Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1859

Allan Kardec

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Palestras familiares de além-túmulo

O pai Crépin
Recentemente os jornais anunciaram a morte de um homem que vivia em Lyon, onde era conhecido pela alcunha de Pai Crépin. Era multimilionário e de uma avareza pouco comum. Nos últimos tempos de sua vida fora morar com o casal Favre, que tinha assumido a obrigação de alimentá-lo mediante trinta cêntimos por dia, feita a dedução de dez cêntimos para o seu tabaco. Ele possuía nove casas e antes morava em uma delas, numa espécie de nicho que tinha mandado construir debaixo da escada. Na ocasião de receber os aluguéis, arrancava cartazes das ruas e os utilizava para fazer os recibos. O decreto municipal que prescrevia a caiação das casas lhe causava um tremendo desespero; inutilmente fez diligências com o objetivo de conseguir isenção. Gritava que estava arruinado. Se tivesse uma só casa, ter-se-ia resignado, mas, acrescentava, ele tinha nove.

1. (Evocação).
─ Eis-me aqui. Que quereis de mim? Oh! Meu ouro! Meu ouro! Que fizeram dele?

2. ─ Tendes saudades da vida terrena?
─ Oh! Sim!

3. ─ Por que tendes saudades?
─ Não posso mais tocar no meu ouro, contá-lo e guardá-lo.

4. ─ Em que empregais o vosso tempo?
─ Ainda estou muito preso à Terra e é difícil arrepender-me.

5. ─ Vindes muitas vezes rever o vosso querido tesouro e as vossas casas?
─ Tantas vezes quanto posso.

6. ─ Quando vivo nunca pensastes que não levaríeis nada disto para o outro
mundo?
─ Não. Minha única ideia estava ligada às riquezas, visando acumulá-las.
Jamais pensei em separar-me delas.

7. ─ Qual era o vosso objetivo amontoando essas riquezas que não serviam para nada, nem para vós mesmo, pois vivíeis em privações?
─ Eu experimentava a volúpia de tocá-las.

8. ─ De onde vos vinha tão sórdida avareza?
─ Do prazer experimentado por meu Espírito e por meu coração por ter muito dinheiro. Aqui na Terra não tive outra paixão.

9. ─ Compreendeis o que era a avareza?
─ Sim, compreendo agora que eu era um miserável. Entretanto, meu coração ainda é muito terreno e ainda experimento certo prazer em ver o meu ouro. Mas não posso apalpá-lo, e isto é um começo de punição na vida em que estou.

10. ─ Não experimentáveis nenhum sentimento de piedade pelos infelizes que sofriam na miséria? Nunca vos ocorreu a ideia de aliviá-los?
─ Por que eles não tinham dinheiro? Pior para eles!

11. ─ Tendes lembrança da vossa existência anterior a esta que acabais de deixar?
─ Sim, eu era pastor, muito infeliz de corpo, mas feliz de coração.

12. ─ Quais foram os vossos primeiros pensamentos, quando vos reconhecestes no mundo dos Espíritos?
─ Meu primeiro pensamento foi o de procurar as minhas riquezas e, sobretudo, o meu ouro. Quando não vi mais do que o espaço, senti-me muito infeliz. Meu coração ficou dilacerado e o remorso começou a apoderar-se de mim. Parece que quanto mais tempo se passar, mais sofrerei por minha avareza terrena.

13. ─ Qual é agora a consequência de vossa vida terrena?
─ Inútil para os meus semelhantes, inútil diante da eternidade, mas infeliz para mim perante Deus.

14. ─ Podeis prever uma nova existência corpórea?
─ Não sei.

15. ─ Se devêsseis ter brevemente uma nova existência corpórea, qual escolheríeis?
─ Escolheria uma existência em que pudesse tornar-me útil aos meus semelhantes.

16. ─ Quando vivo não tínheis amigos na Terra, pois um avarento como vós não pode tê-los. Tende-os entre os Espíritos?
─ Jamais rezei por alguém. Meu anjo da guarda, a quem muito ofendi, é o único que tem piedade de mim.

17. ─ Ao entrar no mundo dos Espíritos, alguém vos veio receber?
─ Sim, minha mãe.

18. ─ Já fostes evocado por outras pessoas?
─ Uma vez, por uma pessoa a quem maltratei.

19. ─ Não estivestes na África, num centro onde se ocupam com os Espíritos?
─ Sim, mas toda aquela gente não tinha nenhuma pena de mim. Isto é muito triste. Aqui sois compassivos.

20. ─ Nossa evocação vos será proveitosa?
─ Muito.

21. ─ Como adquiristes fortuna?
─ Ganhei um pouco honestamente, mas explorei muito e roubei um pouco dos meus semelhantes.

22. ─ Podemos fazer alguma coisa por vós?
─ Sim. Um pouco de vossa piedade para uma alma em sofrimento.

(SOCIEDADE, 9 DE SETEMBRO DE 1859)
PERGUNTAS DIRIGIDAS A SÃO LUÍS A RESPEITO DO PAI CRÉPIN

1. ─ O Pai Crépin que evocamos ultimamente era um raro tipo de avarento. Não nos pôde dar explicações sobre a fonte de sua paixão. Teríeis a bondade de nolas ministrar? Ele nos disse que tinha sido pastor, muito infeliz de corpo, mas feliz de coração. Nada vemos nisso que lhe pudesse desenvolver esta avareza sórdida. Poderíeis dizer-nos o que provocou o seu começo?
─ Ele era ignorante e inexperiente. Pediu a riqueza e ela lhe foi concedida, mas como punição para o seu pedido. Tende certeza de que ele não a pedirá mais.

