Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1868

Allan Kardec

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O jornal La Solidarité

O jornal la Solidarité, do qual falamos na Revista de junho de 1868, continua a ocupar-se do Espiritismo, com o tom de discussão séria que caracteriza essa folha eminentemente filosófica.

Sob o título de Pesquisas psicológicas a propósito de Espiritismo, o número de 1º de julho contém um artigo do qual extraímos as seguintes passagens:

“Há bem poucos jornais que se podem dizer independentes. Quero dizer de uma verdadeira independência, aquela que permite tratar de um assunto sem preocupação de partido, de igreja, de escola, de faculdade, de academia; melhor que isto: sem preocupação com o público, com seu próprio público de leitores e de assinantes, e não se inquietando senão em pesquisar a verdade e proclamá-la. O Solidarité tem essa vantagem muito rara de enfrentar até a perda de assinantes ─ pois não vive senão de sacrifícios ─ e de estar colocado muito alto nas regiões do pensamento para temer as flechas do ridículo.

“Tratando do Espiritismo, sabíamos que não satisfaríamos a ninguém, nem aos crentes nem aos incrédulos; ninguém, a não ser, talvez, as pessoas que não têm uma ideia preconcebida sobre a questão. Esses sabem que não sabem. Esses são os sábios, e são pouco numerosos.”

O autor descreve a seguir o fenômeno material das mesas girantes, que explica pela eletricidade humana, declarando nada ver que acuse uma intervenção estranha.

É o que temos dito desde o começo.

Ele continua:

“Enquanto não temos senão que explicar o movimento automático dos objetos, não necessitamos ir além do que é obtido nas ciências físicas. Mas a dificuldade aumenta quando chegamos aos fenômenos de natureza intelectual.

“Depois de se haver contentado em dançar, a mesa logo se pôs a responder às perguntas. Desde então, como duvidar que aí houvesse uma inteligência? A crença vaga nos Espíritos tinha suscitado o movimento dos objetos materiais, porque é evidente que sem esse a priori, jamais se teriam lembrado de fazer girar as mesas. Essa crença, achando-se confirmada pelas aparências, deveria levar a dar mais um passo. Considerando-se que o Espírito é a causa do movimento das mesas, deveria vir o pensamento de interrogá-lo.

As primeiras manifestações inteligentes, diz o Sr. Allan Kardec, se deram por meio de mesas que se erguiam e batiam com um pé um determinado número de pancadas, e respondiam assim, por um sim ou por um não, conforme a convenção, a uma pergunta formulada. A seguir obtiveram-se respostas mais desenvolvidas pelas letras do alfabeto. Com o objeto móvel batendo um número de pancadas correspondente ao número de ordem de cada letra, chegou-se a formular palavras e frases, respondendo às perguntas feitas. A justeza das respostas e sua correlação excitaram a admiração. O ser misterioso que assim respondia, interrogado sobre a sua natureza, declarou que era Espírito ou Gênio, deu o seu nome e forneceu diversas informações por sua conta.”

“Esse meio de correspondência era longo e incômodo, como observa muito justamente o Sr. Allan Kardec. Não tardou que fosse substituído pela corbelha, depois pela prancheta. Hoje esses meios estão geralmente abandonados, e os crentes se reportam ao que maquinalmente escreve a mão do médium, sob o ditado do Espírito.

“É difícil saber qual a parte do médium nos produtos mais ou menos inspirados de sua pena; também não é fácil determinar o grau de automatismo de uma corbelha ou de uma prancheta, quando estes objetos estão colocados sob mãos vivas. Mas se a correspondência pela mesa é lenta e pouco cômoda, permite constatar a passividade do instrumento. Para nós, a relação intelectual por meio da mesa está tão bem estabelecida quanto a da correspondência telegráfica. O fato é real. Apenas se trata de saber se existe o correspondente de além-túmulo. Há um Espírito, um ser invisível com o qual se corresponde, ou os operadores são vítimas de uma ilusão e não estão em contato senão consigo mesmos? Eis a questão.

