O Céu e o Inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo

Allan Kardec

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Jacques Latour

Assassino, condenado pelo tribunal de Foix, e executado em setembro de 1864.

Numa reunião espírita íntima de sete a oito pessoas, que ocorreu em Bruxelas, em 13 de setembro de 1864, e à qual nós assistíamos, pediu-se a uma senhora médium que escrevesse; não sendo feita nenhuma evocação especial, ela traça com uma agitação extraordinária, em enormes caracteres, e depois de ter rasurado violentamente o papel, estas palavras:

“Estou arrependido! Estou arrependido! Latour.” Surpreendidos por esta comunicação inesperada, que nada provocara, pois ninguém pensava nesse desgraçado cuja morte a maioria dos assistentes até ignorava, algumas palavras de comiseração e de encorajamento são dirigidas ao Espírito; depois fazem-lhe esta pergunta:

Que motivo pôde vos empenhar a vir aqui em vez de em outro lugar, visto que nós não vos chamamos?

A médium, que é também médium falante, responde de viva voz:

“Eu vi que vós éreis almas compassivas e que teríeis compaixão de mim, ao passo que outros me evocam mais por curiosidade do que por verdadeira caridade, ou de mim se afastavam horrorizados.Começou então uma cena indescritível que não durou menos de meia hora. Juntando a médium à palavra os gestos e a expressão da fisionomia, é evidente que o Espírito se identificou com a sua pessoa; por vezes suas inflexões de desespero são tão dilaceradoras, ele pinta suas angústias e seus sofrimentos com um tom tão desolado, suas súplicas são tão veementes, que todos os assistentes ficam profundamente emocionados.

Alguns estavam mesmo assustados pela superexcitação da médium, mas pensávamos que a comunicação de um Espírito que se arrepende e que implora compaixão não oferecia nenhum perigo. Se tomou emprestados os órgãos da médium foi para descrever melhor sua situação e provocar mais interesse pelo seu destino, mas não, como os Espíritos obsessores e possuidores, com vistas a tomar conta dela para dominá-la. Isso lhe foi sem dúvida permitido em seu próprio interesse, e talvez também para a instrução das pessoas presentes.

Ele exclama:

“Oh! sim, compaixão! Preciso muito de compaixão, pois não sabeis o que sofro!... não, não sabeis; não podeis compreendê-lo.... é horrível!.... a guilhotina!... o que isso é, ao lado do que suporto agora? Não é nada; é um instante. Mas este fogo que me devora é pior, é uma morte contínua; é um sofrimento que não dá trégua nem repouso... que não tem fim!

“E minhas vítimas que estão aqui, à minha volta... que me mostram suas feridas...., que me perseguem com seus olhares!... Elas estão aqui, diante de mim, vejo-as todas... sim, todas..., vejo-as todas; não posso evitá-las!... E essa poça de sangue!.... e esse ouro sujo de sangue!... tudo está aqui! Sempre diante de mim?... Sentis o cheiro do sangue?... Sangue, sempre sangue!... Ei-las, essas pobres vítimas ; elas me imploram... e eu, sem compaixão, golpeio... golpeio... golpeio sempre!... O sangue inebria-me!

“Acreditava que depois da minha morte tudo estaria acabado; foi por isso que enfrentei o suplício; enfrentei Deus, reneguei-o!... E eis que, quando achava que estava aniquilado para sempre, um despertar terrível ocorre...; oh! sim, terrível!... estou cercado de cadáveres, de figuras ameaçadoras... caminho no sangue... Acreditava estar morto, e estou vivo!... É medonho!... é horrível! Mais horrível do que todos os suplícios da terra!

“Oh! se todos os homens pudessem saber o que há além da vida! Eles saberiam o que custa fazer o mal; não haveria mais assassinos, mais criminosos, mais malfeitores! Eu gostaria que todos os assassinos pudessem ver o que eu vejo e o que suporto... Oh! não, não haveria mais assassinos... é medonho demais sofrer o que estou sofrendo!

