Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Galileu

(A proposito do drama do Sr. Ponsard)

O acontecimento literário do dia é a representação de Galileu, drama em versos do Sr. Ponsard. Embora nele não se trate de Espiritismo, a ele se liga por um lado essencial: o da pluralidade dos mundos habitados e, sob tal ponto de vista, podemos considerá-lo como uma das obras chamadas a favorecer o desenvolvimento da doutrina, popularizando um de seus princípios fundamentais.

O destino da Humanidade está ligado à organização do Universo, como o do habitante o está à sua habitação. Na ignorância desta organização, o homem deve ter tido ideias, sobre o seu passado e o seu futuro, em relação ao estado de seus conhecimentos. Se ele tivesse sempre conhecido a estrutura da Terra, jamais teria pensado em colocar o inferno em suas entranhas; se tivesse conhecido o infinito do espaço e a multidão de mundos que aí se movem, não teria localizado o céu acima do céu das estrelas; não teria feito da Terra o ponto central do Universo, a única habitação dos seres vivos; não teria condenado a crença nos antípodas como uma heresia; se tivesse conhecido a Geologia, jamais teria acreditado na formação da Terra em seis dias e em sua existência há seis mil anos.

A ideia mesquinha que o homem fazia da Criação devia dar-lhe uma ideia mesquinha da divindade. Ele não pôde compreender a grandeza, o poder, a sabedoria infinitas do Criador senão quando seu pensamento pôde abarcar a imensidade do Universo e a sabedoria das leis que o regem, como se julga o gênio de um mecânico pelo conjunto, harmonia e precisão de um mecanismo, e não à vista de uma simples engrenagem. Só então as ideias puderam crescer e elevar-se acima de seu limitado horizonte. Em todos os tempos suas ideias religiosas foram calcadas na ideia que ele fazia de Deus e de sua obra. O erro de suas crenças sobre a origem e o destino da Humanidade tinha como causa sua ignorância das verdadeiras leis da Natureza. Se, desde a origem, ele tivesse conhecido essas leis, seus dogmas teriam sido completamente outros.

Como um dos primeiros a revelar as leis do mecanismo do Universo, não por hipóteses, mas por uma demonstração irrecusável, Galileu abriu o caminho a novos progressos. Por isto mesmo, ele devia produzir uma revolução nas crenças, destruindo os andaimes dos sistemas científicos errados sobre os quais elas se apoiavam.

A cada um a sua missão. Nem Moisés, nem o Cristo tinham a de ensinar aos homens as leis da Ciência. O conhecimento dessas leis devia ser resultado do trabalho e das pesquisas do homem, da atividade e do desenvolvimento de seu próprio espírito, e não de uma revelação a priori, que lhe tivesse dado o saber sem esforço. Eles não deviam nem podiam lhe ter falado senão uma linguagem apropriada ao seu estado intelectual, pois do contrário não teriam sido compreendidos. Moisés e o Cristo tiveram sua função moralizadora. A gênios de outra ordem são deferidas as missões científicas. Ora, como as leis morais e as leis da Ciência são leis divinas, a Religião e a Filosofia não podem ser verdadeiras senão pela aliança dessas leis.

O Espiritismo é baseado na existência do princípio espiritual, como elemento constitutivo do Universo. Ele repousa sobre a universalidade e a perpetuidade dos seres inteligentes, sobre seu progresso indefinido através dos mundos e das gerações; sobre a pluralidade das existências corporais necessárias ao seu progresso individual; sobre sua cooperação relativa, como encarnados e desencarnados, na obra geral, na medida do progresso realizado; na solidariedade que une todos os seres de um mesmo mundo e dos mundos entre si. Nesse vasto conjunto, encarnados e desencarnados, cada um tem a sua missão, o seu papel, deveres a cumprir, desde o mais ínfimo até os anjos, que não são senão Espíritos humanos chegados ao estado de Espíritos puros, aos quais são confiadas as grandes missões, o governo dos mundos, como a generais experimentados. Em vez das solidões desertas do espaço sem limites, por toda parte a vida e a atividade, em parte alguma a ociosidade inútil; por toda parte o emprego dos conhecimentos adquiridos; por toda parte o desejo de continuar progredindo e de aumentar a soma de felicidades, pelo emprego útil das faculdades da inteligência. Em vez de uma existência efêmera e única, passada num cantinho da Terra, que decide para sempre sua sorte futura, que impõe limites ao progresso e torna estéril, para o futuro, o trabalho que ele toma para se instruir, o homem tem por domínio o Universo; nada do que ele sabe e do que faz fica perdido; o futuro lhe pertence; em vez do isolamento egoísta, a solidariedade universal; em vez do nada, segundo uns, a vida eterna; em vez da beatitude contemplativa perpétua, segundo outros, que a tornaria uma inutilidade perpétua, um papel ativo, proporcional ao mérito adquirido; em vez de castigos irremissíveis por faltas temporárias, a posição que cada um constrói para si, por sua perseverança no bem ou no mal; em vez de uma mancha original que o torna passível de faltas que não foram por ele cometidas, a consequência natural de suas próprias imperfeições nativas; em vez das chamas do inferno, a obrigação de reparar o mal que se fez e recomeçar o que se fez mal; em vez de um Deus colérico e vingativo, um Deus justo e bom, que leva em conta todo arrependimento e toda boa vontade.

