O Espiritismo e a magistratura
Perseguições judiciais contra os espíritas - Cartas de um juiz
O Espiritismo conta com vários magistrados em suas fileiras, como temos dito diversas vezes, não só na França, como na Itália, Espanha, Bélgica, Alemanha e na maioria dos países estrangeiros. A maior parte dos detratores da doutrina, que julgam ter o privilégio do bom-senso e tratam como insensatos os que não partilham de seu ceticismo a respeito das coisas espirituais, não dizemos sobrenaturais porque o Espiritismo não as admite, espantam-se que homens de inteligência e de valor, em sua opinião, caiam em semelhante erro. Os magistrados não são livres de ter sua opinião, sua fé, sua crença? Não há entre eles católicos, protestantes, livres-pensadores, francos-maçons? Quem, pois, poderia incriminar os que são espíritas? Não estamos mais nos tempos em que teriam cassado, talvez queimado o juiz que tivesse ousado afirmar publicamente que é a Terra que gira.
Coisa estranha! Há criaturas que gostariam de reviver esse tempo para os espíritas. No último alçar de escudos, não vimos homens que se dizem apóstolos da liberdade de pensamento apontá-los à vindita das leis como malfeitores, excitar as populações a corrê-los a pedradas, estigmatizá-los e lhes atirar injúrias à face, em jornais e em panfletos? Isso aconteceu não num momento de piadas, mas de verdadeira raiva, que, graças ao tempo em que vivemos, esgotou-se em palavras. Foi necessária toda a força moral de que se sentem animados os espíritas, toda a moderação de que os próprios princípios de sua doutrina fazem uma lei, para conservar a calma e o sangue-frio em semelhante circunstância e abster-se de represálias que poderiam ter sido lamentáveis. Esse contraste chocou todos os homens imparciais.
Então o Espiritismo é uma associação, uma afiliação tenebrosa, perigosa para a Sociedade, obediente a uma palavra de ordem? Seus adeptos têm um pacto entre si? Só a ignorância e a má-fé podem sustentar tais absurdos, levando-se em conta que sua doutrina não tem segredos para ninguém e eles agem à luz do dia. O Espiritismo é uma filosofia como qualquer outra, que é aceita livremente se convém, ou repelida se não convém; que repousa numa fé inalterável em Deus e no futuro e que só obriga moralmente os seus aderentes a uma coisa: olhar todos os homens como irmãos, sem acepção de crença, e fazer o bem, mesmo aos que nos fazem mal. Por que, então, não poderia um magistrado dizer-se abertamente seu partidário, declará-la boa se a julga boa, como pode dizer-se partidário da filosofia de Aristóteles, de Descartes ou de Leibnitz? Temeriam que sua justiça sofresse por isto? Que isto o tornasse muito indulgente para os adeptos? Naturalmente é aqui o lugar para algumas observações a respeito.
Num país como o nosso, onde as opiniões e as religiões são livres por lei, seria uma monstruosidade perseguir um indivíduo porque acredita nos Espíritos e suas manifestações. Se um espírita fosse entregue à justiça, não seria por causa de sua crença, como se fazia noutros tempos, mas porque teria cometido uma infração à lei. Portanto, é a falta que seria punida, e não a crença, e se ele fosse culpado, seria justamente sujeito às penas da lei. Para incriminar a doutrina, seria necessário ver se ela contém algum princípio ou máxima que autorizaria ou justificaria a falta. Se, ao contrário, nela for encontrada a censura a essa falta ou instruções em sentido contrário, a doutrina não poderia ser responsável pelos que não a compreendem ou não a praticam. Pois bem! Que analisem a Doutrina Espírita com imparcialidade, e desafiamos que nela encontrem uma só palavra sobre a qual se possam apoiar para cometer um ato qualquer repreensível aos olhos da moral, ou em relação ao próximo, ou mesmo que possa ser interpretado como mal, porque tudo aí é claro e sem equívoco.
