Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Da apreensão da morte

O homem, seja qual for o grau da escala social a que pertença, a partir do estado selvageria, tem o sentimento inato do futuro. Diz-lhe a intuição que a morte não é a última palavra da existência e que aqueles que lamentamos não estão perdidos para sempre. A crença no futuro é intuitiva e infinitamente mais geral que a no nada. Como é, pois, que, entre os que creem na imortalidade da alma, ainda se encontra tanto apego às coisas da Terra, e tão grande temor da morte?

O temor da morte é efeito da sabedoria da Providência, e uma consequência do instinto de conservação comum a todos os seres vivos. Ela é necessária enquanto o homem não for bastante esclarecido quanto às condições da vida futura, como contrapeso ao arrastamento que sem esse freio o levaria a deixar prematuramente a vida terrestre e a negligenciar o trabalho daqui, que deve servir para o seu próprio adiantamento.

É por isto que nos povos primitivos o futuro não é mais que uma vaga intuição, depois uma simples esperança, e mais tarde, enfim, uma certeza, mas ainda contrabalançada por um secreto apego à vida corporal.

À medida que o homem melhor compreende a vida futura, diminui o temor da morte, mas, ao mesmo tempo, melhor compreendendo a sua missão na Terra, ele espera seu fim com mais calma, resignação e sem medo. A certeza da vida futura dá outro curso às suas ideias, outro objetivo a seus trabalhos. Antes de ter essa certeza, ele só trabalha para o presente; com essa certeza ele trabalha em vista do futuro, sem negligenciar o presente, porque sabe que seu futuro depende da direção mais ou menos boa que der ao presente. A certeza de reencontrar os amigos após a morte; de continuar as relações que teve na Terra; de não perder o fruto de nenhum trabalho e de crescer incessantemente em inteligência e em perfeição, lhe dá paciência para esperar e coragem para suportar as momentâneas fadigas da vida terrena. A solidariedade que vê estabelecer-se entre os mortos e os vivos lhe faz compreender a que deve existir entre os vivos, e a partir de então, a fraternidade tem sua razão de ser e a caridade um objetivo no presente e no futuro.

Para libertar-se das apreensões da morte, deve poder encará-la sob seu verdadeiro ponto de vista, isto é, ter penetrado por pensamento no mundo invisível e dele ter feito uma ideia tão exata quanto possível, o que denota no Espírito encarnado um certo desenvolvimento e uma certa aptidão para se desprender da matéria. Naqueles que não são suficientemente avançados, a vida material ainda predomina sobre a vida espiritual. Ligando-se ao exterior, o homem só vê vida no corpo, ao passo que a vida real está na alma. Estando o corpo privado de vida, aos seus olhos tudo está perdido e ele se desespera. Se, em vez de concentrar o pensamento na vestimenta externa, ele a voltasse para a própria fonte da vida, sobre a alma, que é o ser real a tudo sobrevivente, lamentaria menos o corpo, fonte de tantas misérias e dores. Mas para isto é preciso uma força que o Espírito só adquire com a maturidade.

O temor da morte tem sua razão de ser, portanto, na insuficiência das noções sobre a vida futura, mas denota a necessidade de viver, e o medo que a destruição do corpo seja o fim de tudo. É, assim, provocado pelo secreto desejo da sobrevivência da alma, ainda velada pela incerteza.

O temor enfraquece à medida que cresce a certeza; desaparece quando a certeza é completa.

Eis o lado providencial da questão. Era sábio não perturbar o homem cuja razão ainda não era bastante forte para suportar a perspectiva, muito positiva e muito sedutora, de um futuro que lhe tivesse feito negligenciar o presente necessário ao seu adiantamento material e intelectual.

Esse estado de coisas é alimentado e prolongado por causas puramente humanas, que desaparecerão com o progresso. A primeira é o aspecto sob o qual é apresentada a vida futura, aspecto que podia bastar a inteligências pouco adiantadas, mas que não poderia satisfazer às exigências da razão dos homens que refletissem. Dizem eles que se lhes apresentam como verdades absolutas princípios contraditados pela lógica e pelos dados positivos da Ciência, é que não são verdades. Daí a incredulidade de alguns e, num grande número, uma crença mesclada pela dúvida. A vida futura é para eles uma ideia vaga, antes uma probabilidade que uma certeza absoluta; creem nela, quereriam que assim fosse e, malgrado seu, dizem para si mesmos: “E se não for assim! O presente é uma certeza. Para começar, ocupemonos com ele. O futuro virá por acréscimo.”

