Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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Variedades


Eugénie Colombe, precocidade fenomenal


Vários jornais reproduziram o seguinte fato:

“A Sentinelle, de Toulon, fala de um jovem fenômeno que é admirado no momento nessa cidade.

“É uma menina de dois anos e onze meses, chamada Eugénie Colombe.

“Essa menina já sabe ler e escrever perfeitamente; além do mais, está em condições de sustentar o mais sério exame sobre os princípios da religião cristã, sobre gramática francesa, Geografia, História da França e sobre as quatro operações da Aritmética.

“Ela conhece a rosa dos ventos e sustenta perfeitamente uma discussão científica sobre qualquer assunto.

“Essa admirável menina começou a falar muito distintamente com a idade de quatro meses.

“Apresentada nos salões da prefeitura marítima, Eugénie Colombe, dotada de um rosto encantador, obteve um sucesso magnífico.”

Este artigo nos tinha parecido, como para muitas outras pessoas, marcado de tal exagero, que não lhe tínhamos atribuído nenhuma importância. Não obstante, para saber positivamente a que nos atermos, pedimos a um dos nossos correspondentes, oficial de marinha em Toulon, a bondade de se informar do fato. Eis o que ele nos respondeu:

“Para me assegurar da verdade, fui à casa dos pais da menina mencionada pela Sentinelle Toulonnaise de 19 de novembro, e vi essa encantadora criança, cujo desenvolvimento físico corresponde à sua idade. Ela tem apenas três anos. Sua mãe é professora e é ela que dirige a sua instrução. Em minha presença interrogou-a sobre o catecismo, a história sagrada, desde a criação do mundo até o dilúvio, os oito primeiros reis da França e diversas circunstâncias relativas a seus reinados e ao de Napoleão I. Quanto à Geografia, a menina citou as cinco partes do mundo, as capitais dos países que as compõem e várias capitais de Departamentos da França. Também respondeu perfeitamente às primeiras noções de gramática francesa e do sistema métrico. Ela deu todas as respostas sem a menor hesitação, divertindo-se com os brinquedos que tinha nas mãos. Sua mãe me disse que ela sabe ler desde dois anos e meio e assegurou-me que pode responder do mesmo modo a mais de quinhentas perguntas.”

Livre do exagero do relato dos jornais e reduzido às proporções acima, o fato não é menos notável e importante em suas consequências. Ele forçosamente chama a atenção sobre fatos análogos de precocidade intelectual e conhecimentos inatos. Involuntariamente procuramos sua explicação, e com a ideia da pluralidade das existências, que circula, não se chega a nela achar uma solução racional senão numa existência anterior. Há que colocar esses fenômenos no número dos que são anunciados como devendo, por sua multiplicidade, confirmar as crenças espíritas, e contribuir para o seu desenvolvimento.

No presente caso, certamente a memória parece desempenhar um papel importante. Sendo professora a mãe da menina, sem dúvida a menina encontrava-se habitualmente na sala de aula, e teria retido as lições dadas aos alunos por sua mãe, ao passo que se veem certos alunos possuírem, por intuição, conhecimentos de certo modo inatos e independentes de qualquer ensinamento. Mas por que nela e não nos outros, essa facilidade excepcional para assimilar o que ouvia e que provavelmente não pensavam em lhe ensinar? É que aquilo que ela ouvia apenas lhe despertava a lembrança do que ela já soubera. A precocidade de certas crianças para as línguas, a música, as matemáticas, etc., todas as ideias inatas, numa palavra, igualmente não passam de lembranças. Elas se lembram do que souberam, como se veem certas pessoas lembrar-se, mais ou menos vagamente, do que fizeram ou do que lhes aconteceu. Conhecemos um menino de cinco anos que, estando à mesa, onde nada da conversa poderia ter provocado uma ideia a esse respeito, pôs-se a dizer: “Eu fui casado, e me lembro bem. Eu tinha uma mulher, pequena, jovem e linda, e tive vários filhos.” Certamente não temos nenhum meio de controlar sua asserção, mas nos perguntamos de onde lhe pode vir semelhante ideia, quando nenhuma circunstância tinha podido provocá-la.

Devemos disto tirar a conclusão que as crianças que só aprendem à custa de muito esforço foram ignorantes ou estúpidas em sua precedente existência? Certamente não. A faculdade de recordar é uma aptidão inerente ao estado psicológico, isto é, ao mais fácil desprendimento da alma em certos indivíduos do que em outros, uma espécie de visão espiritual retrospectiva que lhes lembra o passado, ao passo que naqueles que não a possuem, esse passado não deixa qualquer traço aparente. O passado é como um sonho, do qual a gente se lembra mais ou menos exatamente, ou do qual se perdeu totalmente a lembrança. (Ver a Revista Espírita de julho de 1860 e também a de novembro de 1864).

