Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

Voltar ao Menu
Partida de um adversário do Espiritismo para o mundo dos Espíritos

Escrevem-nos de V...:

“Há algum tempo morreu um padre nas nossas vizinhanças. Era um adversário declarado do Espiritismo, mas não um desses adversários furibundos, como se veem tantos, que suprem a falta de boas razões pela violência e pela injúria. Era um homem instruído, de inteligência superior. Combatia-o com talento, sem acrimônia e sem se afastar das conveniências. Infelizmente para ele, malgrado todo seu saber e seu mérito incontestável, ele só lhe pôde opor os lugares-comuns ordinários, e para derrubá-lo não encontrou nenhum desses argumentos que levam ao espírito das massas uma convicção irresistível. Sua ideia fixa, pelo menos a que ele buscava fazer prevalecer, era apenas que o Espiritismo teria um tempo restrito; que sua rápida propagação era apenas um entusiasmo passageiro, e que cairia como todas as ideias utópicas.

“Tivemos a ideia de evocá-lo em nosso pequeno círculo. Sua comunicação pareceu-nos instrutiva, sob vários aspectos, razão pela qual nós vo-la remetemos.

Em nossa opinião, ela tem um incontestável cunho de identidade.

“Eis a comunicação:

Pergunta (ao guia do médium) ─ Teríeis a bondade de dizer se podemos fazer a evocação do Sr. Padre D...?

Resposta. ─ Sim. Ele virá, mas, embora persuadido da realidade de vossos ensinos, de que a morte o convenceu, ainda tentará provar-vos a inutilidade dos vossos esforços para difundi-los de maneira séria. Ei-lo pronto a apoiar-se em dissensões momentâneas suscitadas por alguns irmãos que se desgarraram, para vos provar a insanidade de vossa doutrina. Escutai-o. Sua linguagem vos fará conhecer de que maneira deveis falar-lhe.

Evocação. ─ Caro Espírito do Sr. D..., esperamos que com a ajuda de Deus e dos bons Espíritos, tenhais a bondade de vir comunicar-vos conosco. Todo sentimento de curiosidade, como podeis ver, está longe de nosso pensamento. Provocando esta comunicação, nosso objetivo é dela tirar uma instrução proveitosa para nós e talvez igualmente para vós. Assim, vos seremos reconhecidos pelo que nos quiserdes dizer.

Resposta. ─ Tendes razão de me chamar, mas vos enganais supondo que eu pudesse recusar-me a vir a vós. Acreditai que meu título de adversário do Espiritismo para mim não é outro motivo para guardar silêncio. Tenho boas razões para falar.

Minha vinda é uma confissão, uma afirmação dos vossos ensinos. Eu sei disso e o reconheço. Estou convencido da realidade das manifestações que hoje experimento, mas não é uma razão para que reconheça a sua excelência e que admita como certo o objetivo a que vos propondes. Sim, os Espíritos se comunicam, e não são apenas os demônios, como nós ensinamos, e por motivos óbvios. É inútil que me estenda a respeito, pois conheceis tão bem quanto eu as razões que nos levam a assim agir. Certamente os Espíritos de todas as categorias se comunicam; eu sou uma prova, porque, embora não tenha a vaidade de me acreditar um ser superior, quer pelos conhecimentos, quer pela moralidade, tenho bastante consciência do meu valor para me julgar acima dessas categorias de Espíritos sujeitos à expiação das mais vis imperfeições. Não sou perfeito. Como qualquer outro, posso ter cometido faltas, mas o reconheço com orgulho. Se fui homem de opinião, fui, ao mesmo tempo, homem de bem, no inteiro sentido da palavra.

Escutai-me, pois. Os padres podem estar errados em vos combater. Não sei o que reserva o futuro e não entrarei em discussão sobre se há ou não fundamento em sua oposição, verdadeiramente sistemática; mas, também, examinando com cuidado todas as consequências de uma aceitação, não podem deixar de reconhecer que causaríeis a sua ruína social ou, pelo menos, uma transformação tão absoluta, que todo privilégio, toda separação dos outros homens a rigor seriam aniquiladas. Ora, não se renuncia com alegria no coração a uma realeza muito invejável, a um prestígio que eleva acima do comum, a riquezas que, por serem materiais, não são menos necessárias à satisfação do padre quanto à do homem comum. Pelo Espiritismo, não mais oligarquia clerical; o padre não é ninguém e é alguém; o padre é o homem de bem que ensina a verdade aos seus irmãos; é o operário caridoso que ergue seu companheiro caído; vosso sacerdócio é a fé; vossa hierarquia, o mérito; vosso salário, Deus! É grande! É belo! Mas também, é preciso dizer, mais cedo ou mais tarde é a ruína, não do homem, que não pode senão ganhar com esses ensinos, mas da família clerical. Não se renuncia de boa vontade, repito, às honras, ao respeito que se está habituado a colher. Tendes razão, eu admito, contudo não posso desaprovar nossa atitude frente ao vosso ensino. Digo nossa, porque ainda é minha, a despeito de tudo o que vejo e de tudo o que me podereis dizer.

