A RAINHA DE OUDE
[4]NOTA: Nestas conversas suprimiremos, daqui por diante, a fórmula de evocação, que é sempre a mesma, a menos que sua resposta apresente alguma particularidade.
1. ─ Que sensação experimentastes ao deixar a vida terrena?
─ Não poderei dizer. Experimento ainda uma perturbação.
2. ─ Sois feliz?
─ Não.
3. ─ Por que não sois feliz?
─ Tenho saudades da vida... não sei... experimento uma dor pungente. A vida ter-me-ia livrado disso... gostaria que meu corpo se levantasse do sepulcro.
4. ─ Lamentais não terdes sido enterrada em vosso país, e sim entre os cristãos?
─ Sim. A terra indiana pesaria menos sobre o meu corpo.
5. ─ Que pensais das honras fúnebres tributadas aos vossos despojos?
─ Foram muito mesquinhas: eu era rainha e nem todos dobraram os joelhos diante de mim... Deixai-me... Obrigam-me a falar... Não quero que saibais o que agora sou... Fui rainha, notai bem.
6. ─ Respeitamos a vossa hierarquia e vos pedimos que respondais para nos instruirmos. Pensais que um dia vosso filho recuperará os domínios paternos?
─ Por certo meu sangue reinará, pois é digno disso.
7. ─ Ligais à reintegração de vosso filho ao trono de Oude a mesma importância de quando vivíeis?
─ Meu sangue não pode ser confundido com a multidão.
8. ─ Qual a vossa opinião atual sobre a verdadeira causa da revolta das Índias?
─ O indiano foi feito para ser senhor em sua casa.
9. ─ Que pensais do futuro reservado àquele país?
─ A Índia será grande entre as nações.
10. ─ Não foi possível escrever no atestado de óbito o lugar de vosso nascimento. Podereis dizer-nos agora?
─ Nasci do mais nobre sangue da Índia. Creio que nasci em
Delhi.
11. ─ Vós, que vivestes nos esplendores do luxo e cercada de honras, que pensais agora?
─ Elas me eram devidas.
12. ─ A classe que ocupastes na Terra vos confere uma posição mais elevada no mundo onde hoje estais?
─ Sou sempre rainha... Que me mandem escravas para me servirem!... Não sei, parece que não se preocupam comigo aqui... Entretanto eu sou sempre eu.
13. ─ Pertencíeis à religião muçulmana ou a uma religião indiana?
─ Muçulmana; mas eu era grande demais para me ocupar de Deus.
14. ─ Que diferença notais entre a religião que professáveis e a religião cristã, quanto à felicidade futura do homem?
─ A religião cristã é absurda, pois considera a todos como irmãos.
15. ─ Qual a vossa opinião sobre Maomé?
─ Não era filho de rei.
16. ─ Ele tinha uma missão divina?
─ Que me importa isso?
17. ─ Qual a vossa opinião sobre o Cristo?
─ O filho do carpinteiro não é digno de ocupar meu pensamento.
18. ─ Que pensais do costume muçulmano de subtrair as mulheres aos olhares dos homens?
─ Penso que as mulheres foram feitas para dominar. Eu era mulher.
19. ─ Alguma vez invejastes a liberdade de que desfrutam as mulheres da Europa?
─ Não. Que me importava a sua liberdade? Elas são servidas de joelhos?
20. ─ Qual a vossa opinião sobre a condição da mulher em geral, na espécie humana?
─ Que me importam as mulheres? Se me falasses de rainhas!...
21. ─ Recordai-vos de ter tido outras existências na Terra, antes desta que acabais de deixar?
─ Devo ter sido sempre rainha.
22. ─ Por que viestes tão prontamente ao nosso apelo?
─ Eu não o queria; fui forçada... Pensais que me dignaria a responder? Quem sois vós junto de mim?
23. ─ Quem vos obrigou a vir?
─ Não sei... Entretanto, aqui não deve haver ninguém maior do que eu.