Tal é, em resumo, o quadro que o Espiritismo apresenta, e que ressalta da própria situação dos Espíritos que se manifestam. Não é mais uma simples teoria, mas um resultado da observação. O homem que encara as coisas deste ponto de vista sente-se crescer; ele se revela aos seus próprios olhos; é estimulado em seus instintos progressivos ao ver um objetivo para os seus trabalhos, para os seus esforços por se melhorar.

Mas para compreender o Espiritismo em sua essência, na imensidade das coisas que ele abarca; para compreender o objetivo da vida e o destino do homem, não era preciso relegar a Humanidade para um pequeno globo, limitar a existência a alguns anos, apequenar o Criador e a criatura; para que o homem pudesse fazer uma ideia justa de seu papel no Universo, era preciso que ele compreendesse, pela pluralidade dos mundos, o campo aberto às suas explorações futuras e à atividade de seu espírito; para recuar indefinidamente os limites da Criação, para destruir os preconceitos sobre os lugares especiais de recompensa e de punição, sobre os diferentes estágios dos céus, era preciso que ele penetrasse as profundezas do espaço; que em lugar do cristalino e do empíreo, ele aí visse circular, em majestosa e perpétua harmonia, os mundos inumeráveis, semelhantes ao seu; que por toda parte seu pensamento encontrasse a criatura inteligente.

A história da Terra se liga à da Humanidade. Para que o homem pudesse desfazer-se de suas mesquinhas e falsas opiniões sobre a época, a duração e o modo de criação do nosso globo, de suas crenças lendárias sobre o dilúvio e sua própria origem; para que consentisse em desalojar do seio da Terra o inferno e o império de Satã, era preciso que pudesse ler nas camadas geológicas a história de sua formação e de suas revoluções físicas.

A Astronomia e a Geologia, secundadas pelas descobertas da Física e da Química, apoiadas nas leis da Mecânica, são as duas poderosas alavancas que derrubaram seus preconceitos sobre sua origem e seu destino.

A matéria e o espírito são os dois princípios constitutivos do Universo, mas o conhecimento das leis que regem a matéria devia preceder o das leis que regem o elemento espiritual; só as primeiras poderiam combater vitoriosamente os preconceitos, pela evidência dos fatos. O Espiritismo, que tem como objetivo especial o conhecimento do elemento espiritual, devia vir em segundo lugar; para que pudesse alçar voo e dar frutos, para que pudesse ser compreendido em seu conjunto, era preciso que ele encontrasse o terreno preparado, o campo do espírito humano varrido dos preconceitos e das ideias falsas, senão na totalidade, ao menos em grande parte, sem o que não teríamos tido senão um Espiritismo amesquinhado, bastardo, incompleto e misturado a crenças e práticas absurdas, como é ainda hoje nos povos atrasados. Se considerarmos a situação moral atual das nações adiantadas, reconheceremos que ele veio em tempo oportuno, para encher os vazios que se fazem nas crenças.

Galileu abriu o caminho. Rasgando o véu que ocultava o infinito, ele alargou o domínio da inteligência e desferiu um golpe fatal nas crenças errôneas; destruiu mais ideias falsas e superstições do que todas as filosofias, porque as sapou pela base, mostrando a realidade. O Espiritismo deve colocá-lo na categoria dos grandes gênios que abriram o caminho, derrubando as barreiras que a ignorância lhe opunha. As perseguições de que foi vítima, e que são o quinhão de quem quer que ataque os preconceitos e as ideias herdadas, fizeram-no grande aos olhos da posterioridade, ao mesmo tempo que rebaixaram os perseguidores. Quem é hoje o maior: eles ou ele?

Lamentamos que a falta de espaço não nos permita citar alguns fragmentos do belo drama do Sr. Ponsard. Fá-lo-emos no próximo número.

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