Admitamos vossa doutrina firmada; ei-la escutada, por toda parte estendendo suas ramificações, entre o povo como nas classes ricas; entre os artistas como entre os literatos; e é este último que vos prestará o concurso mais eficaz, entretanto, o que resultará de tudo isto? Em minha opinião, ei-lo:

Já se operaram divisões entre vós. Existem duas grandes seitas entre os espíritas: os espiritualistas da escola americana e os espíritas da escola francesa. Mas consideremos apenas esta última. Ela é una? Não. Eis, de um lado, os puristas ou kardecistas, que só admitem uma verdade depois de um exame atento e da concordância com todos os dados; é o núcleo principal, mas não está só; diversos ramos, depois de se haverem penetrado pelos grandes ensinamentos do centro, separam-se da mãe comum para formar seitas particulares; outros, não inteiramente destacados do tronco, emitem opiniões subversivas. Cada chefe de oposição tem os seus aliados; os campos ainda não estão delineados, mas se formam e em breve rebentará a cisão. Eu vos digo que o Espiritismo, como as doutrinas filosóficas que o precederam, não poderia ter uma longa duração. Ele nasceu e cresceu, mas agora está no auge e já decresce. Ele diariamente faz alguns adeptos, mas, como o sansimonismo, como o fourrierismo, como os teósofos, ele cairá para talvez ser substituído, mas cairá, eu o creio firmemente.

Contudo, seu princípio existe: os Espíritos. Mas, também, não tem os seus perigos? Os Espíritos inferiores podem comunicar-se, e isto é a sua perda. Os homens são, antes de tudo, dominados por suas paixões, e os Espíritos de que acabo de falar são habituados a excitá-las. Como há mais imperfeições do que qualidades em nossa Humanidade, é portanto evidente que o Espírito do mal triunfará e que se o Espiritismo algo pode, será certamente a invasão de um flagelo terrível para todos.

Assim sendo, concluo que, bom em essência, ele é mau por seus resultados e, então, é prudente rejeitá-lo.

O médium. ─ Caro Espírito, se o Espiritismo fosse uma concepção humana, eu estaria de acordo convosco, mas se vos é impossível negar a existência dos Espíritos, também não podeis desconhecer, no movimento dirigido pelos seres invisíveis, a mão poderosa da divindade. Ora, a menos que negásseis os vossos próprios ensinos de quando estáveis na Terra, não poderíeis admitir que a ação do homem possa ser um obstáculo à vontade de Deus, seu criador. De duas, uma: ou o Espiritismo é uma obra de invenção humana e, como toda obra humana, sujeito à ruína, ou é obra de Deus, a manifestação de sua vontade, e nesse caso nenhum obstáculo poderia impedi-lo, nem mesmo retardá-lo em seu desenvolvimento. Se, pois, reconheceis que existem Espíritos, e que esses Espíritos se comunicam para nos instruir, isto não pode estar fora da vontade divina, porque então existiria, ao lado de Deus, um poder independente, que destruiria sua qualidade de todopoderoso e, por consequência, de Deus. O Espiritismo não poderia ser arruinado pelo fato de algumas dissensões que os interesses humanos poderiam fazer nascer em seu seio.

Resposta. ─ Talvez tenhais razão, meu jovem amigo (o médium era um rapaz), mas eu mantenho o que disse. Cesso qualquer discussão a respeito. Isto à parte, estou à vossa disposição para qualquer pergunta que me queirais fazer.

O médium. ─ Então, considerando que o permitis, sem insistir num assunto que talvez vos fosse penoso prosseguir neste momento, rogaremos nos descrevais vossa passagem desta vida para a em que estais, dizer se ficastes perturbado e se, na vossa posição atual, vos podemos ser úteis.

