Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Toda ideia nova tem contra si, necessariamente, todos aqueles cujas opiniões e interesses ela contraria. Alguns julgam que as da Igreja estão comprometidas ─ pensamos que não, mas nossa opinião não é lei ─ por isso nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios para todos os lados. As brochuras e artigos de jornais chovem como granizo, na maioria com um cinismo de expressões pouco evangélico. Em vários deles é uma raiva que beira o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa ao arrependimento e as penas só serão eternas para os que jamais se arrependerem; e porque proclamamos a clemência e a bondade de Deus, somos heréticos votados à execração, e a Sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; convidam as autoridades a nos perseguirem em nome da moral e da ordem pública e acham que deixando-nos tranquilos elas não cumprem o seu dever!

Aqui se apresenta um problema interessante. Pergunta-se por que esse desencadeamento contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas. A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados, discutidos, controvertidos numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé: Deus, a alma e a imortalidade, não foram publicamente atacados sem que ela se movesse? Jamais o sansimonismo, o fourierismo, a própria igreja do Padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de falecer, que têm um culto, seu jornal, e não admitem a divindade do Cristo; e os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e encomendam os mortos. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! O partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, se dão as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. O espírito humano apresenta realmente singulares originalidades, quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.

A resposta está inteira nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon[1]:

“Em geral nada é mais abjeto, mais degradado, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e com isso nada perdereis. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam construído mais leitos nos hospícios de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras malsãs? Faremos delas o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso, e dessa maneira conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, e preservaremos as vítimas dessas lamentáveis ilusões de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”

Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo o que fazem para travar essa ideia que desliza sobre suas armadilhas, se reergue sob seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indiscutível e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível desta epidemia que ataca até homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade, é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais dele fala. (Ver o artigo “Sermões contra o Espiritismo, na Revista de fevereiro de 1863).

O que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público para as nossas reuniões? Temos nossos missionários de propaganda? Temos o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação ostensivos e secretos que possuís e usais largamente? Não. Para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para desviá-los. Contentamo-nos em dizer: “Lede, e se isto vos convém, voltai a nós” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel, sem animosidade, sem azedume, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa.

Eis, entre milhares, uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários:

Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de A questão do sobrenatural, os mortos e os vivos, do Pe. Matignon; de A questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; do Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, enfim, de diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram mais do que atrair-me completamente para a doutrina de O livro dos Espíritos, e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais frutífera.”

Por vezes a paixão cega a ponto de fazer cometer singulares inconsequências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações, cujo sucesso fabuloso, etc.” Ele não percebe que essas duas proposições se destroem reciprocamente. Uma coisa sem atrativo não teria qualquer sucesso, porque só terá sucesso com a condição de ter atrativo, com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Ele acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido construídos mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que teriam sido precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, porque todos os espíritas são loucos. Por outro lado, desde que são inépcias, não têm nenhum valor. Por que então lhes dar as honras de tantos sermões, mandamentos e brochuras? Sobre essa questão de emprego do dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, certamente inconformada, achava que os dois milhões fornecidos por essa cidade ao chanceler de São Pedro, teriam dado pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (Nº. 597). Nós dissemos: “... quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico, mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para nos dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem verificá-la no original? Um livro que apareceu pouco antes de O livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria teogônica e cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque o faz composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal que tem um estômago, come e digere, e de cuja digestão os homens são o mau produto. Contudo, nem uma palavra foi dita para combatê-lo. Todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar, mas truncam e desnaturam as máximas, para acrescentar ao horror que deve inspirar essa abominável doutrina, e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que o Pe. Nampon cita uma frase da introdução de O livro dos Espíritos, pág. XXXIII, dizendo: “Certas pessoas, dizeis vós mesmo, entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Temos assim o ar de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o § XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um fragmento de uma frase de um autor, poder-se-ia “levá-lo à forca”. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com esse sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando ele demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas consequências para o futuro.

