Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Do Espírito profético

(Pelo conde Joseph de Maistre)

O conde Joseph de Maistre, nascido em Chambéry em 1753, falecido em 1821, foi enviado pelo rei da Sardenha, como ministro plenipotenciário na Rússia, em 1803. Ele deixou esse país em 1817, quando da expulsão dos jesuítas, cuja causa tinha abraçado.

Entre as suas obras, uma das mais conhecidas na literatura e no mundo religioso é a que se intitula: Soirées de Saint-Pétersbourg, publicada em 1821. Embora escrita do ponto de vista exclusivamente católico, certos pensamentos parecem inspirados pela previsão dos tempos presentes, e sob essa óptica, merecem particular atenção. As passagens seguintes são tiradas da décima primeira conversa, tomo II, pág. 121, edição de 1844.

...Mais do que nunca, senhores, devemos ocupar-nos dessas altas especulações, porque devemos estar preparados para um acontecimento imenso na ordem divina, para o qual avançamos em velocidade acelerada, que deve chocar todos os observadores. Não há mais religião na Terra. O gênero humano não pode ficar neste estado. Oráculos terríveis, aliás, anunciam que os tempos são chegados.

Vários teólogos, mesmo católicos, acreditaram que fatos de primeira ordem e pouco afastadas estavam anunciados na revelação de São João, e embora os teólogos protestantes, em geral, só tenham relatado tristes sonhos sobre esse mesmo livro, onde jamais viram senão o que desejavam, contudo, depois de haver pago esse infeliz tributo ao fanatismo de seita, vejo que certos escritores desse partido já adotam o princípio que: Várias profecias contidas no Apocalipse se referiam a nossos tempos modernos. Um desses escritores até chegou a dizer que o acontecimento estava começado, e que a nação francesa deveria ser o grande instrumento da maior das revoluções.

Talvez não haja um homem verdadeiramente religioso na Europa (falo da classe instruída), que no momento não espere algo de extraordinário. Ora, dizei-me, Senhores, credes que essa concordância de todos os homens possa ser desprezada? Não há nada além desse grito geral que anuncia grandes coisas? Remontai aos séculos passados; transportai-vos ao nascimento do Salvador. Naquela época, uma voz alta e misteriosa, partida das regiões orientais, não exclamava: “O Oriente está a ponto de triunfar? O vencedor partirá da Judeia; um menino divino nos é dado; ele vai aparecer; ele desce do mais alto dos céus; ele trará a idade de ouro sobre a Terra.” Vós sabeis o resto.

Estas ideias eram espalhadas universalmente, e como se prestavam infinitamente à poesia, o maior poeta latino delas se apoderou e as revestiu das mais brilhantes cores em seu Pollion, que foi depois traduzido em versos gregos muito belos e lidos nessa língua no Concílio de Niceia, por ordem do imperador Constantino. Certamente era bem digno da Providência ordenar que esse grande grito do gênero humano repercutisse para sempre nos versos imortais de Virgílio. Mas a incurável incredulidade do nosso século, em vez de ver nessa peça o que ela realmente encerra, isto é, um monumento inefável do espírito profético que então se agitava no Universo, diverte-se em provar-nos doutamente que Virgílio não era profeta, isto é, que uma flauta não sabe música, e que nada há de extraordinário na undécima écloga desse poeta. O materialismo que perverte a filosofia do nosso século, a impede de ver que a Doutrina dos Espíritos, e, em particular, a do espírito profético, é inteiramente plausível em si mesma, e, além disto, a mais bem sustentada pela mais universal e mais imponente tradição que já existiu. Como a eterna doença do homem é penetrar no futuro, é uma prova certa de que ele tem direitos sobre esse futuro, e de que tem meios de atingi-lo, ao menos em certas circunstâncias. Os oráculos antigos se atinham a esse movimento interior do homem, que o advertia de sua natureza e de seus direitos. A enorme erudição de Van Dale e as belas frases de Fontenelle foram em vão empregadas no século passado para estabelecer a nulidade geral desses oráculos. Mas, seja como for, jamais o homem teria recorrido aos oráculos, jamais ele teria podido imaginá-los, se não tivesse partido de uma ideia primitiva, em virtude da qual os via como possíveis, e mesmo como existentes.

