9. Esta doutrina suscita várias objeções.
1.º —
Se Satã e os demônios eram anjos, é porque eram perfeitos; como, sendo
perfeitos, puderam falhar e ignorar a esse ponto a autoridade de Deus,
na presença do qual se encontravam? Conceber-se-ia ainda que, se não
tivessem chegado a esse grau eminente senão gradualmente e depois de
terem passado pelo caminho da imperfeição, pudessem ter tido um retorno
deplorável; mas o que torna a coisa mais incompreensível é que no-los
representam como tendo sido criados perfeitos. A consequência dessa
teoria é esta: Deus quisera criar neles seres perfeitos, visto que os
cumulara de todos os dons, e enganou-se; portanto, segundo a Igreja, Deus
não é infalível.*
2.º — Visto que nem a Igreja nem os anais da história
santa se explicam sobre a causa da revolta dos anjos contra Deus, que
somente parece certo que ela esteve na recusa deles de reconhecer a
missão futura do Cristo, que valor pode ter o quadro tão preciso e tão
detalhado da cena que ocorreu naquela ocasião? De que fonte foram
tiradas as palavras tão nítidas relatadas como tendo sido pronunciadas, e
até os simples murmúrios? De duas coisas uma: ou a cena é verdadeira,
ou não o é. Se é verdadeira, não há nenhuma incerteza, e então por que a
Igreja não decide a questão? Se a Igreja e a história se calam, se a
causa só parece certa, não é senão uma suposição, e a descrição da cena é
uma obra de imaginação.**
3.º — As palavras atribuídas a Lúcifer acusam uma
ignorância que é espantoso encontrar num arcanjo que, por sua própria
natureza e no grau em que está colocado, não deve compartilhar, sobre a
organização do universo, os erros e os preconceitos que os homens
professaram até que a ciência tivesse vindo esclarecê-los. Como pode ele
dizer: “Estabelecerei minha morada acima dos astros; dominarei as
nuvens mais altas”? É sempre a antiga crença na terra como centro do
mundo, no céu das nuvens que se estende até às estrelas, à região
limitada das estrelas formando abóbada, e que a astronomia nos mostra
disseminadas ao infinito, no espaço infinito. Como se sabe hoje que as
nuvens não se estendem além de duas léguas da superfície da terra, para
dizer que ele dominará as nuvens mais altas, e falar das montanhas, era
preciso que a cena se passasse na superfície da terra, e que fosse aí a
morada dos anjos; se essa morada é nas regiões superiores, era inútil
dizer que ele se elevaria além das nuvens. Fazer os anjos terem uma
linguagem marcada pela ignorância, é admitir que os homens, hoje, sabem
mais do que os anjos. A Igreja sempre cometeu o erro de não levar em
conta os progressos da ciência.
* Esta doutrina monstruosa é afirmada por Moisés, quando diz (Gênesis, cap. VI, v. 6 e 7): “Ele
se
arrependeu de ter feito o homem na terra. E, tocado de dor até ao fundo do coração, — ele
disse: ‘Exterminarei da superfície da terra o homem que criei; exterminarei tudo, desde o
homem até os animais, desde tudo o que rasteja sobre a terra até os pássaros do céu: pois
eu
me arrependo
de tê-los feito.’”
Um Deus que se arrepende do que fez não é perfeito nem infalível: logo, não é Deus.
São, no entanto, as palavras que a Igreja proclama como verdades santas. Também não se vê
muito bem o que havia em comum entre os animais e a perversidade dos homens para
merecerem seu extermínio.
** Encontra-se em Isaías, cap. XIV, v. 11 e seguintes: — “Teu orgulho foi precipitado nos
infernos; teu corpo morto caiu por terra; tua cama será tua podridão, e tua vestimenta serão os
vermes. — Como caíste do céu, Lúcifer, tu que parecias tão brilhante ao alvorecer? Como foste
jogado na terra, tu que golpeavas as nações; — que dizias em teu coração: Subirei ao céu,
estabelecerei meu trono acima dos astros de Deus, sentar-me-ei na montanha da aliança, nos
flancos do Aquilão; colocar-me-ei acima das nuvens mais altas, e serei semelhante ao
Altíssimo? — E no entanto foste precipitado dessa glória no inferno, até o mais profundo dos
abismos. — Aqueles que te virem aproximar-se-ão de ti, e, depois de te terem encarado, dir-te-ão: Foi esse homem que apavorou a terra, que semeou o terror nos reinos, que fez do mundo
um deserto, que destruiu suas cidades, e que manteve acorrentados aqueles que fizera
prisioneiros?”
Estas palavras do profeta não são relativas à revolta dos anjos, mas uma alusão ao
orgulho e à queda do rei da Babilônia, que mantinha os judeus em cativeiro, assim como
provam os últimos versículos. O rei da Babilônia é designado, por alegoria, sob o nome de
Lúcifer, mas não é aí feita nenhuma menção à cena descrita anteriormente. Estas palavras são
as do rei que dizia em seu coração, e se colocava, por seu orgulho, acima de Deus, cujo povo
mantinha cativo. A predição da libertação dos judeus, da ruína da Babilônia e da derrota dos
assírios é, aliás, o assunto exclusivo deste capítulo.