Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Já falamos do outro retiro instalado em Cempuis, perto de Grandvilliers, no departamento de Oise, pelo Sr. Prévost, membro da Sociedade Espírita de Paris.

A construção está hoje terminada, bem como as instalações internas. Anexa ao estabelecimento, posto que formando uma construção isolada, há uma capela em estilo gótico, de aspecto monumental. A inauguração da capela ocorreu domingo, 19 de julho último, dia de São Vicente de Paulo, a quem é dedicada, numa cerimônia de caridade, isto é, por uma distribuição de pão, vinho e carne aos pobres da paróquia. O Sr. Prévost pronunciou a respeito o discurso seguinte, que temos a satisfação de reproduzir:

“Senhores,

“Conheceis o motivo desta reunião, assim, não me alongarei sobre detalhes inúteis e que nada informam que não saibais. A obra material está hoje praticamente realizada, graças à evidente proteção do Todo-Poderoso, que se dignou secundar os meus esforços. Estamos aqui em família, todos, e não o duvido, animados pelos mesmos sentimentos por sua divina bondade. Unamo-nos, pois, no mesmo impulso de gratidão, e peçamos que ele continue nos assistindo e nos dando as luzes que nos faltam.

“Deus do Céu e da Terra, soberano senhor de todas as coisas, tem piedade de nossa fraqueza! Eleva nossos corações para ti, a fim de que aprendamos a cumprir nossos deveres segundo tua vontade, e para que todas as nossas ações estejam em relação com a tua lei universal. Senhor, faze que nossa alma se encha de teu amor; que ela se apaixone pelo fogo sagrado da convicção e que prove sua fé por atos de verdadeira caridade. Todas as palavras, por melhores que sejam, se não forem seguidas de efeitos de benevolência para com as tuas criaturas, assemelham-se a uma bonita árvore sem frutos.

“Ajuda-nos, pois, Poder Infinito, a superar os obstáculos que poderiam erguerse ante os nossos passos e entravar o nosso desejo de nos tornarmos úteis na missão para a qual nos escolheste. Dá-nos a força necessária para a realizarmos com amor e sinceridade.

“A boa assistência dada à velhice te é agradável, meu Deus, porque é um ato de justiça. Eles nos precederam no caminho. Os sulcos que eles abriram foram regados com seu suor, e nós lhe recolhemos os frutos. Hoje sua experiência é um campo já ceifado, mas onde ainda temos o que colher. É justo, portanto, que recompensemos o seu sacrifício, assegurando-lhes o repouso após o trabalho. É um dever para nós, pois queríamos que o mesmo fosse feito conosco, mas para realizá-lo dignamente, énos necessária a tua assistência, pois temos consciência de nossa fraqueza.

“É também em teu nome, Senhor, que aqui o órfão encontrará uma nova família. O menino abandonado crescerá entre nós ao suave calor do fogo divino com que favoreceste São Vicente de Paulo, a quem pedimos nos assista, para que possamos realizar este ato, a seu exemplo.

“Espírito infinito, tudo está em ti, tudo é por ti, nada está fora de ti. Os castigos, como as recompensas, nos vêm de tua mão abençoada. Conheces as nossas necessidades. Somos teus filhos e nos remetemos à tua divina Providência.

“Os bons Espíritos que sob teu olhar paternal presidem os destinos da Terra, os anjos de guarda dos homens, mereceram tua confiança, Senhor. Esperamos que, por ti, eles nos ajudem a conservar intacto o sublime código de moral promulgado pelo Cristo, teu filho bem-amado. ─ Amai a Deus, disse-nos ele do alto da cruz, há dezoito séculos; amai-vos uns aos outros; amai o vosso próximo como a vós mesmos; praticai a caridade para com todos, em todas as coisas. Eis a sua lei, Senhor, e essa lei é a tua. Possa ela gravar-se em nossos corações e fazer-nos ver como irmãos todos os nossos semelhantes, que, como nós, são teus filhos. Assim seja.

“Meus amigos, meus irmãos, sigamos este grande exemplo, e tenhamos uma sincera fé em Deus. Ele nos ajudará a suportar as consequências da má direção que o esquecimento desses deveres imprimiu à Sociedade, em tempos já distantes. Hoje muitas coisas entram na ordem prescrita pelo Criador. Malgrado o egoísmo que ainda domina um grande número de pessoas, o amor fraterno é melhor compreendido; os preconceitos de casta, da seita e de nacionalidade se apagam pouco a pouco; a tolerância, uma das filhas da caridade evangélica, faz pouco a pouco desaparecerem os antagonismos que por tanto tempo dividiram os filhos de um mesmo Deus; os sentimentos de humanidade se infiltram no coração das massas e já realizaram grandes coisas em diversos pontos da Terra.