No momento de remeter a Revista para a gráfica, recebemos de um dos correspondentes da Argélia, que, de passagem por Toulon, viu a pequena Eugénie Colombe, uma carta contendo o relato seguinte, que confirma o precedente, e acrescenta detalhes que não deixam de ser interessantes:

“Essa menina, de uma beleza notável, é de uma vivacidade extrema, mas de uma suavidade angélica. Sentada nos joelhos de sua mãe, respondeu a mais de cinquenta perguntas sobre o Evangelho. Interrogada sobre Geografia, designou-me todas as capitais da Europa e de diversos países da América; todas as capitais dos Departamentos da França e da Argélia; explicou-me o sistema decimal e o sistema métrico. Em gramática, os verbos, os particípios e os adjetivos. Conhece, ou pelo menos define, as quatro operações básicas. Escreveu meu ditado, mas com tal rapidez que sou levado a crer que escrevia mediunicamente. Na quinta linha ela largou a pena, olhou-me fixamente com seus grandes olhos azuis, e me disse bruscamente: ‘Senhor, é bastante’. Depois desceu da cadeira e correu para os brinquedos.

“Essa criança certamente é um Espírito muito adiantado, porque se vê que responde e cita sem o menor esforço de memória. Sua mãe me disse que desde os 12 ou 15 meses ela sonha à noite e parece conversar, mas numa língua incompreensível. É caridosa por instinto; chama sempre a atenção de sua mãe quando avista um pobre; não suporta que batam nos cães, nos gatos, nem em qualquer animal. Seu pai é operário no arsenal de marinha.”

Somente espíritas esclarecidos, como os nossos dois correspondentes, poderiam apreciar o fenômeno psicológico que apresenta essa criança e sondar-lhe a causa, porque, assim como para julgar um mecanismo é preciso ser mecânico, para julgar fatos espíritas é preciso ser espírita. Ora, em geral, a quem encarregam da constatação e da explicação dos fenômenos deste gênero? Precisamente a pessoas que não os estudaram e que, negando a causa primeira, não podem admitir-lhes as consequências.

Tom, o cego, músico natural



Lemos no Spiritual Magazine, de Londres:

“A celebridade de Tom, o Cego, que há pouco fez o seu aparecimento em Londres, já se tinha espalhado aqui, e há alguns anos um artigo no jornal All the year round tinha descrito suas notáveis faculdades e a sensação que elas haviam produzido na América. A maneira pela qual as faculdades se desenvolveram nesse negro, escravo e cego, ignorante e totalmente iletrado; como, menino ainda, um dia surpreendido pelos sons da música na casa de seu senhor, correu sem cerimônia a sentar-se ao piano, reproduzindo nota por nota o que acabava de ser tocado, rindo e se contorcendo de alegria ao ver o novo mundo de prazeres que acabava de descobrir, tudo isto foi tão frequentemente repetido, que julgo inútil mencioná-lo mais uma vez. Mas um fato significativo e interessante me foi contado por um amigo, que foi o primeiro a testemunhar e apreciar a faculdade de Tom. Um dia tocaram uma peça de Haendel para ele. Imediatamente Tom a repetiu corretamente e, ao terminar, esfregou as mãos com uma expressão de indefinível alegria, exclamando: “Eu o vejo, é um velho com uma grande peruca; ele tocou primeiro e eu depois.” É incontestável que Tom tinha visto Haendel e o tinha ouvido tocar.

“Tom exibiu-se várias vezes em público, e a maneira que executa os trechos mais difíceis quase faria duvidar de sua enfermidade. Ele repete sem falha, no piano, e necessariamente de memória, tudo quanto tocam para ele, quer sonatas clássicas antigas, quer fantasias modernas. Ora, gostaríamos de ver quem poderia aprender desta maneira as variações de Thalberg com os olhos fechados, como ele faz.

“Este fato surpreendente de um cego, ignorante, desprovido de qualquer instrução, mostrando um talento que outros são incapazes de adquirir com todas as vantagens do estudo, provavelmente será explicado por muitos, segundo a maneira ordinária de encarar estas coisas, dizendo: ‘É um gênio e uma organização excepcional.’ Mas só o Espiritismo pode dar a chave desse fenômeno de maneira compreensível e racional.”

