Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858

Allan Kardec

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A RAINHA DE OUDE[4]

NOTA: Nestas conversas suprimiremos, daqui por diante, a fórmula de evocação, que é sempre a mesma, a menos que sua resposta apresente alguma particularidade.

1. ─ Que sensação experimentastes ao deixar a vida terrena?

─ Não poderei dizer. Experimento ainda uma perturbação.

2. ─ Sois feliz?

─ Não.

3. ─ Por que não sois feliz?

─ Tenho saudades da vida... não sei... experimento uma dor pungente. A vida ter-me-ia livrado disso... gostaria que meu corpo se levantasse do sepulcro.

4. ─ Lamentais não terdes sido enterrada em vosso país, e sim entre os cristãos?

─ Sim. A terra indiana pesaria menos sobre o meu corpo.

5. ─ Que pensais das honras fúnebres tributadas aos vossos despojos?

─ Foram muito mesquinhas: eu era rainha e nem todos dobraram os joelhos diante de mim... Deixai-me... Obrigam-me a falar... Não quero que saibais o que agora sou... Fui rainha, notai bem.

6. ─ Respeitamos a vossa hierarquia e vos pedimos que respondais para nos instruirmos. Pensais que um dia vosso filho recuperará os domínios paternos?

─ Por certo meu sangue reinará, pois é digno disso.

7. ─ Ligais à reintegração de vosso filho ao trono de Oude a mesma importância de quando vivíeis?

─ Meu sangue não pode ser confundido com a multidão.

8. ─ Qual a vossa opinião atual sobre a verdadeira causa da revolta das Índias?

─ O indiano foi feito para ser senhor em sua casa.

9. ─ Que pensais do futuro reservado àquele país?

─ A Índia será grande entre as nações.

10. ─ Não foi possível escrever no atestado de óbito o lugar de vosso nascimento. Podereis dizer-nos agora?

─ Nasci do mais nobre sangue da Índia. Creio que nasci em Delhi.

11. ─ Vós, que vivestes nos esplendores do luxo e cercada de honras, que pensais agora?

─ Elas me eram devidas.

12. ─ A classe que ocupastes na Terra vos confere uma posição mais elevada no mundo onde hoje estais?

─ Sou sempre rainha... Que me mandem escravas para me servirem!... Não sei, parece que não se preocupam comigo aqui... Entretanto eu sou sempre eu.

13. ─ Pertencíeis à religião muçulmana ou a uma religião indiana?

─ Muçulmana; mas eu era grande demais para me ocupar de Deus.

14. ─ Que diferença notais entre a religião que profes­sáveis e a religião cristã, quanto à felicidade futura do homem?

─ A religião cristã é absurda, pois considera a todos como irmãos.

15. ─ Qual a vossa opinião sobre Maomé?

─ Não era filho de rei.

16. ─ Ele tinha uma missão divina?

─ Que me importa isso?

17. ─ Qual a vossa opinião sobre o Cristo?

─ O filho do carpinteiro não é digno de ocupar meu pensamento.

18. ─ Que pensais do costume muçulmano de subtrair as mulheres aos olhares dos homens?

─ Penso que as mulheres foram feitas para dominar. Eu era mulher.

19. ─ Alguma vez invejastes a liberdade de que desfrutam as mulheres da Europa?

─ Não. Que me importava a sua liberdade? Elas são servidas de joelhos?

20. ─ Qual a vossa opinião sobre a condição da mulher em geral, na espécie humana?

─ Que me importam as mulheres? Se me falasses de rainhas!...

21. ─ Recordai-vos de ter tido outras existências na Terra, antes desta que acabais de deixar?

─ Devo ter sido sempre rainha.

22. ─ Por que viestes tão prontamente ao nosso apelo?

─ Eu não o queria; fui forçada... Pensais que me dignaria a responder? Quem sois vós junto de mim?

23. ─ Quem vos obrigou a vir?

─ Não sei... Entretanto, aqui não deve haver ninguém maior do que eu.

24. ─ Em que lugar aqui vos encontrais?

