Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1867

Allan Kardec

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A homeopatia nas moléstias morais

Pode a homeopatia modificar as disposições morais? Tal é a pergunta feita por certos médicos homeopatas e à qual não hesitam em responder afirmativamente, apoiando-se em fatos. Considerando-se sua extrema gravidade, vamos examiná-la com cuidado, de um ponto de vista que nos parece ter sido negligenciado por aqueles senhores, por mais espiritualistas e mesmo espíritas que sejam, sem dúvida, porquanto há bem poucos médicos homeopatas que não sejam uma ou a outra coisa. Mas, para a compreensão de nossas conclusões, são necessárias algumas explicações preliminares sobre as modificações dos órgãos cerebrais, sobretudo para as pessoas alheias à fisiologia.

Um princípio que a simples razão torna admissível, que a Ciência constata diariamente, é que nada há de inútil na Natureza, que até nos mais imperceptíveis detalhes tudo tem um fim, uma razão de ser, uma destinação. Este princípio é particularmente evidente no que concerne ao organismo dos seres vivos.

Em todos os tempos, o cérebro tem sido considerado como o órgão da transmissão do pensamento e a sede das faculdades intelectuais e morais. É hoje reconhecido que certas partes do cérebro têm funções especiais e são afetadas por uma ordem particular de pensamentos e sentimentos, pelo menos no que concerne à generalidade; é assim que, instintivamente, na parte anterior se colocam as faculdades do domínio da inteligência e que uma fronte fortemente deprimida e retraída é para todo mundo um sinal de inferioridade intelectual. As faculdades afetivas, os sentimentos e as paixões estariam, consequentemente, sediados em outras partes do cérebro.

Ora, se considerarmos que os pensamentos e os sentimentos são excessivamente múltiplos, e partindo do princípio que tudo tem sua destinação e sua utilidade, é permitido concluir que não só cada feixe fibroso do cérebro corresponde à manifestação de uma faculdade geral distinta, mas que cada fibra corresponde à manifestação de uma das nuanças dessa faculdade, como cada corda de um instrumento corresponde a um som particular. Sem dúvida é uma hipótese, mas que tem todos os caracteres de probabilidade, e cuja negação não infirmaria as consequências que deduziremos do princípio geral. Ela nos ajudará em nossa explicação.

O pensamento é independente do organismo? Aqui não temos que discutir esta questão, nem que refutar a opinião materialista segundo a qual o pensamento é secretado pelo cérebro, como a bile pelo fígado; nasce e morre com esse órgão. Além de suas funestas consequências morais, essa doutrina tem contra si o fato de nada explicar.

Segundo as doutrinas espiritualistas, que são as da imensa maioria dos homens, não podendo a matéria produzir o pensamento, este é um atributo do Espírito, do ser inteligente que, quando unido ao corpo, serve-se dos órgãos especialmente encarregados da sua transmissão, como se serve dos olhos para ver e dos pés para andar. Sobrevivendo o Espírito ao corpo, o pensamento também a ele sobrevive.

Segundo a Doutrina Espírita, o Espírito não só sobrevive, mas preexiste ao corpo; ele não é um ser novo; ao nascer, ele traz ideias, qualidades e imperfeições que possuía; assim se explicam as ideias, as aptidões e as inclinações inatas. O pensamento é, pois, preexistente e sobrevivente ao organismo. Este ponto é capital e é por não o terem reconhecido que tantas questões permaneceram insolúveis.

Estando na Natureza todas as faculdades e aptidões, o cérebro encerra os órgãos, ou, pelo menos, o germe dos órgãos necessários à manifestação de todos os pensamentos. A atividade do pensamento do Espírito sobre um ponto determinado impele ao desenvolvimento da fibra ou, se se quiser, do órgão correspondente. Se uma faculdade não existir no Espírito, ou se, existindo, deve ficar em estado latente, estando inativo o órgão correspondente, ele não se desenvolve ou se atrofia. Se o órgão for atrofiado congenitamente, a faculdade não pode manifestar-se, e o Espírito parece dela privado, embora, em realidade, a possua, porquanto ela lhe é inerente. Enfim, se o órgão, primitivamente em seu estado normal, se deteriora no curso da vida, a faculdade, de brilhante que era, se reduz, depois se apaga, mas não se destrói; há apenas um véu que a obscurece.

