Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1863

Allan Kardec

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Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar do vocábulo, mas subjugados. Mudamos de opinião sobre essa afirmativa absoluta, porque agora nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, posto que parcial, de um Espírito encarnado por um Espírito errante.

Eis um primeiro fato que o prova, e que apresenta o fenômeno em toda a sua simplicidade.

Várias pessoas se achavam um dia na casa de uma senhora que é médium sonâmbula. De repente ela toma atitudes absolutamente masculinas. Sua voz muda e, dirigindo-se a um dos assistentes, ela exclama: “Ah! meu caro amigo, como estou contente de te ver!” Surpresos, perguntam o que isto significa. A senhora continua: “Como, meu caro? Não me reconheces? Ah! É verdade. Estou coberto de lama! Sou Charles Z...” A este nome, os assistentes se lembraram de um senhor, falecido meses antes, vítima de uma apoplexia, à beira de uma estrada. Ele tinha caído num fosso, de onde o haviam retirado coberto de lama.

Ele declara que, querendo conversar com seu velho amigo, aproveitava o momento em que o Espírito da Sra. A..., a sonâmbula, estava afastado do corpo, para tomar-lhe o lugar. Com efeito, tendo-se renovado a cena vários dias seguidos, a Sra. A... tomava todas as vezes as atitudes e maneiras habituais do Sr. Charles, espreguiçando-se no encosto da cadeira, cruzando as pernas, torcendo o bigode, passando os dedos pelos cabelos, de tal sorte que, não fosse pelas roupas, poder-seia crer estar em presença do Sr. Charles. Contudo, não havia transfiguração, como vimos noutras circunstâncias. Eis algumas de suas respostas.

─ Já que tomastes posse do corpo da Sra. A... poderíeis nele ficar?

─ Não, mas vontade não me falta. ─ Por que não podeis?

─ Porque seu Espírito está sempre ligado ao seu corpo. Ah! Se eu pudesse romper esse laço eu lhe pregaria uma peça.

─ O que faz, neste momento, o Espírito da Sra. A...?

─ Está aqui ao lado, olha-me e ri, vendo-me em suas vestes.

Estas conversas eram muito divertidas. O Sr. Charles tinha sido um boêmio e não desmentia o seu caráter. Dado à vida material, era pouco adiantado como Espírito, mas naturalmente bom e benevolente. Apoderando-se do corpo da Sra. A..., ele não tinha qualquer má intenção, de sorte que aquela senhora nada sofria com a situação, a que se prestava de boa vontade. É bom que se diga que ela não havia conhecido esse senhor, e não podia saber de suas maneiras. É ainda importante notar que os assistentes nele não pensavam, portanto, a cena não foi provocada, e ele veio espontaneamente.

Aqui a possessão é evidente e ressalta ainda melhor dos detalhes, cuja enumeração seria muito longa. No entanto, é uma possessão inocente e sem inconvenientes. Não acontece o mesmo quando se trata de um Espírito malévolo e mal-intencionado, porque ela pode ter consequências tanto mais graves quanto mais tenazes são esses Espíritos, e muitas vezes torna-se difícil livrar o paciente que eles fazem de vítima.

Eis um exemplo recente, que observamos pessoalmente e que foi objeto de sério estudo na Sociedade de Paris:

A senhorita Júlia, doméstica, nascida na Saboia, com vinte e três anos de idade, de caráter muito suave, sem qualquer instrução, há algum tempo era sujeita a acessos de sonambulismo natural que duravam semanas inteiras. Nesse estado ela ocupava-se em seu trabalho habitual, sem que as pessoas suspeitassem de sua situação. Seu trabalho até era muito mais bem feito. Sua lucidez era notável. Ela descrevia lugares e acontecimentos distantes com perfeita exatidão.

Há cerca de seis meses ela tornou-se presa de crises de um caráter estranho, que sempre ocorriam no estado sonambúlico, que, de certo modo, se tornara seu estado normal. Ela se torcia, rolava pelo chão, com se se debatesse em luta com alguém que a quisesse estrangular e, com efeito, apresentava todos os sintomas de estrangulamento. Acabava vencendo esse ser fantástico, tomava-o pelos cabelos, dava-lhe sopapos e lhe dirigia injúrias e imprecações, apostrofando-o incessantemente com o nome de Fredegunda, infame regente, rainha impudica, criatura vil e manchada por todos os crimes, etc. Pisoteava como se a calcasse aos pés com raiva e lhe arrancava as vestes. Coisa bizarra, tomando-se ela própria por Fredegunda, dava em si própria redobrados golpes nos braços, no peito e no rosto, dizendo: “Toma! Toma! É bastante, infame Fredegunda? Queres me sufocar, mas não o conseguirás; queres meter-te em minha caixa, mas eu te expulsarei.”

Minha caixa era o termo de que ela se servia para designar o próprio corpo. Ninguém poderia pintar a expressão frenética com que ela pronunciava o nome de Fredegunda, rangendo os dentes, nem as torturas que ela sofria nesses momentos.

Um dia, para se livrar de sua adversária, ela tomou de uma faca e vibrou contra si mesma, mas foi socorrida a tempo de evitar-se um acidente.