“Na França, numerosas fábricas que ficaram sem trabalho experimentaram há pouco tempo os suaves efeitos deste amor do próximo. Esse élan para o sofrimento fala bem alto em favor de nosso país; é preciso ver aí a mão de Deus. É com alegria que vemos a primeira nação do mundo civilizado levar até as plagas mais distantes os frutos desse amor à Humanidade, que só a verdadeira grandeza dá e que ela colheu no centro radiante da cruz, ajudada pela luz do progresso, que obriga o homem a ser melhor para com seu semelhante e a tornar-se melhor, ele próprio.

“Meus amigos, com o concurso de homens instruídos e benevolentes, espero formar futuramente uma biblioteca moral e instrutiva, anexa a este estabelecimento, onde cada um poderá colher os meios de se melhorar, tanto em relação ao espírito quanto em relação ao coração.

“Agradeço-vos muito sinceramente, a vós todos que atendestes ao meu apelo, vindo oferecer, em comum, ação de graças à Divindade, em reconhecimento da inspiração da fundação deste estabelecimento.

“A partir de hoje, 19 de julho de 1863, esta capela, dedicada a São Vicente de Paulo, cuja suave e imortal imagem retrata em seus vitrais, lhe é publicamente consagrada por seu fundador, que deseja que doravante seja ela considerada um lugar santo, um lugar de prece. Aqui Deus deve ser adorado, e diante do símbolo de seu amor pelos homens; ante essa venerável e grande figura de apóstolo da caridade cristã, todos deverão compenetrar-se de que o amor ao próximo deve ser praticado por atos e deve estar no coração e não nos lábios.

“Antes de nos separarmos, vamos fazer a oração dominical.

“Pai nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia dai-nos hoje. Perdoai nossas ofensas, como perdoamos àqueles que nos ofenderam. Não nos deixeis sucumbir à tentação, mas livrai-nos do mal. Que assim seja.”

Nessa ocasião, o Sr. Prévost teve a bondade de pessoalmente remeter-nos a soma de 200 francos para as obras de beneficência, cujo emprego, infelizmente, não é difícil de encontrar.

A Sociedade Espírita de Paris, a propósito do discurso acima, votou por unanimidade e por aclamação, a seguinte carta, que lhe foi dirigida:

“Senhor e caríssimo colega,

“A Sociedade Espírita de Paris, da qual fazeis parte, ouviu com o maior interesse a leitura do discurso que fizestes na inauguração da capela do retiro que fundastes em vossa propriedade em Cempuis. O discurso é a expressão dos nobres sentimentos que vos animam; é digno daquele que fez tão bom uso da fortuna adquirida pelo trabalho e que não espera, para fazer com que ela beneficie os infelizes, que a morte a tenha tornado inútil, porque é em vida que vos impondes privações para aumentar a parte deles.

A Sociedade sente-se honrada em contar entre os seus membros um adepto que faz uma aplicação tão cristã dos princípios da Doutrina Espírita. Ela decidiu, por unanimidade, transmitir-vos oficialmente a expressão de sua viva e fraterna simpatia pela obra humanitária que empreendestes, e por vossa pessoa em particular.

“Recebei, etc.”

A fortuna do Sr. Prévost é fruto inteiramente de suas obras, o que tem maior mérito. Depois de ter sofrido o contragolpe das revoluções que lhe fizeram perdê-la, ele reedificou-a por sua coragem e perseverança. Hoje, que chegou à idade do repouso; que ele poderia largamente dar-se ao luxo dos prazeres da vida, ele se contenta com o estritamente necessário e, ao contrário de muitos outros, não espera não precisar de mais nada para que seus irmãos em Jesus Cristo participem do seu supérfluo. Assim, sua recompensa será bela, e ele desfruta das suas primícias pelo prazer proporcionado pelo bem que faz.

Aos olhos de certas pessoas, entretanto, o Sr. Prévost está muito errado, porque é espírita e professa a doutrina do demônio. No entanto, seu discurso não é o de um ateu, nem mesmo de um deísta, mas de um cristão. Sua própria moderação é uma prova de caridade, pois ele se absteve de falar mal de seu próximo e até mesmo de fazer qualquer alusão àqueles que vinculam sua ajuda a condições que sua consciência não lhe permitia aceitar.

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