Conforme os indivíduos, há faculdades, aptidões, tendências que se manifestam desde o começo da vida, outras se revelam em épocas mais tardias, e produzem as mudanças de caráter e de disposições que se notam em certas pessoas. Neste último caso, geralmente não são disposições novas, mas aptidões preexistentes, que dormitariam até que uma circunstância as viesse estimular e despertar. Podemos ter certeza que as disposições viciosas que se manifestam, por vezes subitamente e tardiamente, tinham seu germe preexistente nas imperfeições do espírito, porque este, marchando sempre para o progresso, se for fundamentalmente bom, não pode tornar-se mau, ao passo que de mau pode tornar-se bom.

O desenvolvimento ou a depressão dos órgãos cerebrais segue o movimento que se opera no Espírito. Essas modificações são favorecidas em todas as idades, mas sobretudo na mocidade, pelo trabalho íntimo de renovação que se opera incessantemente no organismo, da seguinte maneira:

Os principais elementos do organismo são, como sabemos, o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono que, por suas múltiplas combinações, formam o sangue, os nervos, os músculos, os humores e as diferentes variedades de substâncias. Pela atividade das funções vitais, as moléculas orgânicas são incessantemente expelidas do corpo pela transpiração, pela exalação e por todas as secreções, de sorte que se não fossem substituídas, o corpo reduzir-se-ia e acabaria deperecendo. O alimento e a aspiração incessantemente trazem novas moléculas, destinadas a substituir as que se vão, de onde se segue que, num tempo dado, todas as moléculas orgânicas são inteiramente renovadas, e que numa certa idade, não existe mais uma só das que formavam o corpo em sua origem. É o caso de uma casa, da qual se arrancassem as pedras uma a uma, substituindo-as sucessivamente por novas pedras da mesma forma e tamanho, e assim por diante até a última. Teríamos sempre a mesma casa, mas formada de pedras diferentes.

Assim é com o corpo, cujos elementos constitutivos são, dizem os fisiologistas, totalmente renovados de sete em sete anos. As diversas partes do organismo continuam existindo, mas os materiais são trocados. Dessas mudanças gerais ou parciais nascem as modificações que sobrevêm, com a idade, no estado de saúde de certos órgãos, as variações que sofrem os temperamentos, os gostos, os desejos que influem sobre o caráter.

As aquisições e as perdas não estão sempre em perfeito equilíbrio. Se as aquisições superam as perdas, o corpo cresce e engrossa; se se dá o contrário, o corpo diminui. Assim podemos entender o crescimento, a obesidade, o emagrecimento e a decrepitude.

A mesma causa produz a expansão ou a cessação do desenvolvimento dos órgãos cerebrais, conforme as modificações que se operam nas preocupações habituais, nas ideias e no caráter. Se as circunstâncias e as causas que agem diretamente sobre o Espírito, provocando o exercício de uma aptidão ou de uma paixão que até agora estava em estado de inércia, a atividade que se produz no órgão correspondente aí faz afluir o sangue, e com ele as moléculas constitutivas do órgão, que cresce e toma força na proporção dessa atividade. Pela mesma razão, a inatividade da faculdade produz o enfraquecimento do órgão, como também uma atividade muito grande e muito persistente pode levá-lo à desorganização ou ao enfraquecimento, por uma espécie de desgaste, como acontece com uma corda muito esticada.

As aptidões do Espírito, portanto, são sempre uma causa, e o estado dos órgãos, um efeito. Pode acontecer, entretanto, que o estado dos órgãos seja modificado por uma causa estranha ao Espírito, tal como doença, acidente, influência atmosférica ou climática; então os órgãos é que reagem sobre o Espírito, não alterando as suas faculdades, mas perturbando a manifestação.

Um efeito semelhante pode resultar das substâncias ingeridas, no estômago, como alimentos ou medicamentos. Essas substâncias aí se decompõem, e os princípios essenciais que elas encerram, misturados ao sangue, são levados, pela corrente da circulação, a todas as partes do corpo. É reconhecido pela experiência que os princípios ativos de certas substâncias são levados mais particularmente a tal ou qual víscera: o coração, o fígado, os pulmões, etc., e aí produzem efeitos reparadores ou deletérios, conforme sua natureza e propriedades especiais. Alguns, agindo desta maneira sobre o cérebro, podem exercer sobre o conjunto ou sobre determinadas partes, uma ação estimulante ou estupefaciente, conforme a dose e o temperamento, como, por exemplo, as bebidas alcoólicas, o ópio e outras.

Nós nos estendemos um pouco sobre os detalhes que precedem, a fim de facilitar a compreensão do princípio sobre o qual pode apoiar-se, com aparência de lógica, a teoria das modificações do estado moral por meios terapêuticos. Esse princípio é o da ação direta de uma substância sobre uma parte do organismo cerebral, tendo por função especial servir à manifestação de uma faculdade, de um sentimento ou de uma paixão, porque não pode ocorrer a ninguém que tal substância possa agir sobre o Espírito.