O homem está sujeito ao tempo e, nada obstante, por sua natureza, estranho ao tempo. O profeta gozava do privilégio de sair do tempo; não estando mais as suas ideias distribuídas na duração, tocam-se em virtude da simples analogia e se confundem, o que necessariamente derrama uma grande confusão em seus discursos. O próprio Salvador submeteu-se a esse estado quando, entregue voluntariamente ao espírito profético, as ideias análogas de grandes desastres, separadas do tempo, conduziram-no a misturar a destruição de Jerusalém à do mundo. É ainda assim que David, conduzido por seus próprios sofrimentos a meditar sobre “o justo perseguido,” sai repentinamente do tempo e exclama, diante do futuro: “Eles trespassaram meus pés e minhas mãos; eles contaram os meus ossos; eles dividiram as minhas vestes; eles lançaram os dados sobre as minhas roupas.” (Salmos XXI, v. 18 e 19)[1].

Poderíamos acrescentar outras reflexões tiradas da astrologia judiciária, dos oráculos, das adivinhações de todo gênero, cujo abuso sem dúvida desonrou o espírito humano, mas que, entretanto, tinham uma raiz verdadeira, como todas as crenças em geral. O espírito profético é natural no homem e não cessará de se agitar no mundo. O homem, em todas as épocas e em todos os lugares, tentando penetrar no futuro, declara não ser feito para o tempo, porque o tempo é algo forçado, que só pede para acabar. Daí vem que, nos nossos sonhos, jamais temos ideia do tempo, e que o estado de sono sempre foi considerado favorável às comunicações divinas.

Se me perguntardes a seguir o que é o espírito profético, ao qual há pouco me referia, responder-vos-ei que “jamais houve no mundo grandes acontecimentos que não tivessem sido preditos de alguma maneira.” Maquiavel foi o primeiro homem de meu conhecimento que sustentou essa proposição. Mas se vós mesmos nela refletirdes, achareis que sua asserção está justificada ao longo de toda a história. Tendes um último exemplo dela na Revolução Francesa, predita de todos os lados e da maneira mais incontestável.

Mas, para voltar ao ponto de onde parti, credes que ao século de Virgílio faltavam belos espíritos que zombavam “do grande ano, do século de ouro, da casta Lucina, a augusta mãe, e do misterioso menino?” Entretanto, tudo isto havia chegado: “O menino, do alto do céu, estava prestes a descer.” E podeis ver em vários escritos, notadamente nas observações que Pope juntou à sua tradução em versos do Pollion, que essa peça poderia passar por uma versão de Isaías. Por que quereis que não o seja, mesmo hoje? O Universo está à espera. Como desprezaríamos essa grande persuasão, e com que direito condenaríamos os homens que, advertidos por esses sinais divinos, se entregam a santas pesquisas?