E depois acrescentam: “Definitivamente, o que é a alma? É um ponto, um átomo, uma centelha, uma chama? Como ela sente? Como ela vê? Como ela percebe?”

Para eles a alma não é uma realidade efetiva. É uma abstração. Os seres que lhe são caros, reduzidos ao estado de átomos, em seu pensamento, estão para eles, por assim dizer, perdidos, e aos seus olhos não mais têm as qualidades que lhes davam a capacidade de amar. Eles não compreendem o amor de uma centelha, nem o que se pudesse ter por ela, e eles próprios ficam satisfeitos por serem transformados em mônadas. Daí a volta ao positivismo da vida terrena, que tem algo de mais substancial. O número daqueles que são dominados por estas ideias é considerável.

Outra razão que liga às coisas terrenas até mesmo aqueles que acreditam mais firmemente na vida futura se deve à impressão, que eles conservam, do ensino que lhes foi dado desde a infância.

O quadro que dela faz a religião, é forçoso convir, não é muito sedutor nem muito consolador. De um lado veem-se as contorções dos danados que expiam nas torturas e nas chamas sem fim os seus erros de um momento. Para esses, séculos se sucedam a séculos, sem esperança de abrandamento nem de piedade, e o que é ainda mais impiedoso, é que para eles o arrependimento é ineficaz. De outro lado, as almas lânguidas e sofredoras do purgatório, esperando sua libertação, que depende da boa vontade dos vivos que orarem, ou mandarem orar por elas, e não de seus esforços para progredir. Estas duas categorias compõem a imensa maioria da população de além-túmulo. Acima, paira a muito restrita categoria dos eleitos, gozando, durante a eternidade, de uma beatitude contemplativa. Essa eterna inutilidade, sem dúvida preferível ao nada, não deixa de ser de uma fastidiosa monotonia. Assim, nas pinturas que retratam os bem-aventurados, veem-se figuras angélicas, mas que respiram mais aborrecimento do que a verdadeira felicidade.

Esse estado não satisfaz às aspirações nem à ideia instintiva do progresso, o único que parece compatível com a felicidade absoluta. Tem-se dificuldade de conceber que o selvagem ignorante, obtuso no sentido moral, só porque recebeu o batismo, esteja no mesmo nível daquele que chegou ao mais alto grau do conhecimento e da moralidade prática, após longos anos de trabalho. É ainda menos concebível que o menino falecido em tenra idade, antes de ter consciência de si mesmo e de seus atos, goze dos mesmos privilégios, tão somente por força de uma cerimônia na qual sua vontade não tomou parte.

Esses pensamentos não deixam de agitar os mais fervorosos, por pouco que reflitam. O trabalho progressivo que a gente realiza na Terra nada valendo para a felicidade futura; a facilidade com a qual creem adquiri r essa felicidade por meio de algumas práticas exteriores; a própria possibilidade de comprá-la com dinheiro, sem reforma séria do caráter e dos hábitos, deixam aos prazeres do mundo todo o seu valor. Mais de um crente diz, no seu foro íntimo que, considerando-se que seu futuro está assegurado pela prática de certas fórmulas, ou por dons póstumos que de nada o privam, seria supérfluo impor-se sacrifícios ou um aborrecimento qualquer em proveito de outrem, pois se consegue a salvação cada um trabalhando para si.

Certamente tal não é o pensamento de todos, pois há grandes e belas exceções, mas é incontestável que esse é o pensamento da maioria, sobretudo das massas pouco esclarecidas, e que a ideia feita das condições para ser feliz no outro mundo não têm ligação com os bens deste, o que tem por consequência o egoísmo.