“Sei bem que mereci isto, ó meu Deus! pois não tive compaixão das minhas vítimas; repeli suas mãos suplicantes quando elas me pediam para poupá-las. Sim, eu mesmo fui cruel; matei-as covardemente para ficar com o seu ouro!.... Fui ímpio; reneguei-vos; blasfemei vosso santo nome... Quis fazer por esquecer; é por isso que queria persuadir-me de que vós não existíeis... Ó meu Deus! sou um grande criminoso! Compreendo isso agora. Mas não tereis compaixão de mim?.. Vós sois Deus, ou seja, a bondade, a misericórdia! Vós sois onipotente!

“Compaixão, Senhor! Oh! compaixão! Compaixão! Peço-vos, não sejais inflexível; livrai-me desta visão odiosa, destas imagens terríveis..., deste sangue..., das minhas vítimas cujos olhares me penetram até o coração como punhaladas.

“Vós que aqui estais, que me escutais, sois boas almas, almas caridosas; sim, eu o vejo, vós tereis compaixão de mim, não é? Vós orareis por mim... Oh! suplico-vos! Não me repilais. Vós pedireis a Deus para me tirar este horrível espetáculo da frente dos olhos; ele escutar-vos-á, porque sois bons... Peço-vos, não me repilais como repeli os outros... Orai por mim.”

Os assistentes, comovidos com seus lamentos, dirigiram-lhe palavras de encorajamento e consolo. Deus, disseram-lhe, não é inflexível; o que ele pede ao culpado é um arrependimento sincero e o desejo de reparar o mal que fez.

Visto que vosso coração não está endurecido, e lhe pedis perdão pelos vossos crimes, ele estenderá sobre vós a sua misericórdia, se perseverardes nas vossas boas resoluções para reparar o mal que fizestes. Não podeis sem dúvida devolver a vossas vítimas a vida que lhes tirastes, mas, se pedirdes com fervor, Deus vos concederá encontrar-vos com elas numa nova existência, na qual podereis mostrar-lhes tanta dedicação quanto fostes cruel; e quando ele julgar suficiente a reparação, recuperareis a graça junto dele. A duração do vosso castigo está assim nas vossas mãos; depende de vós abreviá-lo; prometemos ajudar-vos com nossas preces, e chamar sobre vós a assistência dos bons Espíritos. Vamos dizer em vossa intenção a prece contida no Evangelho segundo o Espiritismo para os Espíritos sofredores e arrependidos. Não diremos a prece para os maus Espíritos, porque, tão logo vos arrependeis, implorais a Deus, e renunciais a fazer o mal, não sois mais aos nossos olhos senão um Espírito infeliz, e não mau. Dita esta prece, e após alguns instantes de calma, o Espírito retoma:

“Obrigado, meu Deus!... oh! obrigado! Vós tivestes compaixão de mim; essas horríveis imagens se afastam... Não me abandoneis... enviai-me vossos bons Espíritos para me apoiar... Obrigado.”

Depois desta cena, a médium fica, durante algum tempo, cansada e abatida; seus membros estão extenuados. Ela tem a lembrança, primeiro confusa, do que acaba de ocorrer; depois, pouco a pouco, lembra-se de algumas das palavras que pronunciou, e que dizia contra sua vontade; sentia que não era ela que falava.

No dia seguinte, numa nova reunião, o Espírito se manifesta outra vez, e recomeça, durante alguns minutos somente, a cena da véspera, com a mesma pantomima expressiva, mas menos violenta; depois ele escreve, pela mesma
médium, com uma agitação febril, as palavras seguintes:

“Obrigado pelas vossas preces; uma melhora sensível se produz em mim. Orei a Deus com tanto fervor, que ele me permitiu que, por um momento, meus sofrimentos sejam aliviados; mas ainda verei as minhas vítimas... Ei-las! Eilas!... Vedes este sangue?...”

(A prece da véspera é repetida. O Espírito continua, dirigindo-se à médium: )

“Perdão por me apoderar de vós. Obrigado pelo alívio que trazeis aos meus sofrimentos; perdoai-me todo o mal que vos causei; mas preciso manifestar-me; só vós podeis...