Admitido, pois, que o princípio das faculdades está no Espírito e não na matéria, suponhamos que se reconheça numa substância a propriedade de modificar as disposições morais,de neutralizar uma inclinação má, isto só poderia se dar por força de sua ação sobre o órgão correspondente a essa inclinação, ação que teria por efeito deter o desenvolvimento desse órgão, de atrofiá-lo ou paralisá-lo se ele for desenvolvido. É evidente que, neste caso, não se suprime a inclinação, mas a sua manifestação, absolutamente como se de um músico tirássemos o seu instrumento.

Provavelmente são efeitos dessa natureza que certos homeopatas observaram, e que os fizeram crer na possibilidade de corrigir, com o auxílio de medicamentos apropriados, vícios tais como o ciúme, o ódio, o orgulho, a cólera, etc. Uma tal doutrina, se fosse verdadeira, seria a negação de toda responsabilidade moral, a sanção do materialismo, porque então a causa de nossas imperfeições estaria apenas na matéria; a educação moral reduzir-se-ia a um tratamento médico; o mais perverso dos homens poderia tornar-se bom sem grandes esforços, e a Humanidade poderia ser regenerada com o auxílio de algumas pílulas. Se, ao contrário, e disto não resta dúvida, as imperfeições forem inerentes à inferioridade do Espírito, não será possível melhorá-lo pela modificação de seu envoltório carnal, como não se endireita um corcunda dissimulando sua deformidade sob o talhe de suas roupas.

Não duvidamos, entretanto, que tais resultados tenham sido obtidos nalguns casos particulares, porque, para afirmar um fato tão grave, é preciso ter observado, no entanto, estamos convictos que se enganaram sobre a causa e sobre o efeito. Os medicamentos homeopáticos, por sua natureza etérea, têm uma ação de certa forma molecular; mais do que outros, indubitavelmente, eles podem agir sobre certas partes elementares e fluídicas dos órgãos e modificar sua constituição íntima. Se, pois, como é racional admitir, todos os sentimentos da alma têm sua fibra cerebral correspondente para a sua manifestação, um medicamento que agisse sobre essa fibra, quer para paralisá-la, quer para exaltar sua sensibilidade, paralisaria ou exaltaria, por isso mesmo, a expressão do sentimento do qual ela fosse o instrumento, mas o sentimento não deixaria de subsistir. O indivíduo estaria na posição de um assassino a quem se tirasse a possibilidade de cometer homicídios cortando-lhes os braços, mas que não deixaria de conservar o desejo de matar. Seria, pois, um paliativo, mas não um remédio curativo.

Não se pode agir sobre o ser espiritual senão por meios espirituais. A utilidade dos meios materiais, se fosse constatado o efeito acima, talvez fosse de dominar mais facilmente o Espírito, de torná-lo mais flexível, mais dócil e mais acessível às influências morais; mas nos embalaríamos em ilusões se esperássemos de uma medicação qualquer um resultado definitivo e durável.

Seria diferente se se tratasse de dar suporte à manifestação de uma faculdade existente. Suponhamos um Espírito inteligente encarnado, mas tendo ao seu serviço um cérebro atrofiado e não podendo, pois, manifestar as suas ideias. Ele seria, para nós, um idiota. Admitindo-se ─ o que julgamos possível à homeopatia, mais do que a qualquer outro gênero de medicação ─ que se pudesse dar mais flexibilidade e sensibilidade às fibras cerebrais, o Espírito manifestaria seu pensamento, como o mudo ao qual se tivesse soltado a língua. Mas se o próprio Espírito fosse idiota, mesmo que tivesse ao seu serviço o cérebro do maior gênio, nem por isso seria menos idiota. Um medicamento qualquer, não podendo agir sobre o Espírito, não poderia nem dar-lhe o que ele não tem nem tirar o que ele tem. Mas agindo sobre o órgão de transmissão do pensamento, ele pode facilitar essa transmissão, sem que, em consequência disso, haja qualquer alteração na condição do Espírito. O que é difícil, e o mais da vezes impossível, no caso do idiota de nascença, porque há nele uma paralisação completa e quase sempre geral de desenvolvimento nos órgãos, torna-se possível quando a alteração é acidental e parcial. Nesse caso, não é o Espírito que é aperfeiçoado, são os seus meios de comunicação.

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