Refutação.
Várias dificuldades capitais resultam desse sistema. Qual é, primeiro, essa vida puramente material? Trata-se da matéria bruta? Mas a matéria bruta é inanimada e não tem vida por si mesma. Quer-se falar das plantas e dos animais? Seria então uma quarta ordem na criação, pois não se pode negar que haja no animal inteligente mais do que numa planta, e nesta mais do que numa pedra. Quanto à alma humana, ela está unida diretamente a um corpo que é apenas matéria bruta, pois, sem alma, ele não tem mais vida do que um torrão de terra.
Esta divisão carece evidentemente de clareza, e não concorda em nada com a observação; parece-se com a teoria dos quatro elementos derrubada pelos progressos da ciência. Admitamos, entretanto, estes três termos: a criatura espiritual, a criatura humana e a criatura corporal; diz-se que é esse o plano divino, plano majestoso e completo, como convinha à sabedoria eterna. Notemos inicialmente que entre esses três termos não há nenhuma ligação necessária; são três criações distintas, formadas sucessivamente; de uma à outra, há solução de continuidade; ao passo que, na natureza, tudo se encadeia, tudo nos mostra uma admirável lei de unidade, da qual todos os elementos, que não são senão transformações uns dos outros, têm um elemento de ligação entre si. Esta teoria é verdadeira, no sentido em que esses três termos existem evidentemente; somente, ela é incompleta: faltam os pontos de contato, como é fácil demonstrar.
Contudo, o concílio de Latrão, concílio ecumênico que dita a lei em matéria de ortodoxia, diz: “Nós cremos firmemente que não há senão um verdadeiro Deus, eterno e infinito, o qual, no começo dos tempos, tirou juntas do nada uma e outra criatura, a espiritual e a corporal.” O começo dos tempos só se pode entender referente à eternidade transcorrida, pois o tempo é infinito, como o espaço: ele não tem começo nem fim. Esta expressão “o começo dos tempos” é uma figura que implica a ideia de uma anterioridade ilimitada. O concílio de Latrão crê então firmemente que as criaturas espirituais e as criaturas corporais foram formadas simultaneamente, e tiradas juntas do nada numa época indeterminada no passado. O que se torna então o texto bíblico, que fixa essa criação há seis mil anos? Admitindo que seja esse o começo do universo visível, não é seguramente o do tempo. Em qual acreditar, no do concílio ou no da Bíblia?
No entanto, a alma é imortal e o corpo é mortal; sua união com o corpo ocorre apenas uma vez, segundo a Igreja e, ainda que durasse um século, o que é isso comparado à eternidade? Mas, para muitíssimos, ela é apenas de algumas horas; de que utilidade pode ser para a alma essa união efêmera? Quando, em relação à eternidade, sua maior duração é um tempo imperceptível, será exato dizer que seu destino é estar essencialmente ligada ao corpo? Essa união não é na realidade mais do que um acidente, um ponto na vida da alma, e não seu estado essencial.
Se o destino essencial da alma é estar unida a um corpo material; se, pela sua natureza e segundo o objetivo providencial de sua criação, essa união é necessária às manifestações de suas faculdades, é preciso concluir daí que, sem o corpo, a alma humana é um ser incompleto; ora, para permanecer o que ela é por seu destino, após ter deixado um corpo, é preciso que ela retome outro, o que nos conduz à pluralidade forçosa das existências, dito de outro modo, à reencarnação perpétua. É verdadeiramente estranho que um concílio visto como uma das luzes da Igreja tenha identificado a esse ponto o ser espiritual e o ser material, que não podem de certa maneira existir um sem o outro, visto que a condição essencial de sua criação é estarem unidos.
6. O quadro hierárquico dos anjos nos ensina que muitas ordens têm, em suas atribuições, a direção do mundo físico e da humanidade, e que elas foram criadas com esse fim. Mas, segundo a Gênese, o mundo físico e a humanidade não existem senão há seis mil anos. O que faziam, então, os anjos antes desse tempo, durante a eternidade, quando os objetos de suas ocupações não existiam ainda? Os anjos foram criados desde toda a eternidade? Assim deve ter sido, pois eles servem à glorificação do Altíssimo. Se Deus os tivesse criado em uma época determinada, ele teria ficado, até ela, durante uma eternidade inteira sem adoradores.
É dito ainda: “As ideias chegam-lhe pelos sentidos, pela comparação com os objetos exteriores”. Essa é uma doutrina filosófica em parte verdadeira, mas não no sentido absoluto. É, segundo o eminente teólogo, uma condição inerente à natureza da alma, não receber as ideias a não ser pelos sentidos; ele esquece as ideias inatas, as faculdades por vezes tão transcendentes, a intuição das coisas que a criança traz ao nascer e que não deve a nenhuma instrução. Por que sentido esses jovens pastores, calculadores naturais que espantaram os estudiosos, adquiriram as ideias necessárias à solução quase instantânea dos problemas mais complicados? Pode-se dizer o mesmo de certos músicos, pintores e linguistas precoces.
“Os conhecimentos dos anjos não são o resultado da indução e do raciocínio”; eles sabem porque são anjos, sem ter necessidade de aprender; Deus criou-os assim: a alma, ao contrário deve aprender. Se a alma recebe as ideias apenas pelos órgãos corporais, quais são as que pode ter a alma de uma criança morta ao fim de alguns dias, admitindo, com a Igreja, que ela não renasça?
Se ela adquire novos conhecimentos depois da vida atual, é que ela pode progredir. Sem o progresso ulterior da alma, chega-se a consequências absurdas; com o progresso, chega-se à negação de todos os dogmas baseados no seu estado estacionário: o destino irrevogável, as penas eternas, etc. Se ela progride, onde se detém o progresso? Não há nenhuma razão para que ela não atinja o grau dos anjos ou puros Espíritos. Se ela pode chegar lá, não havia nenhuma necessidade de criar seres especiais e privilegiados, isentos de todo labor, e gozando da bem-aventurança eterna sem ter feito nada para conquistá-la, ao passo que outros seres menos favorecidos obtêm a suprema felicidade apenas à custa de longos e cruéis sofrimentos e das provas mais rudes. Deus pode, sem dúvida, mas se se admitir o infinito de suas perfeições, sem as quais não há Deus, é preciso admitir também que ele não faz nada inútil, nem nada que desminta a soberana justiça e a soberana bondade.
Não é rebaixar a Divindade comparar sua glória ao fausto dos soberanos da terra? Essa ideia, inculcada no espírito das massas ignorantes, falseia a opinião que se faz de sua verdadeira grandeza; é sempre Deus reduzido às mesquinhas proporções da humanidade; supor-lhe a necessidade de ter milhões de adoradores incessantemente prosternados ou de pé diante dele é emprestar-lhe as fraquezas dos monarcas déspotas e orgulhosos do Oriente. O que faz os soberanos verdadeiramente grandes? É a quantidade e o esplendor de seus cortesãos? Não; é sua bondade e sua justiça, é o merecido título de pais de seus súditos. Pergunta-se se há algo mais capaz de nos dar uma ideia da majestade de Deus do que a multidão de anjos que compõe sua corte? É certo que há algo melhor do que isso: é representá-lo soberanamente bom, justo e misericordioso para todas as suas criaturas; e não como um Deus colérico, ciumento, vingativo, inexorável, exterminador, parcial, criando para sua própria glória esses seres privilegiados, favorecidos com todos os dons, nascidos para a eterna felicidade, ao passo que aos outros ele faz adquirir penosamente a felicidade, e pune um momento de erro com uma eternidade de suplícios. . .