“Atribuímos à eletricidade emitida pela máquina humana os movimentos mecânicos das mesas; não temos que procurar alhures senão na alma humana o agente que imprime a esses movimentos um caráter inteligente. Representando a eletricidade como um fluido elástico de extrema sutileza, que se interpõe entre as moléculas dos corpos e os cerca como que de uma atmosfera, pode-se muito bem compreender que a alma, graças a esse envoltório, faça sentir sua ação sobre todas as partes do corpo, sem nele ocupar um lugar determinado, e que a unidade do eu esteja, ao mesmo tempo, em todos os lugares que sua atmosfera pode atingir. A ação pelo contato então ultrapassa a periferia do corpo, e as vibrações etéreas ou fluídicas, comunicando-se de uma atmosfera à outra, podem produzir entre os seres em relação, efeitos à distância. Há nisso tudo um mundo a estudar. As forças aí se influenciam e aí se transformam segundo as leis dinâmicas conhecidas, mas os seus efeitos variam com o ritmo dos movimentos moleculares e conforme esses movimentos se exerçam por vibração, por ondulação ou por oscilação. Mas, aconteça o que acontecer com essas teorias que estão longe de haver atingido a positividade necessária para tomar lugar na Ciência, nada se opõe a que consideremos o eu humano como estendendo à tábua a ação de sua espontaneidade, dela se servindo como de um apêndice ao seu sistema nervoso, para manifestar movimentos voluntários.

“O que mais frequentemente provoca ilusão nestas espécies de correspondências telegráficas, é que o eu de cada um dos assistentes não pode mais se reconhecer na resultante da coletividade. A representação subjetiva que se faz no espírito do médium, pelo concurso desta espécie de fotografia, pode não parecer com nenhum dos assistentes, embora sem dúvida a maioria tenha fornecido algum traço. Entretanto é raro, se observarmos com cuidado, que não encontremos mais particularmente a imagem de um dos operadores que foi instrumento passivo da força coletiva. Não é um Espírito ultramundano que fala na sala, é o espírito do médium, mas o espírito do médium talvez dublê do espírito de tal assistente que o domina muitas vezes sem que nenhum deles o saiba, e exaltado por forças que lhe vêm, como de diversas correntes eletromagnéticas, do concurso dado pelos assistentes[1].

“Vimos muitas vezes a personalidade do médium trair-se por erros ortográficos, por erros históricos ou geográficos que ele cometia habitualmente e que não podiam ser atribuídos a um Espírito realmente distinto de sua própria pessoa.

“Uma coisa das mais comuns nos fenômenos desta natureza é a revelação de segredos que o interrogante não julgava conhecidos por ninguém; mas ele esquece que esses segredos são conhecidos por aquele que interroga, e que o médium pode ler em seu pensamento. Para isto é necessária uma certa relação mental; mas essa relação é estabelecida por uma derivação da corrente nervosa que envolve cada indivíduo, mais ou menos como se poderia desviar a centelha elétrica, interceptando a linha telegráfica e a substituindo por um novo fio condutor. Tal faculdade é muito menos rara do que se pensa. A comunicação do pensamento é um fato admitido por todas as pessoas que se ocuparam de magnetismo, e é fácil para cada um se convencer da frequência e da realidade do fenômeno.

“Somos obrigados a deslizar sobre essas explicações muito imperfeitas. Elas não bastam, bem o sabemos, para infirmar a crença nos Espíritos, naqueles que julgam ter provas evidentes de sua intervenção.

“Não lhes podemos opor provas da mesma natureza. A crença em individualidades espirituais não só nada tem de irracional, mas nós a consideramos inteiramente natural. Nossa convicção profunda, como sabeis, é que o eu humano persiste em sua identidade após a morte, e que ele recupera, depois de sua separação do organismo terrestre, todas as suas aquisições anteriores. Que a pessoa humana esteja, então, revestida de um organismo de uma natureza etérea, é o que nos parece perfeitamente provável. O perispírito desses senhores assim não nos repugna. Então, o que é que nos separa? Nada de fundamental. Nada, a não ser a insuficiência de suas provas. Nós não achamos que as relações espíritas entre os mortos e os vivos sejam constatadas pelos movimentos das mesas, pelas correspondências, pelos ditados. Nós cremos que os fenômenos físicos se explicam fisicamente, e que os fenômenos psíquicos são causados pelas forças inerentes à alma dos operadores. Falamos do que vimos e estudamos com muito cuidado. Nada conhecemos, até aqui, entre as inspirações dos médiuns, que não tivesse podido ser produzido pelo cérebro vivo, sem o concurso de qualquer força celeste, e a maior parte de suas produções estão abaixo do nível intelectual do meio em que vivemos.

“Num próximo artigo examinaremos as doutrinas filosóficas e religiosas do Espiritismo, e notadamente as de que o Sr. Allan Kardec apresentou a síntese no seu último volume, intitulado A Gênese segundo o Espiritismo.