Resposta. ─ Malgrado meu, não posso deixar de reconhecer a excelência desses princípios que ensinam ao homem o que é a morte e que lhe dão a afeição por seres que lhes são totalmente desconhecidos. Mas... enfim, meu caro rapaz, vou responder à vossa pergunta. Não abusarei do vosso tempo e satisfarei ao vosso desejo em poucas palavras.

Assim, confessarei que no momento de morrer não deixava de estar apreensivo. Era a matéria que me levava a lamentar esta existência? Era a ignorância do futuro? Não vo-lo ocultarei, eu tinha medo! Perguntais se fiquei perturbado. Como entendeis isto? Se quereis dizer com isto que a ação violenta da separação me mergulhou numa espécie de letargia moral, da qual saí como de um sono penoso, sim, fiquei perturbado. Mas se entendeis uma perturbação nas funções da inteligência: a memória, a consciência de mim mesmo, não. Não passei por isto. Contudo, a perturbação se verifica em certos seres; talvez também para mim, se bem que eu não acredite. Mas o que creio é que geralmente esse fenômeno não deve ocorrer imediatamente após a morte. É verdade que fiquei surpreso ao ver a existência do Espírito tal qual ensinais, mas isto não é perturbação. Eis como entendo a perturbação, e em que circunstâncias a experimentei.

Se eu não estivesse certo da verdade da minha crença; se a dúvida entrasse em minha alma a respeito do que até agora acreditei; se uma modificação brusca se tivesse operado em mim na maneira de ver, aí eu teria ficado perturbado. Mas minha opinião é que tal perturbação não se deve dar logo após a morte. Se creio no que me diz a razão, ao morrer, o ser deve ficar tal qual era antes de passar... Só mais tarde, quando o isolamento, a mudança que se opera gradualmente ao seu redor modificam suas opiniões, quando o seu ser experimenta um abalo moral que faz vacilar sua segurança primitiva, é que realmente começa a perturbação.

Perguntais se me podeis ser útil nalguma coisa. Minha religião me ensina que a prece é boa; vossa crença diz que ela é útil. Orai, pois, por mim, e tende certeza de minha gratidão.

Malgrado a dissidência que existe entre nós, não ficarei menos encantado por vir algumas vezes conversar convosco.

PADRE D...


Nosso correspondente tinha razão ao dizer que esta comunicação é instrutiva. Com efeito, ela é instrutiva sob vários aspectos, e nossos leitores apreenderão facilmente os graves ensinos que dela ressaltam, sem que tenhamos necessidade de destacá-los. Aí vemos um Espírito que em vida tinha combatido nossas doutrinas e contra ela esgotado todos os argumentos que seu profundo saber lhe havia fornecido. Sábio teólogo, é provável que não tivesse desprezado nenhum. Como Espírito há pouco desencarnado, reconhecendo as verdades fundamentais em que nos apoiamos, nem por isso persiste menos em sua posição, e isto pelos mesmos motivos. Ora, é incontestável que se, mais lúcido no seu estado espiritual, ele tivesse achado argumentos mais peremptórios para nos combater, tê-los-ia feito valer. Longe disto, parece ter medo de ver muito claro, entretanto, pressente uma modificação em suas ideias. Ainda imbuído das ideias terrenas, a elas liga todos os seus pensamentos. O futuro o apavora, por isto não ousa encará-lo.

Responder-lhe-emos como se em vida tivesse escrito o que ditou após a morte. Dirigimo-nos tanto ao homem quanto ao Espírito, assim respondendo aos que partilham sua maneira de ver e nos poderiam opor os mesmos argumentos. Assim, lhe diremos:

Senhor padre, embora tenhais sido nosso adversário declarado e militante na Terra, nenhum de nós assim vos quer hoje e jamais vos quis durante vossa existência, primeiro porque nossa fé faz da tolerância uma lei e aos nossos olhos todas as opiniões são respeitáveis, quando sinceras. A liberdade de consciência é um dos nossos princípios; nós a queremos para os outros, como a queremos para nós. Só a Deus pertence julgar da validade das crenças, e nenhum homem tem o direito de anatematizar em nome de Deus. A liberdade de consciência não tira o direito de discussão e de refutação, mas a caridade ordena não amaldiçoar ninguém. Em segundo lugar, não vos queremos menos, pois vossa oposição não causou nenhum prejuízo à doutrina. Servistes à causa do Espiritismo, malgrado vosso, como todos os que o atacam, ajudando a torná-lo conhecido e provando, sobretudo em razão do vosso mérito pessoal, a insuficiência das armas que empregam para combatê-lo.