─ Perto de Ermance.

25. ─ Sob que forma aqui estais?

─ Sou sempre rainha... Pensais que eu haja deixado de o ser? Sois pouco respeitoso... Sabei que às rainhas se fala de outra maneira.

26. ─ Por que não vos podemos ver?

─ Eu não quero.

27. ─ Se pudéssemos ver-vos, seria com os vossos vestidos, ornatos e joias?

─ Certamente!

28. ─ Como é que tendo deixado tudo isso, vosso Espírito conservou a aparência, sobretudo de vossas vestes e joias?

─ Elas não me deixaram... Sou sempre tão bela quanto era... Não sei que ideia fazeis de mim! É verdade que nunca me vistes.

29. ─ Que impressão vos causa estardes em nosso meio?

─ Se eu pudesse não estaria aqui. Tratais-me com tão pouco respeito! Não quero que me tratem assim... Chamai-me Majestade, do contrário não responderei mais.

30. ─ Vossa Majestade compreendia a língua francesa?

─ Por que não? Eu sabia tudo.

31. ─ Gostaria Vossa Majestade de responder em inglês?

─ Não... Não me deixareis tranquila?... Quero ir embora... Deixai-me. Pensais que eu esteja submetida aos vossos caprichos?... Sou rainha e não escrava.

32. ─ Pedimos apenas a bondade de responder ainda a duas ou três perguntas.

Resposta de São Luís, que estava presente:

─ Deixai-a, pobre transviada! Tende piedade de sua cegueira. Que ela vos sirva de exemplo! Não sabeis quanto sofre o seu orgulho.

OBSERVAÇÃO: Esta conversa oferece vários ensinamentos. Evocando esta grandeza decaída, agora no túmulo, não esperávamos respostas muito profundas, dado o tipo de educação das mulheres daquele país. Pensávamos encontrar nesse Espírito, se não a filosofia, pelo menos um mais verdadeiro sentimento da realidade e ideias mais sadias sobre as vaidades e grandezas terrenas. Longe disto, nela as ideias terrenas conservavam toda a sua força: é o orgulho, que nada perde de suas ilusões; que luta contra sua própria fraqueza e que, na verdade, deve sofrer muito na sua impotência. Na previsão de respostas de natureza completamente diferentes, tínhamos preparado diversas perguntas que perderam a significação. As respostas foram tão diferentes daquilo que esperávamos, como também as pessoas presentes, que não poderíamos ver nelas a influência de um pensamento estranho. Elas têm, entretanto, um cunho tão característico de personalidade, que demonstram claramente a identidade do Espírito que se manifestou.

Com razão a gente se admira de ver Lemaire, o homem degradado e manchado por todos os crimes, manifestar, em sua linguagem de Além-Túmulo, sentimentos que denotam uma certa elevação e uma apreciação muito exata da situação, ao passo que na rainha de Oude, cuja posição social poderia ter nela desenvolvido o senso moral, as ideias terrenas não sofreram qualquer modificação. Parece fácil explicar a razão dessa anomalia. Por mais degradado que fosse, Lemaire vivia no meio de uma sociedade civilizada e esclarecida, que tinha reagido sobre sua natureza grosseira; sem o perceber, havia absorvido alguns raios da luz que o cercava e essa luz fez nascer nele pensamentos abafados por sua abjeção, mas cujo germe, nem por isso, deixava de subsistir.

A situação é completamente outra com a rainha de Oude: o meio em que viveu, os hábitos, a falta absoluta de cultura intelectual, tudo devia ter contribuído para manter em todo o seu vigor as ideias de que se imbuíra na infância. Nada pôde modificar essa natureza primitiva sobre a qual os preconceitos mantiveram todo o seu império.



[4] Esta manifestação está no livro O Céu e o Inferno, de Allan Kardec, capítulo VII, sob o título Espíritos endurecidos. ─ Oude é um antigo reino da Índia, cuja capital é Aódia (em inglês Luknow), entre o Ganges e o Himalaia. (N. da Eq. Rev.)

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