ALLAN KARDEC.

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