Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Vimos, por nossa vez, lançar algumas flores sobre o túmulo recentemente fechado de um homem tão recomendável pelo saber quanto pelas qualidades morais, e ao qual, coisa rara, todos os partidos concordam em fazer justiça.

Jean Reynaud, nascido em Lyon em fevereiro de 1808, morreu em Paris a 28 de junho de 1863. Não poderíamos dar uma ideia mais justa de seu caráter do que reproduzindo o curto e tocante necrológio que seu amigo, Sr. Ernest Legouvé, publicou no Siècle de 30 de junho de 1863:

“A democracia, a filosofia e, não receio dizer, a religião, acabam de sofrer uma perda imensa: Jean Reynaud morreu ontem, após uma curta moléstia. De qualquer ponto de vista que se julguem as suas doutrinas, sua obra, bem como a sua vida, foi eminentemente religiosa, porque tanto sua vida quanto sua obra foram um dos protestos mais eloquentes contra o grande flagelo que nos ameaça: o cepticismo, sob todas as suas formas. Ninguém acreditou mais energicamente na personalidade divina; ninguém acreditou mais energicamente na personalidade humana; ninguém amou mais ardentemente a liberdade. No seu livro Terre et Ciel, que desde o início abriu um sulco tão profundo, e cuja lembrança ir-se-á marcando cada vez mais, nesse livro respira um tal sentimento do infinito, um tal sentimento da presença divina que, pode-se dizer, Deus aí palpita em cada página! E como poderia ser de outro modo, quando aquele que escreveu essas páginas vivia sempre em presença de Deus? Sabemos bem, todos nós que o conhecemos e o amamos, e cujo mais belo título de honra é termos sido amados por tal homem, que ele era uma fonte de vida moral sempre a jorrar. Ninguém podia dele se aproximar sem se firmar melhor no bem; só o seu rosto era uma lição de direitura, de honra, de devotamento. As almas decaídas se perturbavam ante aquele claro olhar, como diante do próprio olho da justiça.

E tudo isto partiu! Partiu em plena força, quando tantas palavras úteis, tão grandes exemplos ainda podiam sair daquela boca, daquele coração!...

“Não choramos Reynaud apenas por nós. Nós o choramos por nosso país inteiro.

“E. LEGOUVÉ”

No mesmo jornal de 16 de julho, o Sr. Henri Martin deu detalhes mais circunstanciados sobre a vida e as obras de Jean Reynaud. Diz ele:

“Criado na liberdade do campo por uma mãe de alma forte e terna, foi aí que ele adquiriu esses hábitos de intimidade com a Natureza que jamais o deixaram, e desenvolveu esses órgãos robustos, com os quais, mais tarde, fazia vinte léguas de um fôlego e passava de geleira a geleira, de uma a outra crista dos Alpes, por estreitas cornijas onde não se aventuram os caçadores de cabrito montês.

“Seus estudos foram rápidos e fecundos. Manifestando desde a juventude o mais vivo gosto pelas letras e por todas as formas do belo, a princípio voltou as vistas para as ciências, feliz direção que lhe devia fornecer o alimento e os instrumentos para o pensamento e fazer do sábio o servidor útil do filósofo. Egresso da primeira turma da Escola Politécnica, era engenheiro de minas na Córsega, no momento da eclosão da revolução de julho. Voltou a Paris, onde o sansimonismo acabava de irromper, e foi envolvido nesse grande e singular movimento, que então empolgava tantas inteligências jovens pela atração do dogma da perfectibilidade do gênero humano. Contudo, a escola pretendeu tornar-se uma igreja. Jean Reynaud não a acompanhou, trocando-a pela democracia. Tratou de reconstituir um grupo e um centro de ação intelectual com os amigos que dela se haviam separado ao mesmo tempo que ele. Pierre Leroux, Carnot e ele retomaram das mãos de Julien (de Paris) a Revue Encyclopédique. Foi aí que Pierre Leroux publicou seu notável Essai sur la doctrine du progrés continu, e Jean Reynaud o trecho tão atraente do Infinité des Cieux, germe de seu grande livro Terre et Ciel. Em seguida fundou com Pierre Leroux a Encyclopédie Nouvelle, obra imensa, que ficou inacabada.

“O 24 de fevereiro roubou o filósofo aos seus pacíficos trabalhos, para atirá-lo na política ativa. Presidente da comissão de altos estudos científicos e literários, depois Subsecretário de Estado no Ministério da Instrução Pública, elaborou com o ministro Carnot, um dos seus mais antigos e mais constantes amigos, planos destinados a pôr a instrução pública no nível das instituições democráticas.

“Transferido da Instrução Pública para o Conselho de Estado, Jean Reynaud aí conquistou rapidamente uma autoridade que procedia tanto de seu caráter quanto de suas luzes e, por mais curta que tivesse sido ali a sua passagem, deixou na memória dos mais eminentes especialistas uma inapagável impressão.”

