Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Extraído do Journal de Saint-Jean d’Angély de 5 de março de 1865

SOCIEDADE DE ESTUDOS ESPÍRITA DE SAINT-JEAN D’ANGELY

GOLPE DE VISTA SOBRE O ESPIRITISMO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS


Existe uma secreta harmonia contínua entre o mundo visível e o mundo dos Espíritos. Essa harmonia e suas manifestações possíveis, eis, sem contradita, uma das grandes questões de nossa época. Dela nos propomos tratar nas colunas deste jornal.

Dirigimos a todos, sem dúvida, mas mais particularmente àqueles cujas ocupações diárias impedem de se entregarem ao estudo contínuo, nas grandes obras, dos fatos tão comoventes que, assinalados de um a outro extremo do Universo, são proclamados e atestados pelos homens mais instruídos. Demonstrar a possibilidade desses fatos pela revelação de leis naturais até agora desconhecidas; despojá-los do epíteto irônico de pretensos milagres com que pretendem diminuí-lo aos olhos daqueles que nada sabem sobre isto; iniciá-los no conhecimento da doutrina daí decorrente e deduzir dessa doutrina as consequências tão consoladoras que a mesma contém, eis o nosso objetivo.

Falam de milagres. Se um há, incompreensível aos nossos olhos, é o da frieza e da indiferença, reais ou simuladas, de homens inteligentes e probos, em presença das manifestações que surgem em todos os recantos do mundo e que são diariamente publicadas em profusão.

Se a reprodução daquilo que tantos outros viram apenas conduzisse à satisfação de uma curiosidade infantil, ou não tivesse como resultado senão a utilização dos momentos que não podiam ser melhor empregados, oh! então compreenderíamos o desdém e as leviandades de linguagem.

Já não pode ser assim quando pensamos que se trata não apenas do mais importante objetivo de nossa existência, ou seja, a solução, pela prova palpável da imortalidade de nossas almas, da questão por tanto tempo discutida de nossos destinos futuros, mas que se trata também, e sobretudo, do chamamento, pela convicção dessas grandes verdades, daqueles que delas se afastam para o cumprimento de seus deveres para com Deus, para com os seus semelhantes e para consigo mesmos.

Observai bem: Sois membros de um júri. Testemunhas que desconheceis, que jamais vistes, vêm afirmar o fato mais inverossímil: o assassinato de um pai pelo filho, ou de um filho pelo pai. Acreditais e condenais o miserável autor de semelhante crime, e fazeis bem. Mas, sondemos a questão com a mão na consciência. Pensais que se esse infeliz tivesse acreditado num Deus poderoso e justo; se ele há muito tempo tivesse compreendido que seu ato horrível teria infalivelmente sua punição numa outra existência; pensais que ele não teria recuado ante a realização de seu crime? Não, não pensais. Como nós, dizeis: Sim, a crença, mas a crença firme e sem restrições, a crença absoluta num Deus justo, nas penas e recompensas numa outra vida, onde cada um receberá conforme suas obras aqui, eis o freio que deve ser o mais difícil de quebrar; e ainda tendes razão.

Infelizmente, estas crenças, para a quase universalidade das pessoas, são desconhecidas do grande problema da moralidade universal.

Parai um pouco! ─ grita a maioria delas. ─ Deixamos de estar de acordo. Há muito a nossa inteligência e os nossos estudos nos deram a conhecer a solução que indicais. Para nós, vossas pretensas novas provas são inúteis. Nós somos e sempre fomos crentes.

É precisamente esta a linguagem que nos liga a todos os mártires.

Dizeis que sempre acreditastes, pelo menos nos assegurais. Tanto melhor para vós, senhores. Se é preciso confessá-lo, nós não duvidamos. Recebei nossas sinceras felicitações. Ficaríamos realmente felizes se pudéssemos afirmar outro tanto. Francamente concordamos que malgrado o favor de todas as boas condições que puderam contribuir para elevar as nossas ideias, restava-nos muito caminho a percorrer para termos feito tanto quanto vós fizestes. Quantos de nossos irmãos, com mais forte razão, puderam ficar na retaguarda, privados que estavam por suas posições sociais das vantagens do estudo e eventualmente de alguns bons exemplos?

Sim, a fé está morta. Todos os doutores da lei o confessam e gemem por isto. Jamais, a despeito de seus esforços, jamais a incredulidade foi mais profunda, mais geral. Segui um pouco esta longa fila de homens que acabam de conduzir, como eles dizem, um dos seus à última morada, e ouvireis noventa e cinco por cento deles repetirem: Mais um no fim das penas. Tristes palavras, triste e ao mesmo tempo grande prova da insuficiência dos meios empregados em nossos dias para a propagação da única e verdadeira felicidade de que os homens poderiam desfrutar em nossa Terra, para a propagação da fé.

Deus seja louvado! Um novo farol brilha para todos. Abaixo o privilégio! Lugar para os homens de boa vontade! Sem esforços da inteligência, sem estudos difíceis e custosos, o mais humilde, o menos instruído, como todos os seus irmãos, pode contemplar, se quiser, a luz divina. Só não a verão aqueles que não quiserem ver.