Quem quer que se conforme aos preceitos da doutrina não poderia, pois, sofrer perseguições judiciais, a menos que nele se persiga a própria crença, o que entraria nas perseguições contra a fé. Ainda não temos conhecimento de perseguições dessa natureza na França, nem mesmo no estrangeiro, salvo a condenação, seguida do auto-de-fé de Barcelona, e ainda era uma sentença do bispo, e não do tribunal civil. E queimaram apenas livros. Com efeito, a que título perseguiriam pessoas que só pregam a ordem, a tranquilidade, o respeito à lei; que praticam a caridade, não só entre si, como nas seitas exclusivas, mas para com todo o mundo; cujo objetivo principal é trabalhar o seu próprio melhoramento moral; que contra os inimigos abjuram todo sentimento de ódio e de vingança? Homens que professam tais princípios não podem ser perturbadores da Sociedade. Certamente não serão eles que provocarão a desordem, o que levou um comissário de polícia a dizer que se todos os seus administrados fossem espíritas ele poderia fechar seu posto.
A maior parte das perseguições, em semelhantes casos, tem por objetivo o exercício ilegal da medicina, ou acusação de charlatanice, prestidigitação ou trapaça, por meio da mediunidade. Para começar, diremos que o Espiritismo não pode ser responsável por indivíduos que indevidamente se arrogam a qualidade de médiuns, assim como a verdadeira ciência não é responsável pelos escamoteadores que se dizem físicos. Um charlatão pode, portanto, dizer que opera com o auxílio dos Espíritos, como um prestidigitador diz que opera com a ajuda da física. É um meio como qualquer outro de jogar areia nos olhos. Tanto pior para os que se deixam enganar. Em segundo lugar, condenando a exploração da mediunidade como contrária aos princípios da doutrina, do ponto de vista moral, e além disso demonstrando que ela não deve nem pode ser um ofício ou uma profissão, e que todo médium que não tira de sua faculdade qualquer proveito direto ou indireto, ostensivo ou dissimulado, o Espiritismo afasta, por isso mesmo, até a suspeita de trapaça ou de charlatanismo. Considerando-se que o médium não é movido por nenhum interesse material, a charlatanice não teria sentido. O médium que compreende o que há de grave e santo num dom dessa natureza julgaria profaná-lo fazendo-o servir a coisas mundanas, para si e para os outros, ou se dele fizesse um objeto de divertimento e de curiosidade. Ele respeita os Espíritos, da mesma forma que deseja ser respeitado quando for Espírito, e não os põe em exibição. Além disto, ele sabe que a mediunidade não pode ser um meio de adivinhação e que ela não pode ajudá-lo a descobrir tesouros ou heranças, nem facilitar o êxito nas coisas aleatórias. Ele jamais será um ledor da sorte, nem por dinheiro nem por nada, portanto jamais terá embaraços com a justiça. Quanto à mediunidade curadora, ela existe, é certo. Mas está subordinada a condições restritivas, que excluem a possibilidade de consultório aberto sem suspeitas de charlatanismo. É uma obra de devotamento e de sacrifício e não de especulação. Exercida com desinteresse, prudência e discernimento, e contida nos limites traçados pela doutrina, ela não pode cair sob os golpes da lei.
Em resumo, o médium, segundo os desígnios da Providência e sob as vistas do Espiritismo, seja ele artífice ou príncipe, pois eles se encontram nos palácios e nas choupanas, recebeu um mandato que cumpre religiosamente e com dignidade. Ele não vê na sua faculdade senão um meio de glorificar Deus e servir ao próximo, e não um instrumento para servir aos seus interesses ou satisfazer a sua vaidade. Ele se faz estimar e respeitar por sua simplicidade, sua modéstia e sua abnegação, o que não se dá com os que buscam dele fazer um trampolim.
Ao usar de severidade contra os médiuns exploradores, aqueles que fazem mau uso de uma faculdade real, ou que simulam uma faculdade que não têm, a justiça não fere a doutrina, mas o abuso. Ora, o Espiritismo verdadeiro e sério, que não vive de abusos, com isto só poderá ganhar em consideração, e não tomaria sob seu patrocínio os que poderiam desviar a opinião pública por conta própria. Tomando fatos e causas para si, ele assumiria a responsabilidade do que eles fazem, porque esses tais não são verdadeiramente espíritas, mesmo que sejam realmente médiuns.
Enquanto não se perseguir num espírita, ou nos que tal se dizem, senão os atos repreensíveis aos olhos da lei, o papel do defensor é discutir o ato em si, abstração feita da crença do acusado. Seria grave erro procurar justificar o ato em nome da doutrina. Ao contrário, ele deve empenhar-se em demonstrar que ela lhe é estranha. Então o acusado cai no direito comum.