“Obrigado! Obrigado! produz-se um pouco de alívio; mas não cheguei ao fim das minhas provas. Logo minhas vítimas voltarão mais uma vez. Eis a punição; eu a mereci, meu Deus, mas sede indulgente.
“Vós todos, orai por mim; tende compaixão de mim.” LATOUR

Um membro da Sociedade Espírita de Paris, que orou por esse infeliz Espírito e o evocou, obteve dele as comunicações seguintes, a diferentes intervalos:

I

Fui evocado quase logo depois da minha morte, e não pude comunicarme então, mas muitos Espíritos levianos tomaram meu nome e meu lugar. Aproveitei a presença em Bruxelas do presidente da Sociedade de Paris, e com a permissão dos Espíritos superiores, comuniquei-me. Virei comunicar-me na Sociedade, e farei revelações que serão um começo de reparação das minhas faltas, e que poderão servir de ensinamento para todos os criminosos que me lerem e que refletirem sobre o relato dos meus sofrimentos.

Os discursos sobre as penas do inferno fazem pouco efeito sobre o espírito dos culpados, que não creem em todas essas imagens, assustadoras para as crianças e os homens fracos. Ora, um grande malfeitor não é um Espírito pusilânime, e o temor da polícia age mais sobre ele do que o relato dos tormentos do inferno. Eis porque todos os que me lerem ficarão impressionados com minhas palavras, meus sofrimentos, que não são suposições. Não há um único padre que possa dizer: “Eu vi aquilo que vos digo, eu assisti às torturas dos condenados às penas eternas.” Mas, quando eu vier dizer: “Eis o que aconteceu depois da morte do meu corpo; eis qual foi meu desencantamento, ao reconhecer que não tinha morrido, como esperara, e que o que eu tomara pelo fim dos meus sofrimentos era o começo de torturas impossíveis de descrever!” então, mais de um se deterá à beira do precipício onde ia cair, cada desgraçado que eu detiver assim no caminho do crime servirá para resgatar uma de minhas faltas. É assim que o bem sai do mal, e que a bondade de Deus se manifesta por toda a parte, na terra como no espaço.

Foi-me permitido ser libertado da visão de minhas vítimas, que se tornaram meus carrascos, a fim de me comunicar convosco; mas ao deixar-vos revê-las-ei, e só esse pensamento me faz sofrer mais do que posso dizer. Fico feliz quando me evocam, pois então deixo o inferno por alguns instantes. Orai sempre por mim; pedi ao Senhor para que ele me liberte da visão das minhas
vítimas. Sim, oraremos juntos, a prece faz tanto bem!... Estou mais aliviado; já não sinto tanto o peso do fardo que me oprime. Vejo uma luz de esperança que brilha aos meus olhos, e cheio de arrependimento, exclamo: Bendita seja a mão de Deus; que seja feita a sua vontade!

II

O MÉDIUM. – Em vez de pedir a Deus para vos livrar da visão de vossas vítimas, exorto-vos a orar comigo para lhe pedir a força para suportar essa tortura expiatória.

LATOUR. – Teria preferido ficar livre da visão das minhas vítimas. Se soubésseis o que sofro? O homem mais insensível ficaria comovido se pudesse ver, impressas no meu rosto como com fogo, os sofrimentos da minha alma. Farei o que me aconselhais. Compreendo que é um meio um pouco mais rápido de expiar as minhas faltas. É como uma operação dolorosa que deve devolver a saúde ao meu corpo bem doente.

Ah! Se os culpados da terra me pudessem ver, como ficariam assustados com as consequências de seus crimes que, ocultos aos olhos dos homens, são vistos pelos Espíritos! Como a ignorância é fatal para tantos pobres coitados!

Que responsabilidade assumem aqueles que recusam a instrução às classes pobres da sociedade! Eles creem que com a polícia podem prevenir oscrimes. Como estão errados!

