Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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A necessidade do desinteresse nos médiuns, atualmente, passou a ser de tal modo um princípio, que teria sido supérfluo publicar o fato acima, se ele não oferecesse, além da questão principal, um notável exemplo de coincidência e uma prova manifesta de identidade, pela similitude dos pensamentos e pelo cunho de originalidade que carregam, em geral, todas as comunicações do nosso antigo colega Jobard, a tal ponto que quando ele se manifesta espontaneamente na Sociedade, é raro que, desde as primeiras linhas, não se adivinhe o autor. Assim, não se ergueu nenhuma dúvida quanto à autenticidade das que acabamos de dar, ao passo que, na que nos haviam pedido que examinássemos, a trapaça salta aos olhos de quem conheça a linguagem e o caráter do Sr. Jobard, bem como os princípios que ele havia professado constantemente, como homem e como Espírito. Teria sido irracional admitir que subitamente ele tivesse mudado, em benefício dos interesses materiais de um indivíduo. A charlatanice era canhestra.

Quanto à questão do desinteresse, seria inútil repetir tudo quanto foi dito sobre esse ponto, e que se encontra admiravelmente resumido nas respostas do Sr. Jobard. Apenas acrescentaremos uma consideração, que não é sem importância.

Certos médiuns exploradores julgam salvar as aparências cobrando somente dos ricos, ou só aceitando uma contribuição voluntária. Em primeiro lugar, isto não é menos um ofício, a exploração de uma coisa santa, e um lucro tirado do que se recebe gratuitamente. Quando Jesus e os seus apóstolos ensinavam e curavam, não marcavam preço às suas palavras nem aos seus cuidados, posto não tivessem renda para viver. Por outro lado, esta maneira de operar não é garantia de sinceridade e não afasta a suspeita de charlatanismo. Sabe-se como considerar a filantropia no caso de consultas gratuitas oferecidas por certos médicos, bem como no caso de certos negociantes que vendem alguns artigos por preço muito baixo ou que os dão de graça. Em certas ocasiões a gratuidade é um meio de atrair a clientela produtiva.

Há, porém, outra consideração, ainda mais forte. Como reconhecer quem pode e quem não pode pagar? A aparência por vezes é enganadora, e muitas vezes uma roupa limpa oculta necessidade maior do que o macacão de um operário. Então é preciso declinar sua pobreza, seus títulos à caridade, ou exibir um atestado de indigência? Aliás, quem diz que o médium, mesmo admitindo de sua parte a mais completa sinceridade, terá para com aquele que não paga, ou que paga menos, a mesma solicitude que tem para com aquele que paga largamente, e que não dará a cada um conforme o dinheiro? Que, se um rico e um pobre a ele se dirigirem ao mesmo tempo, ele não receberá primeiro o rico, que apenas queria satisfazer uma curiosidade vã, ao passo que o atendimento do pobre que talvez esperasse uma suprema consolação será adiado? Involuntariamente, sua consciência estará sujeita à tentação da preferência. Ele será levado a olhar melhor para o que paga, mesmo que este lhe atirasse com desdém uma moeda de ouro como a um mercenário, ao passo que olhará no mínimo com indiferença as parcas moedas que lhe apresentará timidamente o pobre envergonhado. São tais sentimentos compatíveis com o Espiritismo? Não é manter entre o rico e o pobre essa demarcação humilhante que já fez tanto mal, e que o Espiritismo deve fazer desaparecer, provando a igualdade do rico e do pobre perante Deus, que não mede os raios de seu Sol pela fortuna, e que não pode a ela subordinar mais as consolações do coração que ele dá aos homens pelos bons Espíritos, seus mensageiros?

Sinceramente, se houvesse uma escolha a fazer, preferiríamos ainda o médium que cobrasse sempre, porque ao menos não há hipocrisia; sabe-se imediatamente como considerá-lo.

Além do mais, a multiplicidade sempre crescente dos médiuns em todas as camadas sociais e no seio da maioria das famílias, tira à mediunidade remunerada toda utilidade e toda razão de ser. Essa multiplicidade dará fim à exploração, quando mais não fosse pelo sentimento de repulsa que a ela se liga.

Assinalam-nos o encerramento das atividades, numa cidade provinciana, de um grupo antigo e numeroso, organizado com propósitos interesseiros. O chefe desse grupo, assim como sua família, tinha abandonado seu ofício sob o especioso pretexto de devotamento à causa, à qual queria consagrar todo o seu tempo. Ela a havia substituído pelos recursos que esperava tirar do Espiritismo. Infelizmente, a exploração da mediunidade está de tal modo desacreditada no interior que, na maior parte das cidades, quem a transformasse em profissão, ainda que tivesse as mais transcendentes faculdades, nenhuma confiança inspiraria. Ele aí seria muito mal visto e todos os grupos sérios lhe fechariam as portas. A especulação não correspondeu à expectativa, e o chefe desse grupo ter-se-ia lamentado junto aos seus frequentadores, ao que se diz, por seu estado precário, e teria pedido ajuda, ao que ter-lhe-iam respondido que se estava em dificuldades a culpa era sua; que ele tinha errado em fechar a sua oficina para viver do Espiritismo e cobrar pelas instruções que os Espíritos lhe davam de graça. A isto ele respondeu culpando os Espíritos. Em nove médiuns presentes aos quais a questão foi apresentada, oito receberam comunicações censurando sua maneira de agir; só um o aprovou: era a sua esposa. Submetendo-se de boa vontade ao conselho dos Espíritos, o chefe do grupo anunciou que a partir daquele momento seu grupo estaria fechado. Sem dúvida teria sido mais sábio escutar mais cedo os conselhos que há muito tempo lhe eram dados por amigos sinceros do Espiritismo.

Um outro grupo, em condições mais ou menos idênticas, se viu aos poucos abandonado por seus frequentadores e finalmente forçado a se dissolver.

Assim, eis dois grupos que sucumbem sob a pressão da opinião. Escrevem-nos que o texto da Imitação do Evangelho em seus itens 392 e seguintes sem dúvida não é estranho a esse resultado. Aliás, é impossível que um espírita sincero, compreendendo a essência e os verdadeiros interesses da doutrina, se torne defensor e suporte de um abuso que inevitavelmente tenderia a desacreditá-la. Nós os convidamos a desconfiarem das armadilhas que os inimigos do Espiritismo lhes tentassem armar sob tal propósito. Sabe-se que em falta de boas razões para combatê-lo, uma de suas táticas é buscar arruiná-lo por si mesmo. Assim, vê-se com que ardor espiam as ocasiões de pilhá-lo em falta ou em contradição consigo mesmo. É por isto que os Espíritos nos dizem, sem cessar, que vigiemos e nos mantenhamos em guarda.

Quanto a nós, não ignoramos que nossa persistência em combater o abuso de que falamos não transformou em nossos amigos aqueles que viram no Espiritismo um objeto de exploração, nem aqueles que os sustentam. Mas, que nos importa a oposição de alguns indivíduos?! Defendemos um princípio verdadeiro, e nenhuma consideração pessoal nos fará recuar ante o cumprimento de um dever. Nossos esforços tenderão sempre a preservar o Espiritismo da invasão da venalidade. O momento presente é o mais difícil, mas à medida que a doutrina for melhor compreendida, essa invasão será menos temível. A opinião das massas opor-lhe-á uma barreira intransponível. O princípio do desinteresse, que satisfaz ao mesmo tempo o coração e a razão, terá sempre as mais numerosas simpatias e o levará à vitória, pela força das coisas, sobre o princípio da especulação.

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