Um fato inconteste é que, quanto mais extensos e variados são os conhecimentos de um magistrado, mais apto é este para apreciar os fatos sobre os quais é chamado a se pronunciar. Num caso de medicina legal, por exemplo, é evidente que aquele que não for totalmente estranho à ciência poderá melhor julgar o valor dos argumentos da acusação e da defesa, do que outro que lhe ignora os rudimentos. Num caso em que o Espiritismo estivesse em questão, e hoje que ele está na ordem do dia e pode apresentar-se incidentemente, como principal ou como acessório, numa porção de casos, há um interesse real para os magistrados em saber pelo menos o que ele é, sem que por isso sejam tidos como espíritas. Num dos casos precitados, incontestavelmente saberiam melhor discernir o abuso da verdade.
Infiltrando-se o Espiritismo cada vez mais nas ideias, e tomando já um lugar entre as crenças aceitas, não está longe o tempo em que a nenhum homem esclarecido será permitido ignorar o que é, exatamente, essa doutrina, do mesmo modo que não pode ignorar os primeiros elementos das ciências. Ora, como ele abrange todas as questões científicas e morais, serão melhor compreendidas muitas coisas que, à primeira vista, pareciam estranhas. É assim, por exemplo, que o médico aí descobrirá a verdadeira causa de certas afecções; que o artista colherá numerosos temas de inspiração; que o magistrado e o advogado em muitas circunstâncias encontrarão uma fonte de luz.
É neste sentido que o concebe o Sr. Jaubert, honrado vice-presidente do tribunal de Carcassone. Para ele, é mais que um conhecimento adicionado aos que possui: é uma questão de convicção, pois lhe compreende o alcance moral. Embora jamais tenha ocultado sua opinião a esse respeito, convencido de estar certo e da força moralizadora da doutrina, hoje que a fé se apaga no ceticismo, quis ele dar-lhe o apoio da autoridade de seu nome, no momento mesmo em que ela era atacada com o máximo de violência, desafiando resolutamente a chacota, e mostrando aos seus adversários o pouco caso que faz de seus sarcasmos. Na sua posição, e dadas as circunstâncias, a carta que nos pediu que publicássemos, e que inserimos na Revista de janeiro último, é um ato de coragem, do qual todos os espíritas sinceros guardarão preciosa lembrança. Ela deixará sua marca na história do estabelecimento do Espiritismo.
A carta seguinte, que igualmente estamos autorizados a publicar, toma lugar ao lado da do Sr. Jaubert. É uma dessas adesões francamente explícitas e motivadas, à qual a posição do autor dá mais peso pelo fato de ser espontânea, pois não tínhamos a honra de conhecer esse senhor. Ele julga a doutrina pela simples impressão das obras, pois nada tinha visto. É a melhor resposta à acusação de inépcia e de charlatanice lançada sem distinção contra o Espiritismo e seus adeptos.
21 de novembro de 1865.
“Senhor,
“Permiti-me, como novo e fervoroso adepto, testemunhar-vos todo o meu reconhecimento por ter-me iniciado, pelos vossos escritos, à ciência espírita. Por curiosidade, li O Livro dos Espíritos; mas, após uma leitura atenta, a admiração, depois a mais inteira convicção sucederam em mim a uma desconfiada incredulidade. Com efeito, a doutrina que dele decorre dá a mais lógica solução, a mais satisfatória para a razão, de todas as questões que tão seriamente preocuparam os pensadores de todos os tempos, para definir as condições da existência do homem nesta Terra, explicar as vicissitudes que incumbem à Humanidade e determinar seus últimos fins. Esta admirável doutrina é incontestavelmente a sanção da mais pura e da mais fecunda moral, a exaltação demonstrada da justiça, da bondade de Deus e da obra sublime da criação, assim como a mais segura e mais firme base da ordem social.
“Não testemunhei manifestações espíritas, mas este elemento de prova, de modo algum contrário aos ensinamentos de minha religião (a católica) não é necessário à minha convicção. Para começar, basta-me encontrar na ordem da Providência a razão de ser da desigualdade das condições nesta Terra, numa palavra, a razão de ser do mal material e do mal moral.
“Com efeito, minha razão admite plenamente, como justificando a existência do mal material e moral, a alma saindo simples e ignorante das mãos do Criador, enobrecida pelo livre-arbítrio, progredindo por provas e expiações sucessivas e não chegando à soberana felicidade senão adquirindo a plenitude de sua essência etérea, pela libertação completa das amarras da matéria, que, alterando as condições da beatitude, deve ter servido para o seu adiantamento.