III

Os sofrimentos que suporto são horríveis, mas desde vossas preces, sinto-me assistido por bons Espíritos que me dizem para ter esperança. Compreendo a eficácia do remédio heroico que me aconselhastes, e peço ao Senhor que me conceda a força de suportar esta dura expiação. Ela é igual, posso dizê-lo, ao mal que fiz. Não quero procurar desculpar meus crimes; mas ao menos, salvo os poucos instantes de terror que precederam, para cada uma das minhas vítimas, o momento da morte, a dor, uma vez cometido o crime, cessou para elas, e aquelas que tinham terminado suas provas terrestres foram receber a recompensa que as esperava. Mas, desde meu retorno ao mundo dos Espíritos, não cessei de sofrer as dores do inferno, exceto nos momentos bem curtos em que me comuniquei.

Os padres, apesar do seu quadro assustador das penas que os condenados sentem, não têm senão uma ideia bem fraca dos verdadeiros sofrimentos que a justiça de Deus inflige aos seus filhos que violaram sua lei de amor e de caridade. Como fazer crer a pessoas sensatas que uma alma, ou seja, algo que não é material, possa sofrer em contato com o fogo material? É absurdo, e eis porque tantos criminosos se riem dessas pinturas fantásticas do inferno. Mas não acontece o mesmo com a dor moral que o condenado suporta, após a morte física. Orai por mim, para que o desespero não se apodere de mim.

IV

Agradeço-vos pelo objetivo que me fazeis entrever, objetivo glorioso ao qual sei que chegarei quando me tiver purificado. Sofro muito, e, no entanto, parece-me que meus sofrimentos diminuem. Não posso acreditar que, no mundo dos Espíritos, a dor diminui porque nos acostumamos a ela pouco a pouco. Não. Compreendo que vossas boas preces aumentaram minhas forças, e se minhas dores são as mesmas, sendo maior a minha força, sofro menos. Meu pensamento se reporta à minha última existência, às faltas que eu poderia ter evitado se tivesse sabido orar. Compreendo hoje a eficácia da prece; compreendo a força dessas mulheres honestas e piedosas, fracas na carne, mas fortes pela fé; compreendo esse mistério que os falsos sábios da terra não compreendem. Prece! Só essa palavra já excita a zombaria dos espíritos fortes. Espero por eles no mundo dos Espíritos, e quando o véu que lhes oculta a verdade se rasgar para eles, por sua vez virão prosternar-se aos pés do Eterno que eles desconheceram, e ficarão felizes de se humilhar para se reabilitarem de seus pecados e de seus crimes! Compreenderão a virtude da prece. Orar é amar; amar é orar! Então, eles amarão o Senhor e dirigir-lhe-ão suas preces de amor e de reconhecimento, e, regenerados pelo sofrimento, pois deverão sofrer, orarão como eu para ter a força de expiar e de sofrer, orarão para agradecer ao Senhor o perdão que terão merecido por sua submissão e sua resignação. Oremos, irmão, para me fortalecer mais ainda... Oh! obrigado, irmão, pela tua caridade, pois sou perdoado. Deus me livra da visão das minhas vítimas. Oh! meu Deus, sede abençoado durante toda a eternidade pela graça que me concedeis! Ó meu Deus! sinto a enormidade dos meus crimes, e precipito-me diante de vossa onipotência. Senhor! Eu vos amo de todo o coração, e peço-vos a graça de me permitir, quando vossa vontade me enviar para suportar na terra novas provas, vir aqui, missionário de paz e de caridade, ensinar as crianças a pronunciar vosso nome com respeito. Peço-vos poder ensiná-las a amar-vos, vós Pai de todas as criaturas. Oh! obrigado, meu Deus! Sou um Espírito arrependido, e meu arrependimento é sincero. Eu vos amo, tanto quanto meu coração tão impuro pode compreender esse sentimento, pura emanação de vossa divindade. Irmão, oremos, pois meu coração transborda de reconhecimento. Sou livre, quebrei meus ferros, não sou mais um reprovado, sou um Espírito sofredor, mas arrependido, e gostaria que meu exemplo pudesse reter no umbral do crime todas essas mãos criminosas que vejo prestes a se levantar. Oh! parai, irmãos, parai! Pois as torturas que preparais para vós mesmos serão atrozes. Não acrediteis que o Senhor se deixará sempre enternecer tão prontamente pela prece de seus filhos. São séculos de tortura que vos esperam.

