Uma noite esquecida ou a feiticeira Manuza
Ditada pelo Espírito de Frédéric Soulé (Terceira e última publicação)
VII
─ Levante-se, disse-lhe Nureddin, e siga-me.
Nazara lançou-se em pranto aos seus pés, pedindo clemência.
─ Nenhuma piedade para semelhante falta, disse o falso sultão. Prepare-se para
morrer.
Nureddin sofria muito por lhe falar desse modo, mas não julgava azado o momento para se dar a conhecer.
Vendo que era impossível dobrá-lo, Nazara o seguiu trêmula. Voltaram aos aposentos. Aí Nureddin disse a Nazara que fosse vestir-se convenientemente. Depois, terminada a toalete e sem outra explicação, disse-lhe que iriam, ele e Ozana (o anão) conduzi-la para um subúrbio de Bagdá onde encontraria aquilo que merecia. Cobriram-se com grandes mantos, a fim de não serem reconhecidos, e saíram do palácio. Mas, oh! terror! apenas transpuseram as portas do palácio mudaram de aspecto aos olhos de Nazara; não eram o Sultão e Ozana, nem os vendedores de roupas, mas o próprio Nureddin e Tanapla. Ficaram tão aterrados, principalmente Nazara, por se encontrarem tão perto da morada do Sultão, que estugaram o passo, a fim de não serem reconhecidos.
Mal haviam entrado na casa de Nureddin e ela foi cercada por uma porção de homens, escravos e tropas enviadas pelo Sultão para prendê-los.
Ao primeiro ruído, Nureddin, Nazara e o anão refugiaram-se nos mais retirados aposentos do palácio. Lá, o anão lhes disse que nada deviam recear. Só uma coisa deviam fazer, a fim de não serem presos: pôr na boca o dedo mínimo da mão esquerda e assoviar três vezes. Nazara devia fazer o mesmo e imediatamente ficariam invisíveis para aqueles que queriam prendê-los.
O rumor continuou a aumentar de maneira alarmante; então, Nazara e Nureddin seguiram o conselho de Tanapla: quando os soldados penetraram em seus aposentos acharam-nos vazios. Retiraram-se após minuciosas buscas. Então o anão disse a Nureddin que fizesse o contrário do que havia feito, isto é, que pusesse na boca o pequeno dedo da mão direita e assoviasse três vezes. Feito isso, logo se converteram no que eram antes.
Em seguida o anão os advertiu de que não estavam em segurança naquela casa e que deviam deixá-la por algum tempo, até que se apaziguasse a cólera do Sultão.
Então ofereceu-se para conduzi-los ao seu palácio subterrâneo, onde estariam muito à vontade, enquanto seriam providenciados os meios para que pudessem, sem receio, retornar a Bagdá nas melhores condições possíveis.
VIII
Nureddin hesitava, mas Nazara tanto insistiu que ele acabou concordando. O anão mandou que fossem ao jardim, chupassem uma laranja com o rosto voltado para o nascente e que então seriam transportados sem o perceber. Fizeram um ar de dúvida, mas Tanapla objetou-lhes que não compreendia a sua dúvida depois do que por eles havia feito.
Tendo descido ao jardim e chupado a laranja como lhes fora indicado, viram-se subitamente elevados a uma altura prodigiosa. De súbito experimentaram um forte abalo e um grande frio e sentiram que desciam a grande velocidade. Nada viram durante o trajeto, mas quando tomaram consciência da situação, achavam-se no subsolo, num magnífico palácio iluminado por vinte mil velas.
Deixemos os dois namorados em seu palácio subterrâneo e voltemos ao nosso anão, que havíamos deixado na casa de Nureddin. Vimos que o sultão enviara os seus soldados para prender os fugitivos. Depois de haverem rebuscado os mais afastados recantos da habitação, bem como os jardins, sem nada encontrar, tiveram que regressar e prestar contas ao sultão de suas buscas infrutíferas.
Tanapla acompanhou-os em todo o percurso, com um ar brincalhão e de vez em quando perguntava quanto o sultão pagaria a quem lhe entregasse os dois fugitivos.