Permiti-me, agora, discutir algumas de vossas proposições.

Sobretudo uma me parece pecar, de saída, contra a lógica. É aquela em que dizeis que “O Espiritismo, bom pela essência, é mau por seus resultados.” Parece que esquecestes a máxima do Cristo, tornada proverbial, pela força da verdade: “Uma árvore boa não pode dar maus frutos.” Não se compreenderia que uma coisa boa na sua própria essência, pudesse ser perniciosa.

Em outro momento, dizeis que o perigo do Espiritismo está na manifestação dos maus Espíritos que, em proveito do mal, explorarão as paixões dos homens. Eis uma das teses que sustentáveis em vida. Mas, ao lado dos maus Espíritos, há os bons, que excitam ao bem, ao passo que, segundo a doutrina da Igreja, o poder de se comunicar só é dado aos demônios. Se, pois, achais o Espiritismo perigoso porque admite a comunicação dos maus Espíritos ao lado dos bons, se a doutrina da Igreja fosse verdadeira, seria ainda muito mais perigosa, porque não admite senão a dos maus.

Aliás, não foi o Espiritismo que inventou a manifestação dos Espíritos, nem é a causa de sua comunicação. Ele apenas constata um fato que se produziu em todos os tempos, porque está em a Natureza. Para que o Espiritismo deixasse de existir, fora preciso que os Espíritos parassem de se manifestar. Se essa manifestação oferece perigos, não se deve acusar por isso o Espiritismo, mas a Natureza. A ciência da eletricidade é a causa dos danos causados pelo raio? Certamente que não. Ela dá a conhecer a causa do raio e ensina os meios de desviá-lo. O mesmo ocorre com o Espiritismo. Ele dá a conhecer a causa de uma influência perniciosa que age sobre o homem, malgrado seu, e lhe indica os meios de contra ela se proteger, ao passo que se a ignorasse sofreria os seus efeitos e a ela estaria exposto sem suspeitar.

A influência dos maus Espíritos faz parte dos flagelos a que o homem está exposto aqui embaixo, como as doenças e os acidentes de toda sorte, porque está numa terra de expiação e de provação, onde deve trabalhar por seu adiantamento moral e intelectual. Mas, ao lado do mal, em sua bondade, Deus sempre põe o remédio; ele deu ao homem a inteligência para descobri-lo. É a isto que conduz o progresso das ciências. O Espiritismo vem indicar o remédio a um desses males. Ele ensina que para a ele subtrair-se e neutralizar a influência dos maus Espíritos, é preciso tornar-se melhor, dominar suas más inclinações e praticar as virtudes ensinadas pelo Cristo: a humildade e a caridade. Então a isto chamais de maus resultados?

A manifestação dos Espíritos é um fato positivo, reconhecido pela Igreja. Ora, hoje a experiência vem demonstrar que os Espíritos são as almas dos homens, e essa é razão pela qual há tantos imperfeitos. Se esse fato vem contradizer certos dogmas, o Espiritismo não é mais responsável do que a Geologia por ter demonstrado que a Terra não foi feita em seis dias. O erro é desses dogmas que não estão de acordo com as leis da Natureza. Por essas manifestações, como pelas descobertas da Ciência, Deus quer reconduzir o homem a crenças mais verdadeiras. Repudiar o progresso, portanto, é desconhecer a vontade de Deus; atribuí-lo ao demônio é blasfemar contra Deus. Querer, de bom grado ou de mau grado, manter uma crença contra a evidência e fazer de um princípio reconhecido como falso a base de uma doutrina, é escorar uma casa no esteio bichado. Pouco a pouco e esteio se quebra e a casa cai.

Dizeis que a oposição da Igreja ao Espiritismo tem sua razão de ser e a aprovais, porque seria a ruína do clero, cuja separação do comum dos homens seria aniquilada. Dizeis: “Com o Espiritismo, não mais oligarquia clerical; o padre não é ninguém e é alguém; é o homem de bem que ensina a verdade a seus irmãos; é o operário caridoso que ergue o companheiro caído; vosso sacerdócio é a fé; vossa hierarquia, o mérito; vosso salário, Deus! É grande! É belo! Mas não se renuncia de coração alegre a uma realeza, a um prestígio que vos eleva acima do vulgo, a respeitos, a honras que se está habituado a colher, a riquezas que, por serem materiais, não são tão menos necessárias à satisfação do padre quanto a do homem vulgar.”

