Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1866

Allan Kardec

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A vista de Deus

Considerando-se que Deus está em toda parte, por que não o vemos? Vê-lo-emos ao deixar a Terra? Estas são também perguntas feitas diariamente. A primeira é fácil de resolver: Nossos órgãos materiais têm percepções limitadas, que lhes tornam imprópria a visão de certas coisas, mesmo materiais. É assim que certos fluidos escapam totalmente à nossa visão e aos nossos instrumentos de análise. Vemos os efeitos da peste e não vemos o fluido que a transporta; vemos os corpos a se moverem sob a influência da força da gravitação, mas não vemos essa força.

As coisas de essência espiritual não podem ser percebidas pelos órgãos materiais; só pela visão espiritual é que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial; assim, só a nossa alma pode ter a percepção de Deus. Ela o vê imediatamente após a morte? É o que só as comunicações de além-túmulo nos podem ensinar. Por elas, sabemos que a visão de Deus só é privilégio das almas mais depuradas e que assim, muito poucas, ao deixar o envoltório terreno, possuem o grau de desmaterialização necessário. Algumas comparações simples nos permitirão compreender isso sem dificuldade.

Aquele que está no fundo de um vale, cercado de espessa bruma, não vê o Sol; contudo, à luz difusa, ele percebe a presença do sol. Se subir a montanha, à medida que ele se eleva, dissipa-se o nevoeiro, a luz se torna cada vez mais viva, mas ainda não o vê. Quando começa a percebê-lo, ele ainda está velado, porque o mínimo de vapor basta para lhe enfraquecer o brilho. Só depois de se haver elevado completamente acima da camada brumosa é que, achando-se num ar perfeitamente puro, ele o vê em todo o seu esplendor.

Dá-se o mesmo com quem tivesse a cabeça envolta por diversos véus. Inicialmente ele não vê absolutamente nada; a cada véu que retira, distingue um clarão cada vez maior; só quando retira o último véu é que vê as coisas nitidamente.

Também se dá o mesmo com um líquido carregado de matérias estranhas. A princípio ele é turvo; a cada destilação sua transparência aumenta, até que, estando completamente purificado, adquire uma limpidez perfeita e não apresenta nenhum obstáculo à visão.

Assim é com a alma. O envoltório perispiritual, embora invisível e impalpável para nós, é para ela uma verdadeira matéria, ainda muito grosseira para certas percepções. Esse envoltório se espiritualiza à medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como véus que obscurecem sua visão; cada imperfeição de que se desfaz é um véu a menos, mas só depois de se ter depurado completamente é que goza da plenitude de suas faculdades.

Sendo Deus a essência divina por excelência, não pode ser percebido em todo o seu brilho senão pelos Espíritos que atingiram o mais alto grau de desmaterialização. Se os Espíritos imperfeitos não o vêem, não é porque estejam mais afastados que os outros, porquanto todos os seres da Natureza, assim como eles, estão mergulhados no fluido divino. Assim como nós estamos na luz, os cegos também estão na luz, contudo não a veem. As imperfeições são véus que ocultam Deus à visão dos Espíritos inferiores; quando a cerração se dissipar, eles o verão resplandecer. Para isto não precisarão subir nem de procurá-lo nas profundezas do infinito; estando a vida espiritual desembaraçada das manchas morais que a obscureciam, eles o verão em qualquer lugar onde se encontrarem, ainda que estivessem na Terra, porquanto ele está em toda parte.

O Espírito se depura muito lentamente, e as diversas encarnações são os alambiques, no fundo dos quais deixa, a cada vez, algumas impurezas. Deixando seu envoltório corporal, ele não se despoja instantaneamente de suas imperfeições; é por isso que alguns, após a morte, não veem Deus mais do que em vida. No entanto, à medida que se depuram, dele têm uma intuição mais clara; se não o veem, compreendem-no melhor; a luz é menos difusa. Assim, quando Espíritos dizem que Deus lhes proíbe de responder a determinada pergunta, não é que Deus lhes apareça ou lhes dirija a palavra para prescrever ou interditar isto ou aquilo. Não; mas eles o sentem, recebem os eflúvios de seu pensamento, como nos acontece com relação aos Espíritos que nos envolvem com seu fluido, embora não os vejamos.

Nenhum homem pode, pois, ver Deus com os olhos da carne. Se esse favor fosse concedido a alguns, só o seria no estado de êxtase, quando a alma está tão desprendida dos laços da matéria quanto é possível durante a encarnação.

Um tal privilégio aliás seria apenas das almas de escol, encarnadas em missão e não em expiação. Mas como os Espíritos da mais elevada ordem resplandecem com um brilho deslumbrante, pode ser que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados, deslumbrados pelo esplendor que os cerca, julgassem ter visto o próprio Deus. É como alguém que vê um ministro e o toma por seu soberano.

Sob que aparência Deus se apresenta aos que se tornaram dignos desse dom? Sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana ou como um foco resplendente de luz? É o que a linguagem humana é incapaz de descrever, porque para nós não existe nenhum ponto de referência que possa dar uma ideia. Somos como cegos a quem em vão procurassem fazer compreender o brilho do Sol. Nosso vocabulário é limitado às nossas necessidades e ao círculo de nossas ideias; o dos selvagens não poderia descrever as maravilhas da civilização; o dos povos mais civilizados é muito pobre para descrever os esplendores do Céu; nossa inteligência muito limitada para compreendê-los, e nossa visão muito fraca ficaria por eles deslumbrada.

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