As reflexões que fizemos a propósito da menina de Toulon, naturalmente se aplicam a Tom, o Cego. Tom deve ter sido um grande músico, ao qual basta ouvir para lembrar-se do que sabia. O que torna o fenômeno mais extraordinário é que se apresenta num negro, escravo e cego, tríplice causa que se opunha à cultura de suas aptidões nativas e a despeito das quais se manifestaram na primeira ocasião favorável, como um germe aos raios do sol. Ora, como a raça negra em geral, e sobretudo no estado de escravidão, não brilha pela cultura das artes, há que concluir que o Espírito de Tom não pertence a essa raça, mas que nela se encarnou como expiação ou como meio providencial de reabilitação dessa raça na opinião, mostrando de que ela é capaz.

Muito foi dito e escrito contra a escravidão e o preconceito da cor. Tudo quanto foi dito é justo e moral, mas não passa de uma tese filosófica. A lei da pluralidade das existências e da reencarnação vem a isto acrescentar a irrefutável sanção de uma lei da Natureza que consagra a fraternidade de todos os homens. Tom, o escravo nascido e aclamado na América, é um protesto vivo contra os preconceitos que ainda reinam nesse país. (Ver a Revista de abril de 1862: Perfectibilidade da raça negra. Frenologia espiritualista).

Suicídios dos animais



"Contava o Morning-Post, há alguns dias, a estranha história de um cão que se teria suicidado. O animal pertencia a um senhor chamado Home, de Frinsbury, perto de Rochester. Parece que certas circunstâncias haviam levado a considerá-lo suspeito de hidrofobia e que, por conseguinte, evitavam-no e o mantinham afastado da casa tanto quanto possível. Ele parecia experimentar muito desgosto por ser assim tratado, e durante alguns dias notaram que ele estava de humor sombrio e magoado, mas sem mostrar ainda qualquer sintoma de raiva. Quinta-feira viram-no deixar o seu nicho e dirigir-se para a residência de um amigo íntimo de seu dono, em Upnor, onde recusaram acolhê-lo, o que lhe arrancou um grito lamentável.

“Depois de esperar algum tempo diante da casa sem obter permissão para entrar, decidiu-se a partir, e viram-no caminhar na direção do rio que passa perto dali, descer a barranca com passo deliberado e em seguida, depois de voltar-se e emitir uma espécie de uivo de adeus, entrar no rio, mergulhar na água e, ao cabo de um ou dois minutos, reaparecer à tona, sem vida.

“Este ato de suicídio extraordinário, segundo dizem, foi testemunhado por grande número de pessoas. O gênero de morte prova claramente que o animal não estava hidrófobo.

“Tal fato parece muito extraordinário. Sem dúvida encontrará incrédulos. Não obstante, diz o Droit, não lhe faltam precedentes.

“A história nos conservou a lembrança de cães fiéis que se entregaram a uma morte voluntária, para não sobreviverem a seus donos. Montaigne cita dois exemplos, tirados da Antiguidade: “Hyrcanus, o cão do rei Lisímaco, seu senhor morto, ficou obstinado sobre sua cama, sem beber nem comer, e no dia em que queimaram o corpo de seu senhor, ele correu e atirou-se no fogo, onde foi queimado, como fez também o cão de um tal Pyrrhus, porque ele não saiu de cima do leito do seu dono desde que ele morreu, e quando o levaram, deixou-se levar com ele, e finalmente lançou-se na fogueira onde queimavam o corpo de seu dono.” (Essais, liv. II, cap. XII). Nós mesmos registramos, há alguns anos, o fim trágico de um cão que tendo perdido a estima de seu dono, e não achando consolo, tinha-se precipitado do alto de uma passarela no canal Saint-Martin. O relato muito circunstanciado que então fizemos do caso jamais foi contraditado e não deu lugar a qualquer reclamação das partes interessadas.”

(Petit Journal, 15 de maio de 1866).

Não faltam exemplos de suicídio entre os animais. Como se disse acima, o cão que se deixa morrer de inanição pelo pesar de haver perdido o dono, realiza um verdadeiro suicídio. O escorpião, cercado por carvões acesos, vendo que não pode sair, mata-se. É uma analogia a mais a constatar entre o espírito do homem e o dos animais.

A morte voluntária de um animal prova que ele tem consciência de sua existência e de sua individualidade. Ele compreende o que é a vida e a morte, pois escolhe livremente entre uma e outra. Ele não é, portanto, uma máquina, e não obedece exclusivamente a um instinto cego, como se supõe. O instinto impele à procura dos meios de conservação, e não de sua própria destruição.

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