Mas quê! Então o clero seria movido por sentimentos tão mesquinhos? Neste ponto ele desconheceria as palavras do Cristo: “Meu reino não é deste mundo”, a ponto de sacrificar o interesse da verdade à satisfação do orgulho, da ambição e das paixões mundanas? Então ele não acreditaria nesse reino prometido por Jesus Cristo, porque a ele prefere o da Terra. Assim, ele teria seu ponto de apoio no Céu apenas em aparência, e para se dar prestígio, mas na verdade para salvaguardar seus interesses terrenos! Nós preferimos crer que se tal for o móvel de alguns de seus membros, não é o sentimento da maioria. Se assim não fosse, seu reino estaria bem próximo de acabar, e vossas palavras seriam sua sentença, porque apenas o reino celeste é o eterno, ao passo que os da Terra são frágeis e instáveis.

Ides muito longe, senhor padre, em vossas previsões sobre as consequências do Espiritismo, mais longe do que eu em meus escritos. Sem vos acompanhar neste terreno, apenas direi, porque cada um o pressente, que o resultado inevitável será uma transformação da Sociedade; ele criará uma nova ordem de coisas, novos hábitos, novas necessidades; ele modificará as crenças, as relações sociais; ele fará à moral o que fazem, do ponto de vista material, todas as grandes descobertas da Indústria e das Ciências. Essa transformação vos apavora e é por isso que, pressentindo-a, vós a afastais do vosso pensamento; quereríeis nela não crer; numa palavra, fechais os olhos para não ver e os ouvidos para não ouvir. Assim há muitos homens na Terra. Contudo, se essa transformação está nos desígnios da Providência, ela se realizará, façam o que fizerem. Será preciso suportá-la de boa vontade ou à força e a ela se dobrar, como os homens do antigo regime tiveram que sofrer as consequências da Revolução, que eles também negavam e declaravam impossível, antes que se tivesse realizado.

A quem lhes houvesse dito que em menos de um quarto de século todos os privilégios estariam abolidos; que um menino, ao nascer, não seria mais coronel; que não mais se compraria um regimento como uma boiada; que o soldado poderia tornar-se marechal e o último plebeu, ministro; que os direitos seriam os mesmos para todos e que o lavrador teria voz igual nos grandes negócios de seu país, ao lado do seu senhor, eles teriam balançado a cabeça em sua incredulidade, contudo, se um deles tivesse então adormecido e acordado, como Epimênides, quarenta anos mais tarde, julgaria achar-se num outro mundo.

É o medo do futuro que vos faz dizer que o Espiritismo terá apenas um tempo. Procurais criar uma ilusão, quereis prová-la para vós mesmo e acabeis crendo de boa-fé, porque isto vos tranquiliza. Mas que razão apresentais? A menos concludente de todas, como é fácil demonstrar.

Ah! Se provásseis peremptoriamente que o Espiritismo é uma utopia, que repousa num erro material de fato, sobre uma base falsa, ilusória, sem fundamento, então teríeis razão. Mas, ao contrário, afirmais a existência do princípio e, ademais, a excelência desse princípio. Reconheceis, e convosco a Igreja, a realidade do fato material sobre o qual repousa: o das manifestações. Tal fato pode ser aniquilado? Não, assim como não se pode aniquilar o movimento da Terra. Levando-se em conta que ele está em a Natureza, produzir-se-á sempre. Esse fato, outrora incompreendido, mas melhor estudado e compreendido em nossos dias, traz em si mesmo consequências inevitáveis. Se não o podeis aniquilar, sois forçado a sofrerlhe as consequências. Segui-o passo a passo em suas ramificações, e chegareis fatalmente a uma revolução nas ideias. Ora, uma mudança nas ideias traz, forçosamente, uma mudança na ordem das coisas. (Vide O que é o Espiritismo).