24. ─ Em que lugar aqui vos encontrais?
─ Perto de Ermance.
25. ─ Sob que forma aqui estais?
─ Sou sempre rainha... Pensais que eu haja deixado de o ser? Sois pouco respeitoso... Sabei que às rainhas se fala de outra maneira.
26. ─ Por que não vos podemos ver?
─ Eu não quero.
27. ─ Se pudéssemos ver-vos, seria com os vossos vestidos, ornatos e joias?
─ Certamente!
28. ─ Como é que tendo deixado tudo isso, vosso Espírito conservou a aparência, sobretudo de vossas vestes e joias?
─ Elas não me deixaram... Sou sempre tão bela quanto era... Não sei que ideia fazeis de mim! É verdade que nunca me vistes.
29. ─ Que impressão vos causa estardes em nosso meio?
─ Se eu pudesse não estaria aqui. Tratais-me com tão pouco respeito! Não quero que me tratem assim... Chamai-me Majestade, do contrário não responderei mais.
30. ─ Vossa Majestade
compreendia a língua francesa?
─ Por que não? Eu sabia tudo.
31. ─ Gostaria Vossa Majestade de responder em inglês?
─ Não... Não me deixareis tranquila?... Quero ir embora... Deixai-me. Pensais que eu esteja submetida aos vossos caprichos?... Sou rainha e não escrava.
32. ─ Pedimos apenas a bondade de responder ainda a duas ou três perguntas.
Resposta de São Luís, que estava presente:
─ Deixai-a, pobre transviada! Tende piedade de sua cegueira. Que ela vos sirva de exemplo! Não sabeis quanto sofre o seu orgulho.
OBSERVAÇÃO: Esta conversa oferece vários ensinamentos. Evocando esta grandeza decaída, agora no túmulo, não esperávamos respostas muito profundas, dado o tipo de educação das mulheres daquele país. Pensávamos encontrar nesse Espírito, se não a filosofia, pelo menos um mais verdadeiro sentimento da realidade e ideias mais sadias sobre as vaidades e grandezas terrenas. Longe disto, nela as ideias terrenas conservavam toda a sua força: é o orgulho, que nada perde de suas ilusões; que luta contra sua própria fraqueza e que, na verdade, deve sofrer muito na sua impotência. Na previsão de respostas de natureza completamente diferentes, tínhamos preparado diversas perguntas que perderam a significação. As respostas foram tão diferentes daquilo que esperávamos, como também as pessoas presentes, que não poderíamos ver nelas a influência de um pensamento estranho. Elas têm, entretanto, um cunho tão característico de personalidade, que demonstram claramente a identidade do Espírito que se manifestou.
Com razão a gente se admira de ver Lemaire, o homem degradado e manchado por todos os crimes, manifestar, em sua linguagem de Além-Túmulo, sentimentos que denotam uma certa elevação e uma apreciação muito exata da situação, ao passo que na rainha de Oude, cuja posição social poderia ter nela desenvolvido o senso moral, as ideias terrenas não sofreram qualquer modificação. Parece fácil explicar a razão dessa anomalia. Por mais degradado que fosse, Lemaire vivia no meio de uma sociedade civilizada e esclarecida, que tinha reagido sobre sua natureza grosseira; sem o perceber, havia absorvido alguns raios da luz que o cercava e essa luz fez nascer nele pensamentos abafados por sua abjeção, mas cujo germe, nem por isso, deixava de subsistir.
A situação é completamente outra com a rainha de Oude: o meio em que viveu, os hábitos, a falta absoluta de cultura intelectual, tudo devia ter contribuído para manter em todo o seu vigor as ideias de que se imbuíra na infância. Nada pôde modificar essa natureza primitiva sobre a qual os preconceitos mantiveram todo o seu império.
─ Oude é um antigo reino da Índia, cuja capital é Aódia (em inglês Luknow), entre o Ganges e o Himalaia. (N. da Eq. Rev.)