Sem dúvida haveria muita coisa a responder sobre este artigo. Contudo, não o refutaremos, porque seria repetir o que tantas vezes temos escrito sobre o mesmo assunto. Temos a satisfação de reconhecer, com o autor, que a distância que ainda o separa de nós é pouca coisa: não é senão o fato material das relações diretas entre o mundo visível e o mundo invisível. Entretanto, essa pouca coisa é muito, por suas consequências.

Aliás, é importante notar que se ele não admite essas relações, também não as nega de maneira absoluta; nem repugna à sua razão conceber a sua possibilidade; com efeito, essa possibilidade decorre, muito naturalmente, do que ele admite. O que lhe falta, diz ele, são as provas do fato das comunicações. Ora! Essas provas lhe chegarão, mais cedo ou mais tarde; ele as encontrará, quer na observação atenta das circunstâncias que acompanham certas comunicações mediúnicas, quer na inumerável variedade das manifestações que se produziam antes do Espiritismo, e ainda se produzem em pessoas que não o conhecem e nele não acreditam, e nas quais, consequentemente, não se poderia admitir a influência de uma ideia preconcebida. Seria preciso ignorar os primeiros elementos do Espiritismo para crer que o fato das manifestações não se produz senão entre os adeptos.

Esperando, e ainda mesmo que aí devesse deter-se a sua convicção, seria desejável que todos os materialistas chegassem a esse ponto. Devemos, então, felicitar-nos por contá-lo, entre os homens de valor, pelo menos simpático à ideia geral, e por ver um jornal recomendável por seu caráter sério e sua independência, combater conosco a incredulidade absoluta em matéria de espiritualidade, bem como os abusos que fizeram do princípio espiritual. Marchamos para o mesmo fim por vias diferentes, mas convergindo para um ponto comum e nos aproximando cada vez mais pelas ideias; algumas dissidências sobre questões de detalhe não nos devem impedir de nos darmos as mãos.

Neste tempos de efervescência e de aspiração por um melhor estado de coisas, cada um traz sua pedra para a edificação do mundo novo; cada um trabalha de seu lado, com os meios que lhe são próprios. O Espiritismo traz o seu contingente, que ainda não está completo, mas como ele não é exclusivo, não rejeita nenhum concurso; ele aceita o bem que pode servir à grande causa da Humanidade, venha de onde vier, mesmo que venha dos seus adversários.

Como dissemos no começo, não empreenderemos a refutação da teoria exposta no Solidarité sobre a fonte das manifestações inteligentes. Sobre isto apenas diremos poucas palavras.

Como se vê, essa teoria não é outra senão um dos primeiros sistemas que surgiram na origem do Espiritismo, quando a experiência ainda não havia elucidado a questão. Ora, é notório que tal opinião está hoje reduzida a algumas raras individualidades. Se ela estivesse certa, por que não teria prevalecido? Como é que milhões de espíritas que há quinze anos fazem experiências no mundo inteiro e em todas as línguas, que se recrutam em sua maioria na classe esclarecida, que contam em suas fileiras homens de saber e de incontestável valor intelectual, tais como médicos, engenheiros, magistrados etc., teriam constatado a realidade das manifestações, se ela não existisse? Podemos admitir razoavelmente que todos se tenham iludido? Que não se tenham encontrado entre eles homens de bastante bomsenso e de perspicácia para reconhecer a verdadeira causa? Como dissemos, essa teoria não é nova e não passou despercebida entre os espíritas; ao contrário, tem sido seriamente meditada e explorada por eles, e é precisamente porque a viram desmentida pelos fatos, impotente para explicá-los todos, que ela foi abandonada.

É grave erro crer que os espíritas tenham vindo com a ideia preconcebida da intervenção dos Espíritos nas manifestações; se assim foi com alguns, a verdade é que a maioria deles não chegou à crença senão depois de ter passado pela dúvida ou pela incredulidade.

É igualmente um erro crer que, sem o a priori da crença nos Espírito, jamais se tivessem lembrado de fazer girar as mesas. O fenômeno das mesas girantes e falantes era conhecido nos tempos de Tertuliano e na China de épocas imemoriais. Na Tartária e na Sibéria conheciam as mesas volantes[2]. Em certas províncias da Espanha servem-se de peneiras suspensas pelas pontas de tesouras. Os que interrogam pensam que são Espíritos que respondem? Absolutamente. Perguntailhes o que é e eles não sabem; são as mesas e as peneiras dotadas de uma força desconhecida; eles interrogam esses movimentos como os da varinha de condão, sem ir além do fato material.