O guia do médium. Tu não compreendes, dizes, as palavras do Espírito. Dá-te conta da sua emoção e do seu reconhecimento para com o Senhor; ele não crê poder melhor exprimi-la e prová-la do que tentando deter todos esses criminosos que ele vê e que tu não podes ver. Ele gostaria que suas palavras chegassem até eles, e o que ele não te disse, porque ainda o ignora, é que lhe será permitido começar missões reparadoras. Ele irá para perto de seus cúmplices procurar inspirar-lhes arrependimento, e introduzir nos seus corações o germe do remorso. Às vezes veem-se na terra pessoas que se acreditava serem honestas virem aos pés de um padre acusar-se de um crime. É o remorso que lhes dita a confissão da falta. E se o véu que te separa do mundo invisível se levantasse, verias com frequência um Espírito que foi o cúmplice ou o instigador do crime, vir, como fará Jacques Latour, procurar reparar sua falta, inspirando o remorso ao Espírito encarnado.

Teu guia protetor. A médium de Bruxelas, que tivera a primeira comunicação de Latour, recebeu dele mais tarde a comunicação seguinte:

“Não temais mais nada de mim; estou mais tranquilo, porém ainda estou sofrendo. Deus teve compaixão de mim, pois viu meu arrependimento. Agora, sofro desse arrependimento que me mostra a enormidade das minhas faltas.

“Se eu tivesse sido bem guiado na vida, não teria feito todo o mal que fiz; mas meus instintos não foram reprimidos, e obedeci a eles, não tendo conhecido nenhum freio. Se todos os homens pensassem mais em Deus, ou pelo menos se todos os homens acreditassem nele, não se cometeriam mais semelhantes crimes.

“Mas a justiça dos homens é mal entendida; por uma falta, às vezes leve, um homem é encerrado numa prisão que é sempre um lugar de perdição e de perversão. Ele sai dali completamente perdido pelos maus conselhos e os maus exemplos que de lá tirou. Se, no entanto, sua natureza for suficientemente boa e suficientemente forte para resistir ao mau exemplo, ao sair da prisão todas as portas lhe são fechadas, todas as mãos se retiram diante dele, todos os corações honestos o repelem. O que lhe resta? O desprezo e a miséria; o abandono, o desespero, se sentir em si boas resoluções para voltar ao bem; a miséria impele-o a tudo. Então também ele despreza seu semelhante, odeia-o, e perde toda consciência do bem e do mal, visto que se vê repelido, ele que no entanto tomara a resolução de se tornar um homem de bem. Para conseguir o necessário, ele rouba, e às vezes mata; depois, guilhotinam-no!

“Meu Deus, no momento em que minhas alucinações vão se reapoderar de mim, sinto vossa mão que se estende para mim; sinto vossa bondade que me envolve e me protege. Obrigado, meu Deus! na minha próxima existência, empregarei a minha inteligência, o meu bem para socorrer os desgraçados que sucumbiram e para preservá-los da queda.

“Obrigado, vós a quem não repugna comunicar comigo; não tenhais temor; vedes que não sou mau. Quando pensardes em mim, não imagineis o retrato que vistes de mim, mas imaginai uma pobre alma desolada que vos agradece a vossa indulgência. Adeus; evocai-me ainda, e pedi a Deus por mim.” LATOUR.

Estudo sobre o Espírito de Jacques Latour. Não se pode desconhecer a profundidade e o alto alcance de algumas das palavras que esta comunicação encerra; ela oferece ademais um dos aspectos do mundo dos Espíritos castigados, acima do qual, porém, se entrevê a misericórdia de Deus. A alegoria mitológica das Eumênides não é tão ridícula quanto se crê, e os demônios, carrascos oficiais do mundo invisível, que as substituem na crença moderna, são menos racionais, com seus chifres e seus pés de cabra, do que aquelas vítimas servindo elas próprias para castigar o culpado.