“Nessa ordem de ideias, o que há de mais racional que os Espíritos, nas diversas fases de sua depuração progressiva, se comuniquem entre si de um a outro mundo, encarnados ou invisíveis, para se esclarecerem, se ajudarem mutuamente, concorrer reciprocamente para o seu avanço, facilitar suas provas e entrar na via reparadora do arrependimento e da volta a Deus! O que de mais racional, digo eu, que uma tal continuidade, um tal fortalecimento dos laços de família, de amizade e de caridade que, unindo os homens em sua passagem por esta Terra, devem, como último objetivo, reuni-los um dia numa só família no seio de Deus!
“Que traço de união sublime: O amor partindo do Céu para abraçar com seu sopro divino a Humanidade inteira, povoando o imenso Universo, e reconduzi-la a Deus para fazê-la participar da beatitude eterna, da qual esse amor é a fonte! Que de mais digno da sabedoria, da justiça e da bondade infinita do Criador! Que grandiosa ideia da obra cuja harmonia e imensidade o Espiritismo revela, levantando uma ponta do véu que ainda não permite ao homem penetrar-lhe todos os segredos! Quanto os homens tinham restringido a sua incomensurável grandeza, situando a Humanidade num ponto imperceptível, perdido no espaço, e não concedendo senão a um pequeno número de eleitos a felicidade eterna reservada a todos! Assim rebaixaram o divino artífice às proporções ínfimas de suas percepções, das aspirações tirânicas, vingativas e cruéis inerentes às suas imperfeições.
“Enfim, basta à minha razão encontrar nesta santa doutrina a serenidade da alma, coroando uma existência resignada às tribulações providenciais da vida honestamente realizada pelo cumprimento de seus deveres e a prática da caridade, a firmeza na sua fé, pela solução das dúvidas que comprimem as aspirações para Deus, e enfim esta plena e inteira confiança na justiça, na bondade e na misericordiosa e paternal solicitude de seu Criador.
“Tende a bondade, senhor, de me contar no número dos vossos irmãos em Espiritismo, e aceitar etc.
“BONNAMY, juiz de instrução.”
Uma comunicação dada pelo Espírito do pai do Sr. Bonnamy provocou a carta seguinte. Não reproduzimos essa comunicação, devido ao seu caráter íntimo e pessoal, mas damos a seguir a segunda carta, de interesse geral:
“Senhor e caro mestre, mil vezes obrigado por ter tido a bondade de evocar meu pai. Havia tanto tempo que não ouvia essa voz amada! Extinta para mim há tantos anos, ela revive hoje! Assim se realiza o sonho de minha imaginação entristecida, sonho concebido sob a impressão de nossa separação dolorosa. Que suave, que consoladora revelação, tão cheia de esperanças para mim! Sim, vejo meu pai e minha mãe no mundo dos Espíritos, velando por mim, prodigalizando-me o benefício dessa ansiosa solicitude com que me cercaram na Terra. Minha santa mãe, em sua terna preocupação pelo futuro, penetrando-me com seu eflúvio simpático para me conduzir a Deus e mostrar-me o caminho das verdades eternas que para mim cintilavam num longínquo nebuloso!
“Como eu seria feliz se, conforme o desejo expresso por meu pai de se comunicar novamente, sua evocação pudesse ser julgada útil ao progresso da ciência espírita, e entrar na ordem dos ensinamentos providenciais reservados à obra! Eu encontraria, assim, em vosso jornal, os elementos das instruções espíritas, por vezes mescladas às doçuras das conversas em família. É um simples desejo, bem compreendeis, caro mestre. Levo muito em consideração as exigências da missão que vos incumbe, para fazer de tal desejo um pedido.
“Dou plena autorização para a publicação de minha carta. De boa vontade levarei o meu grão de areia à ereção da construção do edifício espírita, feliz se, ao contato de minha convicção profunda, as dúvidas de alguns se diluíssem e os incrédulos pensassem dever refletir mais seriamente.
“Permiti-me, caro mestre, dirigir-vos algumas palavras de simpatia e encorajamento por vosso duro labor. O Espiritismo é um farol providencial cuja luz deslumbrante e fecunda deve abrir todos os olhos, confundir o orgulho dos homens e comover todas as consciências. Sua irradiação será irresistível. De que tesouros de consolação, de misericórdia e de amor sois o distribuidor!
“Aceitai, etc.
“BONNAMY.”