Coisa não menos notável é que ela jamais tomou um dos presentes por Fredegunda. A dualidade estava sempre nela mesma. Era contra si mesma que ela dirigia o seu furor, quando o Espírito estava nela, e contra um ser invisível quando dela se havia desembaraçado. Para os outros ela era suave e benevolente, mesmo nos momentos de maior exasperação.

Essas crises, verdadeiramente apavorantes, por vezes duravam horas, e se repetiam várias vezes por dia. Quando tinha acabado de vencer Fredegunda, ela caía num estado de prostração e de abatimento de que só saía pouco a pouco, mas que lhe deixava uma grande fraqueza e dificuldade de falar. Sua saúde estava profundamente alterada; nada podia comer e por vezes ficava oito dias sem alimento. Os melhores petiscos tinham gosto horrível para ela, que lhe faziam rejeitá-los. Dizia ela que era obra de Fredegunda, que queria impedi-la de comer.

Dissemos acima que a moça não tinha qualquer instrução. Em estado de vigília ela jamais ouviu falar de Fredegunda, nem de seu caráter nem do papel que tinha tido. No estado sonambúlico, ao contrário, ela sabe tudo perfeitamente, e diz ter vivido em seu tempo. Não era Brunehaut, como a princípio se supôs, mas outra pessoa, ligada à sua corte.

Outra observação, não menos essencial, é que, até o começo das crises, a senhorita Júlia jamais se tinha ocupado de Espiritismo, cujo nome lhe era desconhecido. Ainda hoje, no estado de vigília, ela o ignora e não o aceita. Só o conhece no estado sonambúlico e depois que começou a ser tratada. Assim, tudo quanto ela disse foi espontâneo.

Em face de uma situação tão estranha, uns atribuem o seu estado a uma afecção nervosa; outros a uma loucura de caráter especial, e força é convir que, à primeira vista, esta última opinião tinha uma aparência de realidade. Um médico declarou que, no estado atual da ciência, nada podia explicar semelhantes fenômenos, e que não via qualquer remédio. Contudo, pessoas experimentadas no Espiritismo reconheceram sem esforço que ela estava sob o império de uma subjugação das mais graves e que lhe poderia ser fatal.

Sem dúvida, quem só a tivesse visto nos momentos de crise e só tivesse considerado a estranheza de seus atos e palavras, teria dito que era louca, e lhe teria infringido o tratamento dos alienados que, sem a menor dúvida, teria determinado uma loucura verdadeira. Mas tal opinião deveria ceder ante os fatos.

No estado de vigília sua conversa é a de uma criatura de sua condição e compatível com sua falta de instrução. Sua inteligência é mesmo vulgar. Já a coisa é completamente outra no estado de sonambulismo. Nos momentos de calma, ela raciocina com muito senso, justeza e profundidade. Ora, seria singular uma loucura que aumentasse a dose de inteligência e discernimento.

Só o Espiritismo pode explicar essa aparente anomalia. No estado de vigília, sua alma ou Espírito está comprimida por órgãos que lhe não permitem senão um desenvolvimento incompleto. No estado de sonambulismo, a alma, emancipada, está em parte liberta dos laços e goza da plenitude de suas faculdades. Nos momentos de crise, suas palavras e atos não são excêntricos senão para os que não creem na ação dos seres do mundo invisível. Não vendo senão o efeito, e não remontando à causa, eis por que todos os obsedados, subjugados e possessos passam por loucos. Nos manicômios houve, em todos os tempos, pretensos loucos dessa natureza, que seriam facilmente curados se não se obstinassem em neles ver apenas uma doença orgânica.

Diante de tais fatos, como a senhorita Júlia não tinha recursos, uma família de verdadeiros e sinceros espíritas concordou em tomá-la a seu serviço, mas na sua situação ela deveria ser mais um embaraço do que uma utilidade, e seria preciso um verdadeiro devotamento para cuidar dela. Mas essas pessoas foram bem recompensadas, primeiro pelo prazer de praticar uma boa ação, depois pela satisfação de haver poderosamente contribuído para a sua cura, hoje completa. Dupla cura, porque não só a senhorita Júlia se libertou, mas sua inimiga converteuse a melhores sentimentos.

Eis o que testemunhamos numa dessas lutas terríveis, que não durou menos de duas horas, quando pudemos observar o fenômeno nos mínimos detalhes, e no qual reconhecemos uma analogia completa com o dos possessos de Morzine[1]. A única diferença é que em Morzine os possessos se entregavam a atos contra as pessoas que os contrariavam e que eles falavam do diabo que eles tinham em si, pois os haviam persuadido de que era o diabo. Em Morzine, a senhorita Júlia teria chamado Fredegunda de diabo.

Num próximo artigo exporemos com detalhes as diversas fases desta cura e os meios para isto empregados. Além disso, reportar-nos-emos às notáveis instruções que os Espíritos deram a respeito, assim como as importantes observações a que deu lugar, relativamente ao magnetismo.



[1] Ver os artigos sob o título “Estudos sobre os possessos de Morzines”, na Revista Espírita de dezembro de 1862 e de janeiro, fevereiro, abril e maio de 1863.


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