O Pe. Nampon chega, até, a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas ideias. Diz ele: “O autor às vezes chama Jesus Cristo Homem-Deus; mas alhures (Livro do médiuns, item 259), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus, lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então vós sois Jesus?” Sim, acrescenta o Pe. Nampon, Jesus é chamado Filho de Deus; é pois, num sentido ariano, e sem ser por isto consubstancial ao Pai.”

Para começar, não era o médium que se dizia Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente, e a citação é precisamente feita para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e manter os médiuns em guarda contra seus subterfúgios.

Vós pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo. Onde vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a consequência de toda a doutrina. Ah! Se entrarmos no terreno das interpretações, poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição; que tinha tido necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão, porque dele faríamos nem mesmo um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem era necessário o sofrimento a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Então! Aquilo que jamais dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Há algum tempo vimos, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de haver bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que ele foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 109, v. 7.) É o comentário desse versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e em consequência disso erguerá sua cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput).” Se, pois, FOI PRECISO que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se ELE NÃO PÔDE ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória, nem no mais alto dos céus, isto é, não estava com Deus. Seus sofrimentos não eram, pois, só em proveito da Humanidade, porque necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta às Vésperas, todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe, dizíamos nós. Se quiséssemos citar as de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está à vossa direita; ele quebrará os reis no dia de sua cólera”, será fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.

“A vida futura, diz ainda o Pe. Nampon, muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma se reduz a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficaria sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança, durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito entra em sua vida primitiva (vida espírita) todo seu passado se desdobra em sua frente: Ele vê as faltas cometidas, e que são causa de seu sofrimento, e o que poderia ter-lhe impedido de cometê-las. Ele compreende que a posição que lhe foi dada é justa, e então procura a existência que poderia reparar a que acaba de escoar-se:” (O livro dos Espíritos, nº. 393). Uma vez que há lembrança do passado, consciência do ser, há, então, identidade moral.

Uma vez que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, e que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu, mas comete o erro de fazer citações truncadas e de fazê-lo dizer o contrário do que diz.

O Espiritismo é acusado por alguns de basear-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa consequência, tirada de um princípio exposto incompletamente. Jamais o Espiritismo confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório, como o corpo é outro envoltório. Tivesse ela dez envoltórios, isto nada tiraria de sua essência imaterial. Já não é o mesmo com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné - França, na sua segunda sessão, a 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “A autoridade da Igreja ordena crer que a alma é apenas a forma substancial do corpo; que não há ideias inatas, e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de direito, ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos sobre a origem da alma, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis referidas nas Escrituras, manifestações que não podem deixar de ser materiais, pois que impressionam os sentidos, tenha confundido a alma com o seu envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.

“Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Vá, seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento verdadeiro e, consequentemente, a linguagem de São João, de São Paulo, de Santo Agostinho, de Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos absolutamente contrários aos que ficarão para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que esses personagens não se enganaram em nada; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Ele sustentava a existência dos íncubos e súcubos, e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que ele não pudesse pensar, a tal respeito, como Espírito, de modo diverso do que pensava como homem, e que hoje ensinasse essas doutrinas? Se as suas ideias tiveram que ser modificadas sobre certos pontos, devem ter sido sobre outros. Se ele se enganou, ele, o gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis, e seria necessário, por respeito pela ortodoxia, negar-lhe o direito, ou melhor, negar-lhe o mérito de retratar-se de seus erros?

“Atribuís a São Luís esta frase ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O livro dos Espíritos, nº. 1007). Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Há Espíritos que jamais se arrependem? São Luís respondeu: “Há aqueles cujo arrependimento é muito tardio, mas pretender que eles jamais se melhorarão seria negar a lei do progresso e dizer que a criança não se tornará adulto.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? Aos que não lerem senão os comentários inexatos? Mas o número é muito pequeno comparado com o daqueles que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não deixa de ser favorável ao Espiritismo.



[1] Sermão pregado na igreja primacial de São João Batista, em presença de S. Eminência o Cardeal Arcebispo de Lyon, a 14 e 21 de dezembro, pelo Rev. Pe. Nampon, da Companhia de Jesus,pregador do Advento.


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