Ajuntemos a isto que tudo, nos costumes, concorre para que a vida terrestre seja lamentada e a passagem da Terra ao Céu seja temida. A morte não é cercada senão de cerimônias lúgubres que mais aterrorizam do que provocam esperanças. Se se representa a morte, é sempre sob um aspecto repelente, e jamais como um sono de transição. Todos os seus símbolos lembram a destruição do corpo e o mostram horrível e descarnado. Nenhum simboliza a alma se desprendendo radiosa de seus laços terrenos. A partida para esse mundo mais feliz não é acompanhada senão pelas lamentações dos sobreviventes, como se acontecesse a maior desgraça aos que se vão. Dizem-lhe um eterno adeus, como se jamais voltariam a vê-los. O que lamentam por eles são os gozos daqui de baixo, como se eles não devessem encontrar gozos maiores no além-túmulo. Que desgraça, dizem, morrer quando se é moço, rico, feliz e se tem pela frente um brilhante futuro! A ideia de uma situação mais feliz aflora debilmente ao pensamento, porque não tem raízes. Tudo, pois, concorre para inspirar o pavor da morte em vez de fazer nascer a esperança. O homem sem dúvida levará muito tempo para se desfazer desses preconceitos, mas lá chegará à medida que se firmar a sua fé e que ele fizer uma ideia mais sã da vida espiritual.

A Doutrina Espírita muda inteiramente a maneira de encarar o futuro. A vida futura não é mais uma hipótese, mas uma realidade; o estado das almas após a morte não é mais um sistema, mas um resultado da observação. O véu está levantado; o mundo invisível nos aparece em toda a sua realidade prática. Não foram os homens que o descobriram pelo esforço de uma concepção engenhosa, mas foram os próprios habitantes desse mundo que nos vieram descrever sua situação. Nós aí os vemos em todos os graus da escala espiritual, em todas as fases da felicidade e da desgraça. Nós assistimos a todas as peripécias da vida de além-túmulo. Aí está para os espíritas a causa da calma com que encaram a morte, da serenidade de seus últimos instantes na Terra. O que os sustenta não é somente a esperança, é a certeza. Eles sabem que a vida futura é apenas a continuação da vida presente em melhores condições, e a esperam com a mesma confiança com que esperam o nascer do sol após uma noite de tempestade. Os motivos dessa confiança estão nos fatos de que são testemunhas e na concordância desses fatos com a lógica, a justiça e a bondade de Deus e as aspirações íntimas do homem.

Além disso, a crença vulgar coloca as almas em regiões só acessíveis ao pensamento, onde elas se tornam de certo modo estranhas aos sobreviventes. A própria Igreja põe entre elas e estes últimos uma barreira intransponível, pois declara que todas as relações são rompidas e toda comunicação é impossível. Se estiverem no inferno, toda esperança de revê-las está perdida para sempre, a menos que se vá também para lá; se estiverem entre os eleitos, estarão totalmente absorvidas por sua beatitude contemplativa. Tudo isto estabelece entre os mortos e os vivos uma tal distância, que se olha a separação como eterna, por isto ainda preferem tê-las perto de si, sofrendo na Terra, do que vê-las partirem, mesmo para o Céu. Ademais, a alma que está no Céu é realmente feliz ao ver, por exemplo, seu filho, seu pai, sua mãe ou seus amigos queimando eternamente?

Para os espíritas a alma não é mais uma abstração. Ela tem um corpo etéreo que dela faz um ser definido que o pensamento abarca e concebe. Isto já é muito para fixar as ideias sobre sua individualidade, suas aptidões e suas percepções. A lembrança dos que nos são caros repousa sobre algo real. Eles não são mais representados como chamas fugidias que nada lembram ao pensamento, mas sob uma forma concreta, que no-los mostra melhor como seres vivos. Depois, em vez de estarem perdidos nas profundezas do espaço, estão em redor de nós. O mundo visível e o mundo invisível estão em relações perpétuas e se apoiam mutuamente. Não mais sendo permitida a dúvida sobre o futuro, o temor da morte não tem mais razão de ser. Ela é encarada com sangue frio, como uma libertação, como a porta da vida, e não como a porta do nada.

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