Os fenômenos espíritas modernos não começaram pelas mesas girantes, mas pelas pancadas espontâneas dadas nas paredes e nos móveis; esses ruídos causaram espanto, surpreenderam; seu modo de percussão tinha algo de insólito, um caráter intencional, uma persistência que parecia indicar um ponto determinado, como quando alguém bate para chamar a atenção. Os primeiros movimentos de mesas ou outros objetos foram igualmente espontâneos, como ainda hoje o são em certos indivíduos que não têm qualquer conhecimento do Espiritismo. Dá-se aqui como na maior parte dos fenômenos naturais que se produzem diariamente e nada obstante passam desapercebidos, cuja causa fica ignorada, até o momento em que observadores sérios e mais esclarecidos prestem atenção neles, estudem-nos e os explorem.

Assim, de duas teorias contrárias nascidas na mesma época, uma cresce com o tempo, por força da experiência, generaliza-se, ao passo que a outra se extingue. Em favor da qual há presunção de verdade e de sobrevivência? Não damos isto como prova, mas como um fato que merece ser levado em consideração.

O Sr. Fauvety apoia-se em que nada encontrou nas comunicações mediúnicas que ultrapasse o alcance do cérebro humano. Eis aí, ainda, uma velha objeção cem vezes refutada pela própria Doutrina Espírita. Alguma vez o Espiritismo teria dito que os Espíritos são seres fora da Humanidade? Ao contrário, ele vem destruir o preconceito que deles faz seres excepcionais, anjos ou demônios, intermediários entre os homens e a Divindade, espécies de semideuses.

Ele repousa sobre o princípio que os Espíritos não são senão homens despojados de seu envoltório material; que o mundo visível se derrama incessantemente, pela morte, no mundo invisível, e este no mundo carnal pelos nascimentos.

Desde que os Espíritos pertencem à Humanidade, por que haveriam de querer que eles tivessem uma linguagem sobre-humana? Nós sabemos que alguns dentre eles não sabem mais, e por vezes sabem muito menos que certos homens, porquanto se instruem com estes últimos; os que eram incapazes de fazer obras-primas quando vivos, não as farão como Espíritos; o Espírito de um hotentote não falará como um acadêmico, e o Espírito de um acadêmico, que não passa de um ser humano, não falará como um deus.

Não é, pois, na excentricidade de suas ideias e pensamentos, na superioridade excepcional de seu estilo, que se deve buscar a prova da origem espiritual das comunicações, mas nas circunstâncias que atestam que, numa multidão de casos, o pensamento não pode vir de um encarnado, mesmo que fosse da mais banal trivialidade.

Desses fatos ressalta a prova da existência do mundo invisível em cujo meio vivemos, e por isto os Espíritos do mais baixo escalão o provam tão bem quanto os mais elevados. Ora, a existência do mundo invisível em nosso meio, parte integrante da Humanidade terrena, desaguadouro das almas desencarnadas e fonte das almas encarnadas, é um fato capital, imenso; é toda uma revolução nas crenças; é a chave do passado e do futuro do homem, que em vão procuraram todas as filosofias, como os sábios em vão buscaram a chave dos mistérios astronômicos antes de conhecer a lei da gravitação. Que acompanhem a fieira das consequências forçadas deste único fato: a existência do mundo invisível em torno de nós, e chegarão a uma transformação completa, inevitável, nas ideias, para a destruição dos preconceitos e dos abusos delas decorrentes e, por consequência, a uma modificação das relações sociais.

Eis aonde leva o Espiritismo. Sua doutrina é o desenvolvimento, a dedução das consequências do fato principal, cuja existência ele acaba de revelar. Suas consequências são inumeráveis, porque pouco a pouco elas atingem todos os ramos da ordem social, tanto no físico quanto no moral. É o que compreendem todos os que se deram ao trabalho de estudá-lo seriamente, e que compreenderão ainda melhor mais tarde, mas não os que, só lhe tendo visto a superfície, imaginam que ele esteja todo inteiro numa mesa que gira ou em perguntas pueris sobre a identidade de Espíritos.

Para maiores desenvolvimentos das questões tratadas neste artigo, remetemos ao primeiro capítulo de A Gênese: Caráter da revelação espírita[3].



[1] Ver, para resposta a várias proposições contidas neste artigo: O Livro dos Médiuns, Cap. IV, Sistemas. ─ Introdução de O Livro dos Espíritos. Que é o Espiritismo? Cap. I, Pequena Conferência.


[2] Revista Espírita de outubro de 1859.


[3] Publicado em brochura separada. Preço, 15 centavos; pelo correio, 20 centavos.


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