E acrescentava: “Se o sultão estiver disposto a conceder-me uma hora de audiência, eu lhe direi algo que o acalmará e ele ficará muito satisfeito de poder desembaraçar-se de uma mulher como Nazara, que possui um mau gênio e que faria cair sobre ele todas as desgraças possíveis, se lá ficasse por mais algumas luas”.
O chefe dos eunucos prometeu-lhe dar o recado e transmitir-lhe a resposta do sultão.
Mal chegaram ao palácio, o chefe dos negros veio dizer-lhe que o seu senhor o aguardava; mas o preveniu de que seria empalado se fosse com imposturas.
Nosso monstrinho apressou-se a chegar ao sultão. Em presença desse homem duro e severo, inclinou-se três vezes, como é de hábito perante os príncipes de Bagdá.
─ O que tens a dizer-me? perguntou o sultão. Sabes o que te espera se não disseres a verdade. Fala! eu te escuto.
─ Grande Espírito, celeste Lua, tríade de Sóis, não direi senão a verdade.
Nazara é filha da Fada Negra e do Gênio da Grande Serpente dos Infernos. Sua presença em tua casa te acarretaria todas as pragas imagináveis: chuva de serpentes, eclipse do sol, lua azul impedindo os amores noturnos; enfim, todos os teus desejos seriam contrariados e tuas mulheres envelheceriam antes que passasse uma lua. Eu poderia dar-te uma prova do que digo. Sei onde se acha Nazara. Se queres, irei buscá-la e poderás convencer-te. Só há um meio de evitar estas desgraças É dá-la a Nureddin. Nureddin também não é o que pensas: é o filho da feiticeira Manuza e do gênio Rochedo de Diamante. Se os casares, em sinal de reconhecimento, Manuza te protegerá. Se recusares... Pobre príncipe! Eu te lamento. Experimenta. Depois decidirás.
O sultão ouviu muito calmo as palavras de Tanapla, mas logo a seguir chamou uma tropa de homens armados e mandou prender o pequeno monstro, até que um acontecimento viesse provar aquilo que acabara de dizer.
Tanapla respondeu:
─ Pensava que estivesse tratando com um grande príncipe; vejo, entretanto, que me enganei e deixo aos gênios o cuidado de vingar os seus filhos. Dito isto, seguiu os que tinham vindo prendê-lo.
IX
Apenas algumas horas haviam passado desde que Tanapla entrara na prisão, quando o sol se cobriu de uma nuvem sombria, como se um véu quisesse roubá-lo à Terra; depois ouviu-se um grande ruído e de uma montanha, à entrada da cidade, saiu um gigante armado, dirigindo-se para o palácio do sultão.
Não direi que o sultão tivesse ficado muito calmo. Longe disso. Ele tremia como uma folha de laranjeira açoitada por Éolo. À aproximação do gigante, mandou fechar todas as portas e ordenou prontidão a todos os soldados, a fim de defender o seu príncipe. Mas, oh! Estupefação! À aproximação do gigante todas as portas se abriram, como se empurradas por mão invisível; depois, gravemente, o gigante avançou para o sultão, sem fazer um sinal e sem dizer uma palavra. À sua vista, o sultão caiu de joelhos e suplicou ao gigante que o poupasse e dissesse o que exigia.
─ Príncipe! disse o gigante, não digo muita coisa da primeira vez. Apenas te advirto. Faze o que Tanapla te aconselhou e te asseguramos a nossa proteção. Do contrário, sofrerás as consequências de tua teimosia. Dito isto, retirou-se.
A princípio o sultão ficou muito aterrado, mas ao fim de um quarto de hora refez-se do susto e, longe de seguir o conselho de Tanapla, mandou publicar um édito prometendo magnífica recompensa a quem o pusesse no encalço dos fugitivos.
Depois mandou postar guardas às portas do palácio e da cidade e esperou pacientemente. Entretanto sua paciência não durou muito, ou melhor, não lhe deram tempo de submetê-la à prova. Logo ao segundo dia apareceu às portas da cidade um exército que parecia saído das entranhas da terra. Os soldados vestiam peles de toupeira e tinham como escudos cascos de tartaruga; usavam machados feitos de lascas de rochedos.