Quereis uma nova prova do que se prepara? Buscai nas ciências; considerai judiciosamente o avanço da Química, da própria Astronomia, e vereis para onde elas nos conduzem. Acreditaríeis, por exemplo, se disso não estivésseis advertidos, que Newton nos reconduz a Pitágoras, e que incessantemente será demonstrado que os corpos celestes são movidos precisamente como os corpos humanos, por inteligências que lhes estão unidas, sem que se saiba como? É o que, entretanto, está a ponto de se verificar, sem que haja, em breve, qualquer meio de argumentar. Esta doutrina poderá parecer paradoxal, sem dúvida, e mesmo ridícula, porque a opinião corrente o impõe, mas esperai que a afinidade natural da Religião e da Ciência as reúna na cabeça de um só homem de gênio; o aparecimento deste homem não poderia estar distante e talvez mesmo ele já exista. Ele será famoso e porá fim ao século dezoito, que ainda perdura, porque os séculos intelectuais não se regulam pelo calendário, como os séculos propriamente ditos. Então, as opiniões que hoje nos parecem bizarras ou insensatas, serão axiomas dos quais não será permitido duvidar, e falar-se-á de nossa estupidez atual, como nós falamos da superstição da Idade Média. A força das coisas já obrigou alguns sábios da escola materialista a fazerem concessões que os aproximam do espírito. E outros, não se podendo impedir de pressentir essa tendência surda de uma opinião poderosa, contra ela tomam precauções que talvez façam sobre os verdadeiros observadores mais impressão que uma resistência direta. Daí a sua atenção escrupulosa em não empregar senão expressões materiais. Eles nunca tratam, em seus escritos, senão de leis mecânicas, de princípios mecânicos, de astronomia física, etc. Não que eles não percebam muito bem que as teorias materialistas absolutamente não contentam a inteligência, porque existe algo de evidente para o espírito humano despreocupado: É que os movimentos do Universo não podem ser explicados apenas pelas leis mecânicas; mas é precisamente porque o sentem que eles, por assim dizer, põem palavras em guarda contra a verdade. Eles não querem confessá-lo, mas não são mais detidos senão pela obrigação ou pelo respeito humano. Os sábios europeus são neste momento espécies de conjurados ou de iniciados, como quiserdes chamá-los, que fizeram da ciência uma espécie de monopólio e que não querem absolutamente que ninguém saiba mais do que eles, ou de modo diferente deles. Mas essa ciência será incessantemente odiada por uma posterioridade iluminada que acusará justamente os adeptos de hoje por não terem sabido tirar das verdades que Deus lhes havia entregue as mais preciosas consequências para o homem. Então, toda a Ciência mudará de face; o espírito, longamente destronado, retomará o seu lugar.

Será demonstrado que todas as tradições antigas são verdadeiras; que o paganismo inteiro não passa de um sistema de verdades corrompidas e deslocadas; que, por assim dizer, basta limpá-las e recolocá-las em seu lugar, para vê-las brilhar em todo o seu esplendor.

Numa palavra, todas as ideias mudarão, e porque de todos os lados uma multidão de eleitos exclama em concerto: “Vinde Senhor, vinde!” por que censuraríeis esses homens que se lançam nesse futuro majestoso e se glorificam de adivinhá-lo? Como os poetas que, até nos nossos tempos de fraqueza e de decrepitude, ainda apresentam alguns pálidos clarões do espírito profético, os homens espiritualistas por vezes experimentam movimentos de entusiasmo e de inspiração que os transportam para o futuro, e lhes permitem pressentir os acontecimentos que o tempo amadureceu ao longe.

Lembrai-vos, senhor conde, do cumprimento que me dirigistes sobre minha erudição relativa ao número três. Com efeito, esse número se mostra de todos os lados, no mundo físico, como no mundo moral e nas coisas divinas. Deus falou uma primeira vez aos homens no Monte Sinai, e essa revelação foi concentrada, por motivos que ignoramos, nos estreitos limites de um só povo e de um só país. Após quinze séculos, uma segunda revelação se dirigiu a todos os homens sem distinção, e é aquela de que desfrutamos. Mas a universalidade de sua ação devia ser ainda infinitamente restringida pelas circunstâncias de tempo e de lugares. Quinze séculos a mais deviam escoar-se antes que a América visse a luz, e suas vastas regiões ainda encerram uma porção de hordas selvagens tão estranhas ao grande benefício, que seríamos levados a crer que elas dele são excluídas por natureza, em virtude de algum anátema primitivo inexplicável. Só o grande Lama tem mais súditos espirituais que o Papa; Bengala tem sessenta milhões de habitantes, a China tem duzentos, o Japão vinte e cinco ou trinta. Contemplai esses arquipélagos do grande Oceano que hoje formam uma quinta parte do mundo. Vossos missionários sem dúvida fizeram maravilhosos esforços para anunciar o Evangelho nalgumas dessas regiões longínquas, mas vedes com que sucesso. Quantas miríades de homens que a boa nova jamais atingirá! A cimitarra do filho de Ismael não expulsou inteiramente o Cristianismo da África e da Ásia? E em nossa Europa, que espetáculo se oferece ao olho religioso!...