Por outro lado, o Espiritismo não dobra as inteligências ao seu jugo; ele não impõe uma crença cega; ele quer que a fé se apoie na compreensão. É principalmente nisto, senhor padre, que divergimos na maneira de ver. Assim, a cada um deixa ele inteira liberdade de exame, em virtude do princípio que, sendo a verdade una, mais cedo ou mais tarde ela deve prevalecer sobre o que é falso, e que um princípio baseado no erro cai pela força das coisas. As ideias falsas, postas em discussão, mostram seu lado fraco e se apagam ante o poder da lógica. Essas divergências são inevitáveis no começo; são mesmo necessárias, porque ajudam a depuração e o estabelecimento da ideia fundamental. É preferível que elas se produzam desde o começo, pois a doutrina verdadeira delas se desembaraçará mais cedo. Eis por que sempre dissemos aos adeptos: Não vos inquieteis com as ideias contraditórias que podem ser emitidas ou publicadas. Vede quantas já morreram no nascedouro! Quantos escritos dos quais não mais se fala! O que buscamos? O triunfo, a qualquer preço, de nossas ideias? Não, mas o da verdade. Se entre as ideias contrárias, algumas forem mais verdadeiras que as nossas, elas triunfarão e deveremos adotá-las; se forem falsas, não poderão suportar a prova decisiva do controle do ensino universal dos Espíritos, único critério da ideia que sobreviverá.

Falta exatidão na assimilação que estabeleceis entre o Espiritismo e outras doutrinas filosóficas. Não foram os homens que fizeram do Espiritismo o que ele é, nem os que farão o que ele será mais tarde: são os Espíritos por seus ensinos. Os homens apenas o põem em ação e coordenam os materiais que lhes são fornecidos. Esse ensino ainda não está completo e não se deve considerar o que deram até hoje senão como as primeiras balizas da ciência. Pode-se compará-lo às quatro regras em relação às matemáticas, e ainda estamos nas equações do primeiro grau. É por isso que muita gente ainda não lhe compreende a importância nem o alcance. Mas os Espíritos regulam o ensino à sua vontade, e de ninguém depende fazê-los ir mais depressa ou mais devagar do que eles querem; eles nem acompanham os apressados nem vão a reboque dos retardatários.

O Espiritismo não é obra de um só Espírito nem de um só homem. Ele é obra dos Espíritos em geral. Segue-se daí que a opinião de um Espírito sobre um princípio qualquer só é considerada pelos espíritas como opinião individual, que pode ser justa ou falsa e só tem valor quando sancionada pelo ensino da maioria, dado nos diversos pontos do globo. Foi esse ensino universal que dele fez o que ele é e que dele fará o que ele será. Diante desse poderoso critério caem, necessariamente, todas as teorias particulares que são produto de ideias sistemáticas, quer de um homem, quer de um Espírito isolados. Sem dúvida uma ideia falsa pode reunir ao seu redor alguns partidários, mas jamais prevalecerá contra a que é ensinada em toda parte.

O Espiritismo, que apenas acaba de nascer, mas que já levanta questões da mais alta importância, necessariamente põe em efervescência uma porção de imaginações. Cada um vê a coisa de seu ponto de vista. Daí a diversidade de sistemas surgidos em seu começo, a maioria dos quais já ruíram diante da força do ensino geral. Dar-se-á o mesmo com os que não estiverem com a verdade, porque, ao ensino divergente de um Espírito, dado por um médium, opor-se-á sempre o ensino de milhões de Espíritos, dado por milhões de médiuns. Eis a razão pela qual certas teorias excêntricas viveram apenas alguns dias e não saíram do círculo onde nasceram. Privadas de sanção, elas não encontram eco nem simpatia na opinião das massas e se, além disso, chocam a lógica e o senso comum, provocam um sentimento de repulsa que lhes precipita a queda.

Assim, o Espiritismo possui um elemento de estabilidade e de unidade tirado de sua natureza e de sua origem, o que não é próprio de nenhuma das doutrinas filosóficas de concepção puramente humana; é o escudo contra o qual sempre virão quebrar-se todas as tentativas feitas para derrubá-lo ou dividi-lo. Essas divisões jamais podem ser senão parciais, circunscritas e momentâneas.

Falais de seitas que, em vossa opinião, dividem os espíritas, de onde concluís pela próxima ruína de sua doutrina. Mas esqueceis todas as que dividiram o Cristianismo desde seu nascimento, que o ensanguentaram, que o dividem ainda, e cujo número, até hoje, não se eleva a menos de trezentos e sessenta. Contudo, a despeito das dissidências profundas sobre os dogmas fundamentais, o Cristianismo ficou de pé, prova de que é independente dessas questões de controvérsia. Por que quereríeis que o Espiritismo, que se liga, por sua própria base, aos princípios do Cristianismo, e que só é dividido em questões secundárias que dia a dia se esclarecem, sofresse com a divergência de algumas opiniões pessoais, quando tem um ponto de ligação tão poderoso como o controle universal?