2. ─ O Pai Crépin nos oferece o tipo da avareza ignóbil, mas essa paixão tem gradações. Assim, há pessoas que só são avarentas para os outros. Perguntamos qual é o mais culpável: aquele que acumula pelo prazer de acumular e se priva até do necessário, ou aquele que, de nada se privando é avaro quando se trata do menor sacrifício pelo próximo?
─ É evidente que o último é mais culpado, porque é profundamente egoísta. O primeiro é louco.

3. ─ Nas provas que deve sofrer para chegar à perfeição, deve o Espírito passar por todos os gêneros de tentação? Poder-se-ia dizer que, para o Pai Crépin, a vez da avareza chegou por meio das riquezas que estavam à sua disposição, e que ele sucumbiu?
─ Isto não é regra geral, mas é exato no seu caso particular. Sabeis que há muitos que desde o começo tomam um caminho que os exime de muitas provas.

SRA. E. DE GIRARDIN, MÉDIUM

Extraímos o artigo seguinte da crônica do Paris-Journal n.º 44. Não há necessidade de comentários. Ele mostra que se os partidários do Espiritismo são loucos, como o dizem pouco delicadamente as pessoas que se arrogam sem cerimônia o privilégio do bom-senso, podemos consolar-nos e até mesmo sentir-nos honrados de ir para os hospícios em companhia de inteligências da têmpera da Sra. de Girardin e de tantos outros.


“Outro dia eu vos prometi a história da Sra. de Girardin e de um célebre doutor. Contá-la-ei hoje, porque obtive permissão para fazê-lo. É uma história muito curiosa. Ficaremos ainda no sobrenatural, com o qual nos ocupamos mais do que nunca, nós que, por dever, tomamos o pulso de Paris e sentimos que ele está um tanto febril. Decididamente, para a imaginação humana há uma certa necessidade de saber o futuro e penetrar os mistérios da Natureza. Quando se veem inteligências como a de Delphine Gay entregar-se a essas práticas que consideramos pueris, não lhes podemos recusar uma certa importância, sobretudo quando apoiadas em testemunhos irrefutáveis, tais como este de que vos falo e que ireis conhecer. Refirome ao testemunho, mas não ao doutor ─ notai bem.

“A Sra. de Girardin tinha uma pequena prancheta e um lápis. Consultava-os incessantemente. Obtinha, assim, conversas com muitas celebridades da História, sem contar o diabo, que nelas também se metia. Certa noite, ele veio revelar-se a uma importante pessoa que não teve medo, pois que seu papel é o de expulsá-lo. Nada fazia a grande Delphine sem consultar a prancheta. Pedia-lhe conselhos literários, que esta não lhe recusava. Para a ilustre poetisa, era até mesmo de uma severidade magistral. Assim, incessantemente reiterava-lhe o pedido para que não escrevesse mais tragédias sem nenhuma consideração pelos versos maravilhosos de sua peça Judith e Cleópatra. Quem é que vai assistir à representação de uma tragédia? Os fanáticos da poesia dramática. Que buscam eles numa tragédia? Os belos versos que os comovem e emocionam, e Judith e Cleópatra fervilha desses pensamentos de mulher, expressos por uma mulher de um espírito e de um coração eminentes, cujo talento ninguém contesta. Numa palavra, a prancheta não queria mais tragédias; obstinava-se na prosa e na comédia; colaborava nos desenlaces e corrigia a prolixidade.

“Delphine não só lhe confiava seus trabalhos literários, como ainda lhe contava os sofrimentos e pedia orientações para a sua saúde. Ah! essas orientações, ditadas pela imaginação da doente ou pelo demônio, contribuíram para afastá-la de nós. Ela tomava remédios incríveis como fatias de pão com manteiga e pimenta, pimentões e todas as invencionices prejudiciais a uma natureza inflamável como a sua. Disto foram encontradas provas depois de sua morte, da qual os seus amigos e admiradores jamais se consolarão.

“Todo mundo conhece Chasseriau, arrebatado também na flor da idade. De memória, fez um soberbo retrato da bela defunta. Fizeram dele uma gravura, que hoje está em toda parte. Ele levou o retrato ao doutor em questão e lhe perguntou se estava contente. Este último fez alguns ligeiros reparos. O pintor ia consentir nessas modificações, quando os dois tiveram a ideia de se dirigir ao próprio modelo. Colocaram as mãos sobre a prancheta e assim a Sra. de Girardin revelou-se quase que imediatamente. Compreende-se qual teria sido a emoção deles. Interrogada sobre o retrato, disse que não estava perfeito, mas que não deviam retocá-lo, pois se arriscariam a estragá-lo, sendo a semelhança muito difícil de captar, quando não se tem outro guia além da memória. Fizeram-lhe outras perguntas. Recusou-se a responder a algumas delas, mas atendeu a outras.

“Perguntaram o lugar onde se encontrava.
“─ Não quero dizê-lo, retrucou.

“Apesar de todos os pedidos nada puderam obter a esse respeito.
“─ Sois feliz?
“─ Não.
“─ Por quê?
“─ Porque não posso mais ser útil àqueles a quem amo.

“Ficou obstinadamente muda enquanto lhe falaram da outra vida e não deu nenhuma explicação. Também não disse se assim procedia por lhe ser proibido ou se por vontade própria. Depois de uma longa conversa, foi-se embora. Lavrou-se a ata dessa sessão. As duas testemunhas ficaram tão impressionadas que não trataram mais do caso. O doutor podia agora evocar aquele que o ajudava naquele dia, e ter esses dois grandes Espíritos na sua prancheta. Como tudo passa neste mundo! E que ensinamento nestes fatos estranhos, se os considerarmos do ponto de vista filosófico e religioso!”

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