De todos os escritos de Jean Reynaud, o que mais contribuiu para a sua popularidade foi, sem contradita, seu livro Terre et Ciel, posto a forma abstrata da linguagem não o ponha ao alcance de todos; mas a profundeza das ideias e a lógica das deduções o tornaram apreciado por todos os pensadores sérios e colocaram o autor na primeira linha dos filósofos espiritualistas.

Essa obra pareceu à Igreja um perigo para a ortodoxia da fé. Em consequência, foi condenada e posta no Index pela cúria de Roma, o que aumentou ainda o crédito de que já desfrutava e a tornou procurada com avidez. Na época em que a obra apareceu, lá por 1840, ainda não se cogitava dos Espíritos, contudo, Jean Reynaud parece ter tido, como aliás muitos outros escritores modernos, a intuição e o pressentimento do Espiritismo, do qual foi um dos mais eloquentes precursores. Como Charles Fourier, ele admite o progresso indefinido da alma e, como consequência desse progresso, a necessidade da pluralidade das existências, demonstrada pelos diversos estados do homem na Terra.

Jean Reynaud nada tinha visto. Tudo tirou de sua profunda intuição. O Espiritismo viu o que o filósofo apenas tinha pressentido, assim, acrescentou a sanção da experiência à teoria puramente especulativa e, naturalmente, a experiência o levou a descobrir detalhes que só a imaginação não podia entrever, mas que vêm completar e corroborar os pontos fundamentais. Como todas as grandes ideias que revolucionaram o mundo, o Espiritismo não nasceu de súbito. Ele germinou em mais de um cérebro e mostrou-se, aqui e ali, pouco a pouco, como que para habituar os homens à ideia. Uma brusca aparição completa teria encontrado uma resistência muito viva, teria deslumbrado sem convencer.

Aliás, cada coisa deve vir a seu tempo, e toda planta deve germinar e crescer antes de atingir seu completo desenvolvimento. Dá-se o mesmo em política, pois não há revolução que não tenha sido demoradamente elaborada, e quem quer que, guiado pela experiência e pelo estudo do passado, siga atentamente essas preliminares, pode, com segurança e sem ser profeta, prever-lhe o desenlace. Foi assim que os princípios do Espiritismo moderno se mostraram parcialmente e sob diversas faces, em várias épocas: no último século, com Swedenborg; no começo deste século, com a doutrina dos teósofos, que admitiam claramente as comunicações entre o mundo visível e o invisível; com Charles Fourier, que admite o progresso da alma pela reencarnação; com Jean Reynaud, que admite o mesmo princípio, sondando o infinito com a ciência às mãos; há doze anos, nas manifestações americanas, que tiveram tão grande repercussão e vieram provar as relações materiais entre mortos e vivos e, finalmente, na filosofia espírita, que reuniu esses diversos elementos em corpo de doutrina e lhes deduziu as consequências morais.

Quem diria, quando se ocupavam das mesas girantes, que desse divertimento sairia toda uma filosofia? Quando essa filosofia apareceu, quem teria dito que em poucos anos faria a volta ao mundo e conquistaria milhões de adeptos? Hoje, quem poderia afirmar que ela disse a última palavra? Certamente não disse, pois se as bases fundamentais estão estabelecidas, ainda há muitos detalhes a elucidar e que virão a seu tempo. Depois, quanto mais se avança, mais se vê quanto são múltiplos os interesses que ela abrange, pois pode-se dizer sem exagero que ela abarca todas as questões da ordem social. Assim, só o futuro lhe pode desenvolver todas as consequências, ou melhor, suas consequências desenvolver-se-ão por si mesmas, pela força das coisas, porque no Espiritismo se encontra o que inutilmente se buscou alhures. Por isto mesmo ser-se-á levado a reconhecer que só ele pode encher o vazio moral que diariamente se faz em torno do homem, vazio que ameaça a própria Sociedade na sua base, e cujo temor já se começa a sentir.

Num dado momento, o Espiritismo será a tábua de salvação, mas não era preciso esperar esse momento para atirar a corda de salvamento, assim como não se espera a época da colheita para semear.

Em sua sabedoria, a Providência prepara as coisas devagar. Eis por que a ideia matriz tem tido, como dissemos, numerosos precursores que abriram caminho e prepararam o terreno para receber a semente, uns num sentido, outros noutro, e um dia reconhecer-se-á por quais numerosos fios todas essas ideias parciais se ligam à ideia fundamental. Ora, cada uma dessas ideias tem seus partidários, disso resultando nuns uma predisposição muito natural para aceitar o complemento da ideia, pois cada uma dessas ideias preparou uma porção do terreno. Sem contradita, aí está uma das causas dessa propagação, que chega às raias do prodígio e da qual nenhum exemplo oferece a história das doutrinas filosóficas. Já os adversários se espantam com a resistência que ele apresenta aos seus ataques. Mas tarde terão que ceder ante a força da opinião.