Assim, mesmo que o Espiritismo fosse hoje dividido em vinte seitas, o que não é nem será, isto não teria qualquer consequência, porque é o trabalho de parto. Se fossem suscitadas divisões por ambições pessoais, por homens dominados pela ideia de se fazerem chefes de seita, ou de explorar a ideia em proveito de seu amorpróprio ou de seus interesses, sem a menor dúvida seriam as menos perigosas. As ambições pessoais morrem com os indivíduos, e se os que tiverem querido elevar-se não tiverem por si a verdade, suas ideias morrerão com eles, e talvez antes deles. Mas a verdade verdadeira não poderá morrer.

Estais certo, senhor padre, dizendo que haverá ruínas no Espiritismo, mas não como entendeis. As ruínas serão as de todas as opiniões errôneas, que fervem e surgem. Se todas estiverem em erro, cairão todas, o que é inevitável, mas se houver uma só verdadeira, ela infalivelmente sobreviverá.

Duas divisões bem marcadas, e às quais poderia realmente dar-se o nome de seitas, se haviam formado há alguns anos quanto ao ensinamento de dois Espíritos que, enfeitando-se com nomes venerados, tinham captado a confiança de algumas pessoas. Hoje não se fala mais nisto. Diante de que tombaram? Diante do bom-senso e da lógica das massas, de um lado, e diante do ensino geral dos Espíritos concordes com essa mesma lógica.

Contestareis o valor desse controle universal pela razão de que, sendo os Espíritos as almas dos homens, estão igualmente sujeitos ao erro? Mas estaríeis em contradição convosco mesmo. Não admitis que um concílio geral tem mais autoridade que um concílio particular, porque é mais numeroso, e que sua opinião prevalece sobre a de cada padre, de cada bispo e mesmo sobre a do Papa? Que a maioria faz lei em todas as assembleias dos homens? E não queríeis que os Espíritos, que governam o mundo sob as ordens de Deus, também tivessem os seus concílios, as suas assembleias? O que admitis nos homens como sanção da verdade, recusais aos Espíritos? Então esqueceis que se, entre eles, os há inferiores, não é a esses que Deus confia os interesses da Terra, mas aos Espíritos superiores, que transpuseram as etapas da Humanidade, e cujo número é incalculável? E como eles nos transmitem as instruções da maioria? Pela voz de um só Espírito, ou de um só homem? Não, mas como disse, por milhões de Espíritos e milhões de homens. É num único centro, numa cidade, num país, numa casta, num povo privilegiado como outrora os israelitas? Não, é por toda parte, em todos os países, em todas as religiões, na casa dos ricos e na casa dos pobres. Como queríeis que a opinião de alguns indivíduos, encarnados e desencarnados, pudesse triunfar sobre esse conjunto formidável de vozes? Acreditai-me, senhor padre, essa sanção universal vale bem a de um concílio ecumênico.

O Espiritismo é forte, precisamente porque se apoia sobre essa sanção e não sobre opiniões isoladas. Proclama-se ele imutável no que hoje ensina, e diz que nada mais tem a ensinar? Não, porque até hoje seguiu, e seguirá no futuro, o ensino progressivo que lhe for dado, e isto constitui ainda para ele uma causa de força, pois jamais se deixará distanciar pelo progresso.

Esperai um pouco mais, senhor padre, e antes de um quarto de século vereis o Espiritismo cem vezes menos dividido do que hoje é o Cristianismo, após dezoito séculos.

Das flutuações que notastes nas sociedades ou reuniões espíritas, erradamente concluístes pela instabilidade da doutrina. O Espiritismo não é uma teoria especulativa baseada numa ideia preconcebida. É uma questão de fato e, por consequência, de convicção pessoal. Quem quer que admita o fato e as suas consequências é espírita, sem que tenha de fazer parte de uma sociedade. Pode-se ser perfeito espírita sem isto. O futuro do Espiritismo está em seu próprio princípio, princípio imperecível, porque está na Natureza e não nas reuniões, muitas vezes formadas em condições pouco favoráveis, compostas de elementos heterogêneos e, consequentemente, subordinadas a uma porção de eventualidades.