Contemplai este quadro lúgubre; juntai a espera dos homens escolhidos, e vereis se os iluminados estão errados ao encarar como mais ou menos próxima uma terceira explosão da onipotente bondade em favor do gênero humano. Eu não terminaria se quisesse reunir todas as provas que se reúnem para justificar esta grande espera. Ainda uma vez, não censureis as pessoas que disto se ocupam e que veem na própria revelação, razões para prever uma revelação da revelação. Se quiserdes, chamai esses homens iluminados, que estarei inteiramente de acordo convosco, desde que pronuncieis esse nome seriamente.

Tudo anuncia, e vossas próprias observações o demonstram, não sei qual grande unidade para a qual marchamos a grandes passos. Não podeis, pois, sem vos pôr em contradição convosco mesmos, condenar os que de longe saúdam essa unidade e tentam, conforme suas forças, penetrar mistérios tão terríveis, sem dúvida, mas ao mesmo tempo tão consoladores para nós.

E não digais que tudo está dito, que tudo está revelado e que não nos é permitido esperar nada de novo. Sem dúvida nada nos falta para a salvação. Mas, do lado dos conhecimentos divinos, falta-nos muito; e quanto às manifestações futuras, como vedes, tenho mil razões para confiar, ao passo que não tendes nenhuma para me provar o contrário. O hebreu que cumpria a lei não estava em segurança de consciência? Eu vos citaria, se fosse preciso, não sei quantas passagens da Bíblia que prometem ao sacrifício judaico e ao trono de David uma duração igual à do Sol. O judeu, que se mantinha na casca, tinha toda razão, até o acontecimento, de crer no reino temporal do Messias; nada obstante, enganava-se, como se viu depois, mas sabemos o que nos aguarda a nós mesmos? Deus estará conosco até a consumação dos séculos; as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja, etc. Muito bem! Disso resulta, pergunto-vos, que Deus interditou toda manifestação nova e não lhe é mais permitido ensinar-nos nada além do que sabemos? Convenhamos que seria um estranho argumento.

Estando uma nova efusão do Espírito Santo, para o futuro, no rol das coisas mais razoavelmente esperadas, é preciso que os pregadores desse dom novo possam citar a Escritura Sagrada a todos os povos. Os apóstolos não são tradutores; eles têm muitas outras ocupações; mas a Sociedade Bíblica, instrumento cego da Providência, prepara suas diferentes versões que os verdadeiros enviados explicarão um dia, em virtude de uma missão legítima, nova ou primitiva, não importa, que expulsará a dúvida da cidade de Deus; e é assim que os terríveis inimigos da unidade trabalham para estabelecê-la.



OBSERVAÇÃO: Estas palavras são muito mais notáveis pelo fato de emanarem de um homem de um mérito incontestável como escritor, e que é tido em grande estima no mundo religioso. Talvez não se tenha visto tudo quanto elas encerram, porque são um protesto evidente contra o absolutismo e o estreito exclusivismo de certas doutrinas. Elas denotam no autor uma amplidão de vistas que tange a independência filosófica. Muitas vezes a ortodoxia se escandaliza por menos. As passagens em destaque são bastante explícitas e é supérfluo comentá-las. Sobretudo os espíritas compreenderão facilmente o seu alcance. Seria impossível não ver aí a previsão de coisas que hoje se passam e das que o futuro reserva para a Humanidade, tamanha a relação dessas palavras com o estado atual e com o que, por todos os lados, anunciam os Espíritos.



[1] No original consta Salmo XXV, v. 17. Vide Erratum na última página do número de março de 1868.


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