À sua aproximação os guardas quiseram opor resistência, mas o aspecto formidável do exército logo fê-los baixarem as armas. Abriram as portas sem dizer palavra, sem romper suas filas e a tropa inimiga marchou solenemente para o palácio. O sultão quis resistir à entrada de seus aposentos, mas, com grande surpresa, os guardas adormeceram e as portas se abriram por si mesmas. Depois o chefe do exército avançou com passo grave até os pés do sultão e lhe disse:
─ Vim dizer-te o seguinte: Vendo a tua teimosia, Tanapla nos mandou procurarte.
Ao invés de ser o sultão de um povo que não sabes governar, vamos conduzir-te para o meio das toupeiras. Tornar-te-ás uma toupeira e serás um sultão amaciado. Vê o que preferes: isto ou fazer aquilo que te disse Tanapla? Tens dez minutos para refletir.
X
O sultão preferiria resistir. Mas, para a sua felicidade, após alguns momentos de reflexão, concordou com as exigências. Apenas quis impor uma condição: que os fugitivos não habitassem o seu reino. Foi-lhe prometido, e imediatamente, sem saber como nem para onde, o exército desapareceu de sua vista.
Agora que a sorte dos dois amantes estava perfeitamente assegurada, voltemos a eles, lembrando que os havíamos deixado no palácio subterrâneo.
Depois de alguns minutos, deslumbrados, encantados pelo aspecto das maravilhas que os cercavam, quiseram visitar o palácio e os seus arredores. Viam jardins deslumbrantes e, coisa estranha! ali viam quase que tão claramente quanto a céu aberto. Aproximaram-se do palácio. Todas as portas estavam abertas e havia aparatos como para uma grande festa. À porta encontrava-se uma dama magnificamente vestida. Nossos fugitivos não a identificaram logo. Entretanto, aproximando-se mais, reconheceram Manuza, a feiticeira. Manuza, completamente transformada, já não era a velha suja e decrépita. Era uma senhora de certa idade, mas ainda bela e de porte magnífico.
─ Nureddin, disse-lhe ela, eu te prometi ajuda e assistência. Hoje vou cumprir a minha promessa. Estás no fim de teus males e vais receber o preço de tua tenacidade. Nazara vai ser tua esposa. Além disso, dou-te este palácio. Nele habitarás e serás o rei de um povo bravo e reconhecido. Eles são dignos de ti, como és digno de reinar sobre eles.
A estas palavras ouviu-se uma música harmoniosa. De todos os lados apareceu inumerável multidão de homens e mulheres em trajes de festa. À sua frente, grão senhorese grandes damas vinham prostrar-se aos pés de Nureddin. Ofereceram-lhe uma coroa de ouro cravejada de diamantes e disseram que o reconheciam como rei; que o trono lhe pertencia como herança paterna; que havia 400 anos eles estavam encantados pela vontade de magos perversos e esse encantamento só deveria terminar pela presença de Nureddin. Em seguida fizeram um longo discurso sobre as virtudes dele e as de Nazara.
Então Manuza lhes disse:
─ Sois felizes e nada mais tenho a fazer aqui. Se um dia tiverdes necessidade de mim, batei na estátua que está no meio do vosso jardim e eu virei imediatamente. Dito isto, desapareceu. Nureddin e Nazara tinham vontade de retê-la por mais tempo a fim de agradecer-lhe por toda a bondade que demonstrara para com eles. Depois de conversarem alguns momentos, voltaram aos seus súditos. As festas e os regozijos duraram oito dias. Seu reinado foi longo e feliz. Viveram milhares de anos e posso dizer-vos que ainda vivem. Só que o seu país jamais foi descoberto, ou melhor, nunca se tornou conhecido.
FIM
OBSERVAÇÃO: Chamamos a atenção dos leitores para as observações que antecederam este conto, nos números de novembro de 1858 e janeiro de 1859.
ALLAN KARDEC