Admitindo-se a identidade desse Espírito, ficar-se-á talvez espantado com uma mudança tão rápida no seu estado moral; é, assim como fizemos observar em outra ocasião, que há com frequência mais recursos num Espírito brutalmente mau, do que naquele que é dominado pelo orgulho, ou que esconde seus vícios sob o manto da hipocrisia. Esse rápido retorno a melhores
sentimentos indica uma natureza mais selvagem do que perversa, à qual faltou apenas uma boa direção. Comparando sua linguagem com a de um outro criminoso mencionado a seguir, sob o título de: Castigo pela luz, é fácil ver qual dos dois é mais avançado moralmente, apesar da diferença de sua instrução e posição social; um obedecia a um instinto natural de ferocidade, a uma espécie de sobre-excitação, ao passo que o outro trazia para a perpetração de seus crimes a calma e o sangue-frio de uma lenta e perseverante combinação, e depois da morte desafiava ainda o castigo por orgulho; ele sofre, mas não quer admiti-lo; o outro é subjugado imediatamente. Pode-se assim prever qual dos dois sofrerá por mais tempo.

“Estou sofrendo, diz o Espírito de Latour, deste arrependimento que me mostra a enormidade das minhas faltas.” Há aí um pensamento profundo. O Espírito não compreende realmente a gravidade de seus crimes a não ser quando se arrepende deles; o arrependimento traz pesar, o remorso, sentimento doloroso que é a transição do mal ao bem, da doença moral à saúde moral. É para escapar disso que os Espíritos perversos se obstinam contra a voz de sua consciência, como aqueles doentes que repelem o remédio que deve curá-los; eles procuram se iludir, se atordoar persistindo no mal. Latour chegou àquele período em que a insensibilidade acaba por ceder; o remorso entrou no seu coração; seguiu-se o arrependimento; ele compreende a extensão do mal que fez; vê sua abjeção, e sofre por isso; eis porque ele diz: “Estou sofrendo desse arrependimento.” Na sua existência anterior, ele deve ter sido pior do que nesta, pois se se tivesse arrependido como o faz hoje, sua vida teria sido melhor. As resoluções que ele toma agora influenciarão sua existência terrestre futura; aquela que acaba de deixar, por mais criminosa que tenha sido, assinalou para ele uma etapa de progresso. É mais do que provável que antes de começá-la, ele era, enquanto na erraticidade, um desses maus Espíritos rebeldes, obstinados no mal, como se veem tantos. Muitas pessoas perguntaram que proveito se podia tirar das existências passadas, visto que não se guarda lembrança do que se foi nem do que se fez. Esta pergunta é completamente resolvida pelo fato de que, se o mal que cometemos está apagado, e se não resta nenhum traço dele no nosso coração, a recordação seria inútil, visto que não temos que nos preocupar com ele. Quanto àquele do qual não nos corrigimos inteiramente, nós o conhecemos pelas nossas tendências atuais; é a estas que devemos dirigir toda a nossa atenção. Basta saber o que somos, sem que seja necessário saber o que fomos. Quando se considera a dificuldade, durante a vida, da reabilitação do culpado mais arrependido, a reprovação da qual ele é objeto, deve-se abençoar Deus por ter jogado um véu sobre o passado. Se Latour tivesse sido condenadoa tempo, e mesmo se tivesse sido absolvido, seus antecedentes tê-lo-iam feitorejeitar pela sociedade. Quem teria querido, apesar do seu arrependimento, admiti-lo na sua intimidade? Os sentimentos que ele manifesta hoje como Espírito dão-nos a esperança de que, na sua próxima existência terrestre, ele será um homem de bem, estimado e considerado; mas suponde que se saiba que ele foi Latour, a reprovação ainda o perseguirá. O véu jogado sobre seu passado abre-lhe a porta da reabilitação; ele poderá sentar-se sem temor e sem vergonha entre as pessoas mais honestas. Quantos há que gostariam a qualquer preço de poder apagar da memória dos homens certos anos de sua existência!