As sociedades são úteis, mas nenhuma é indispensável, e todas poderiam deixar de existir sem que o Espiritismo deixasse de continuar a sua marcha, visto que não é no seio delas que se forma o maior número de convicções. Elas representam muito mais para os crentes que aí buscam centros simpáticos do que para os incrédulos. As sociedades sérias e bem dirigidas são, sobretudo, úteis para neutralizar a má impressão daquelas onde o Espiritismo é mal apresentado ou desfigurado. A Sociedade de Paris não faz exceção à regra, porque não se arroga nenhum monopólio. Ela não consiste no maior ou menor número de seus membros, mas na ideia mãe que representa. Ora, essa ideia é independente de qualquer reunião constituída, e, aconteça o que acontecer, o elemento propagador não deixará de substituí-la. Assim, pode dizer-se que a Sociedade de Paris está em qualquer parte onde se professem os mesmos princípios, do Oriente ao Ocidente, e que se ela morresse materialmente, a ideia sobreviveria.

O Espiritismo é uma criança que cresce e cujos primeiros passos naturalmente são vacilantes; mas, como as crianças precoces, cedo ela fez pressentir a sua força. É por isto que certas pessoas se amedrontam e gostariam de abafá-lo no berço. Se ele se tivesse apresentado como um ser tão débil quanto o supondes, não teria causado tanta contrariedade, nem levantado tantas animosidades, e vós mesmo não teríeis procurado combatê-lo. Deixai, então, a criança crescer e vereis o que dará o adulto.

Predissestes o seu fim próximo, mas inúmeros encarnados e desencarnados também fizeram o seu horóscopo num outro sentido. Escutai, pois, as suas previsões, que se sucedem ininterruptamente há dez anos, e se repetem em todos os pontos do globo.

“O Espiritismo vem combater a incredulidade, que é o elemento dissolvente da Sociedade, substituindo a fé cega, que se extingue, pela fé raciocinada, que vivifica.

“Ele traz o elemento regenerador da Humanidade, e será a bússola das gerações futuras.

“Como todas as grandes ideias renovadoras, ele deverá lutar contra a oposição dos interesses que ferirá e das ideias que derrubará. Suscitar-lhe-ão todos os tipos de entraves; contra ele empregarão todas as armas, leais e desleais, que julgarão próprias a derrubá-lo. Seus primeiros passos serão semeados de urzes e espinhos. Seus adeptos serão denegridos, ridicularizados, vítimas da traição, da calúnia e da perseguição; terão desapontamentos e decepções. Felizes aqueles cuja fé não tiver sido abalada nesses dias nefastos; que tiverem sofrido e combatido pelo triunfo da verdade, porque serão recompensados por sua coragem e sua perseverança.

“Entretanto, o Espiritismo continuará sua marcha através dos embustes e dos escolhos; é inabalável, como tudo o que está na vontade de Deus, porque se apoia nas próprias leis da Natureza, que são as eternas leis de Deus, ao passo que tudo quanto for contrário a essas leis cairá.

“Pela luz que lança sobre os pontos obscuros e controvertidos das Escrituras, ele conduzirá os homens à unidade de crença.

“Dando as próprias leis da Natureza por base aos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade, fundará o reino da verdadeira caridade cristã, que é o reino de Deus sobre a Terra, predito por Jesus Cristo.

“Muitos ainda o repelem porque não o conhecem ou não o compreendem, mas quando reconhecerem que ele realiza as mais caras esperanças do futuro da Humanidade, aclamá-lo-ão, e assim como o Cristianismo encontrou um suporte em São Paulo, ele encontrará defensores entre os adversários da véspera. Da multidão surgirão homens de escol, que tomarão em mãos a sua causa e a autoridade de sua palavra imporá silêncio aos detratores.

“A luta ainda durará muito tempo, porque as paixões, superexcitadas pelo orgulho e pelos interesses materiais, não podem apaziguar-se subitamente. Mas essas paixões extinguir-se-ão com os homens, e não passará o fim deste século antes que a nova crença tenha adquirido um lugar preponderante entre os povos civilizados, e do século próximo datará a era da regeneração.”

TEXTOS RELACIONADOS

Mostrar itens relacionados

Utilizamos cookies para melhorar sua experiência. Saiba mais em nossa Política de Privacidade.