Entre os precursores do Espiritismo há que colocar uma porção de escritores contemporâneos, cujas obras estão semeadas, talvez malgrado seu, de ideias espíritas. Ter-se-ia que escrever volumes, se se quisesse recolher as inumeráveis passagens em que se faz uma alusão mais ou menos direta à preexistência e à sobrevivência da alma; à sua presença entre os vivos; às suas manifestações; às suas peregrinações através de mundos progressivos; à pluralidade de existências, etc. Admitindo que, da parte dos autores, isto não passe de um jogo de imaginação, a ideia não se filtra menos no espírito das massas, onde fica latente até o momento de ser demonstrada como verdade.

Haverá um pensamento mais espírita que o que se encerra na carta do Sr. Victor Hugo, sobre a morte da Sra. Lamartine, e que a maior parte dos jornais aclamaram com entusiasmo, mesmo os que glosam com mais rigor a crença nos Espíritos? Eis a carta, que diz muito em poucas linhas:

“Hauteville-House, 23 de maio.

“Caro Lamartine,

“Uma grande desgraça vos fere. Necessito pôr meu coração junto do vosso. Eu venerava aquela que amáveis. Vosso alto espírito vê além do horizonte. Percebeis distintamente a vida futura.

“Não é a vós que se precisa dizer: Esperai. Sois daqueles que sabem e esperam.

“Ela é sempre vossa companheira, invisível, mas presente. Perdestes a esposa, mas não a alma. Caro amigo, vivamos nos mortos.


“VICTOR HUGO”

Não são apenas os escritores isolados que semeiam, aqui e ali, algumas ideias, é a própria Ciência que vem preparar os caminhos. O magnetismo foi o primeiro passo para o conhecimento da ação perispiritual, fonte de todos os fenômenos espíritas. O sonambulismo foi a primeira manifestação isolada da alma. A frenologia provou que o organismo cerebral é um teclado a serviço do princípio inteligente para a expressão das diversas faculdades, pois contrariamente à intenção de Gall, seu fundador, que era materialista, ela serviu para provar a independência do Espírito e da matéria. Provando o poder de ação da matéria espiritualizada, a homeopatia se liga ao papel importante que representa o perispírito em certas afecções; ataca o mal em sua própria fonte, que está fora do organismo, cuja alteração é apenas consecutiva. Tal a razão pela qual a homeopatia triunfa numa porção de casos em que falha a medicina ordinária: mais que esta, ela leva em conta o elemento espiritualista, tão preponderante na economia, o que explica a facilidade com que os médicos homeopatas aceitam o Espiritismo e por que a maioria dos médicos espíritas pertencem à escola de Hahnemann. Enfim, não é senão até as recentes descobertas sobre as propriedades da eletricidade, que vieram trazer seu contingente na questão que nos ocupa, que se lança um pouco de luz sobre o que poderia ser chamado a fisiologia dos Espíritos.

Não terminaríamos mais se quiséssemos analisar todas as circunstâncias, pequenas ou grandes, que há meio século vieram abrir a rota à filosofia nova. Veríamos as mais contraditórias doutrinas provocarem o desenvolvimento da ideia; os próprios acontecimentos políticos prepararem sua introdução na vida prática; mas, de todas as causas, a mais preponderante é a Igreja, que parece predestinada a fatalmente impulsioná-la.

Tudo lhe vem em auxílio, e se conhecessem os inúmeros documentos que nos chegam de toda parte; se pudessem acompanhar, como nós, essa marcha providencial através do mundo, favorecida pelos acontecimentos menos esperados e que, à primeira vista, lhe pareceriam contrários, compreenderiam melhor quanto ela é irresistível, e se admirariam menos de nossa impassibilidade. É que vemos todos trabalhando para isso, de bom grado ou de mau grado, voluntária ou involuntariamente; é que vemos o objetivo e sabemos quando e como será alcançado; vemos o conjunto que avança, e por isso nos inquietamos pouco com algumas individualidades que marcham às avessas.

Assim, Jean Reynaud foi um precursor do Espiritismo por seus escritos. Ele também tinha sua missão providencial e devia abrir um sulco. Ser-lhe-á útil após a morte.

Um eminente Espírito deu a apreciação seguinte sobre a ocorrência:

“Mais uma circunstância que vai ser favorável ao Espiritismo. Jean Reynaud tinha feito o que devia fazer nesta última existência. Vão falar de sua morte, de sua vida e, mais do que nunca, de suas obras. Ora, falar de suas obras é pôr o pé no caminho do Espiritismo.

“Muitas inteligências aprenderão nossa crença estudando esse filósofo que ganhou autoridade. Compreender-se-á e ver-se-á que não sois tão loucos como pretendem os que riem de vós e de vossa fé. Tudo quanto Deus faz é bem feito, crede-me. Ele será louvado por vossos detratores, e sabeis que são eles que, sem o querer, trabalham mais para vos arranjar adeptos.

“Deixai agir. Deixai gritar. Tudo será conforme à vontade de Deus.

“Ainda um pouco de paciência e o escol dos homens de inteligência e de saber unir-se-á convosco e, ante certas adesões ostensivas, a crítica terá que baixar a voz.


SANTO AGOSTINHO

Nota – Ver adiante, nas dissertações, algumas comunicações de Jean Reynaud.


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