Encontre-se uma doutrina que se concilie melhor do que esta com a justiça e a bondade de Deus! Além disso, esta doutrina não é uma teoria, mas um resultado de observações. Não foram os espíritas que a imaginaram; eles viram e observaram as diferentes situações nas quais os Espíritos se apresentam; procuraram explicá-las, e dessa explicação saiu a doutrina. Se a
aceitaram, é porque ela resulta dos fatos, e que ela lhes pareceu mais racional do que todas aquelas emitidas até hoje sobre o futuro da alma. Não se pode recusar a essas comunicações um alto ensinamento moral? O Espírito pôde ser, deve mesmo ter sido ajudado nas suas reflexões e sobretudo na escolha de suas expressões, por Espíritos mais avançados; mas, em semelhante caso, estes últimos não o assistem senão na forma e não nofundo, e nunca põem o Espírito inferior em contradição consigo mesmo. Eles puderam poetizar em Latour a forma do arrependimento, mas não o teriam feito exprimir o arrependimento contra sua vontade, porque o Espírito tem seu livrearbítrio; eles viam nele o germe de bons sentimentos, é por isso que o ajudarama expressar-se, e assim contribuíram para desenvolvê-los ao mesmo tempo que chamaram sobre ele a comiseração. Haverá algo de mais comovente, de mais moral, de natureza a impressionar mais vivamente do que o quadro deste grande criminoso arrependido, exalando seu desespero e seus remorsos; o qual, no meio de suas torturas, perseguido pelo olhar incessante de suas vítimas, eleva seu pensamento a Deus para implorar sua misericórdia? Não está aí um salutar exemplo para os culpados? Compreende-se a natureza de suas angústias; elas são racionais, terríveis, ainda que simples e sem encenação fantasmagórica. Talvez pudéssemos espantar-nos com tão grande mudança num homem como Latour; mas por que ele não se teria arrependido? Por que não haveria nele uma corda sensível vibrante? O culpado seria então destinado ao mal para todo o sempre? Não chega um momento em que se faz a luz na sua alma? Esse momento chegara para Latour. Está precisamente aí o lado moral de suas comunicações; é o entendimento que ele tem de sua situação; são seus pesares, seus projetos de reparação que são eminentemente instrutivos. O que se teria achado de extraordinário em que ele se arrependesse sinceramente antes de morrer; que ele tivesse dito antes o que disse depois? Não se têm inúmeros exemplos disso? Um retorno ao bem antes de sua morte teria passado por fraqueza os olhos da maioria de seus semelhantes; sua voz de além-túmulo é a revelação do futuro que os espera. Ele está absolutamente certo quando diz que seu exemplo é mais próprio a emendar os culpados do que a perspectiva das chamas do inferno e mesmo do cadafalso. Então, por que não lho dariam nas prisões? Isso faria refletir mais de um, tal como temos já vários exemplos. Mas como acreditar na eficácia das palavras de um morto, quando se crê que quando se morre acaba tudo? No entanto, virá um dia em que se reconhecerá esta verdade de que os mortos podem vir instruir os vivos. Há várias outras instruções importantes a tirar destas comunicações; primeiro, é a confirmação deste princípio de eterna justiça, de que o arrependimento não basta para colocar o culpado na categoria dos eleitos. O arrependimento é o primeiro passo para a reabilitação que apela para a misericórdia de Deus; é o prelúdio do perdão e do abreviamento dos sofrimentos; mas Deus não absolve sem condição; é preciso a expiação e sobretudo a reparação; é o que Latour compreende, e é para isso que ele se prepara.

Em segundo lugar, se se comparar este criminoso ao de Castelnaudary, encontra-se uma grande diferença no castigo que lhes é infligido. Neste último, o arrependimento foi tardio e por conseguinte a pena mais longa. Esta pena é ademais quase material, ao passo que em Latour o sofrimento é antes moral; é que, como dissemos anteriormente, em um a inteligência estava bem menos desenvolvida do que no outro; era preciso algo que pudesse impressionar seus sentidos obtusos; mas as penas morais não são menos dolorosas para aquele que chegou ao grau exigido para as compreender; pode-se avaliá-las pelas queixas que Latour exala; não é a cólera, é a expressão dos remorsos logo seguida de arrependimento e desejo de reparar, a fim de aperfeiçoar-se.

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