Se assim é, repetimos, os homens mais honestos, os mais instruídos, cujos nomes citaremos por falanges, dão o testemunho mais autêntico. Se assim é, dizemos nós, por que aventurar-se a pôr a luz debaixo do velador? Por que, pelo simples fato de não sentirmos necessidade deles para nós, rejeitar sem exame fenômenos cujo conhecimento e apreciação podem, senão sempre, pelos menos muitas vezes, deter a criatura sobre desfiladeiros fatais para os quais impelem a dúvida e a incredulidade; podem, em todo caso, e por tão pouco, reerguer pela esperança a coragem prestes a sucumbir ao peso do infortúnio?

Eis os benefícios que, pelo exemplo, tão facilmente podemos espalhar em redor de nós, mas que a indiferença, tanto quanto a oposição, podem retardar o seu progresso e a sua difusão.

(Continua)

A. CHAIGNEAU D. ─ M. ─ P.

OBSERVAÇÃO: Nossa previsão emitida no artigo precedente a propósito do sermão de Montauban começa a realizar-se. Eis aqui um jornal que não é órgão do Espiritismo e que hoje acolhe, o que certamente não teria feito há um ano, não o relato dos fatos, mas artigos de fundo, desenvolvendo os princípios da doutrina. E de quem são esses artigos? De um desconhecido? De um ignorante? Não. Eles são de um médico que desfruta na região de uma reputação de saber justamente merecida e de uma consideração devida às suas eminentes qualidades. Mais um exemplo que terá imitadores.

Conhecemos mais de um jornal que não teria repugnância de falar favoravelmente do Espiritismo; que falaria mesmo de boa vontade, se não fosse o medo de desagradar certos leitores e comprometer seus próprios interesses. Esse medo poderia ter fundamento há algum tempo, mas hoje já não tem. Há alguns anos a opinião mudou muito a respeito do Espiritismo. Já não é uma coisa desconhecida. Dele se fala em toda parte, e já não riem tanto. De tal modo a ideia está vulgarizada, que se há alguma coisa que cause espanto é ver a imprensa indiferente a uma questão que preocupa as massas e que conta os seus partidários por milhões em todos os países do mundo e nas mais esclarecidas camadas da sociedade; é, sobretudo, por ver homens de inteligência criticá-la sem dela saber a primeira palavra. É, então, uma questão fútil essa que levanta a cólera de todo um partido? Esse partido comover-se-ia se nela visse apenas um mito sem consequências? Ele riria dela, mas considerando-se que se zanga, que troveja, que acende os seus autosde-fé, com a esperança de matar a ideia, é que existe algo de sério. Ah! Se todos os que se dizem representantes do progresso se dessem ao trabalho de aprofundar a questão, é provável que não a tratassem com tanto desdém.

Seja como for, nosso objetivo aqui não é fazer a sua apologia. Apenas queremos registrar, como um fato constatado, que a ideia espírita tomou posição entre as doutrinas filosóficas; que ela constitui uma opinião cujos representantes se multiplicam de tal modo que seus adversários são os primeiros a proclamá-la. A consequência natural disto é que os jornais que forem francamente simpáticos a esta causa terão as simpatias de seus aderentes, e estes são bastante numerosos para compensar amplamente algumas defecções que eles pudessem experimentar, se é que as experimentariam.

Do ponto de vista da ideia espírita, o público se divide em três categorias: os partidários, os indiferentes e os antagonistas. É evidente que as duas primeiras constituem a imensa maioria. Os partidários a procurarão por simpatia; os indiferentes ficarão satisfeitos por encontrar numa discussão imparcial os meios de esclarecer aquilo que ignoram. Quanto aos antagonistas, em maioria, contentar-se-ão em não ler os artigos que lhes não convêm, mas, por este motivo, não renunciarão a um jornal que lhes agrade sob outros aspectos: suas tendências políticas, sua redação, seus folhetins, ou a variedade de notícias diversas. Aliás, os adversários natos do Espiritismo têm seus jornais especiais. Ema suma, é certo que, no estado atual da opinião, com isto mais ganhariam do que perderiam.

Sem dúvida dirão, e com razão, que a convicção não se impõe, e que um jornal, assim como um indivíduo, não pode abraçar ideias que não sejam as suas. Isto é muito justo, mas não impede a imparcialidade. Ora, até hoje, com pequeníssimo número de exceções, os jornais abriram suas colunas à crítica, tão largamente quanto possível, assim como aos ataques, à própria difamação contra uma numerosa classe de cidadãos, lançando sem escrúpulo o ridículo e o desprezo sobre as pessoas, ao passo que as fecharam impiedosamente à defesa. Quantas vezes a lei não deu à réplica direitos que foram ignorados! Seria necessário, então, recorrer a medidas de rigor, intentar processos? Estes teriam sido aos milhares, de dez anos para cá. Perguntamos se há nisso imparcialidade, justiça, da parte das folhas que incessantemente proclamam a liberdade de pensamento, a igualdade de direitos e a fraternidade. Compreende-se a refutação de uma doutrina que se não compartilha; a discussão raciocinada e de boa-fé dos seus princípios, mas o que não é justo nem leal, é desnaturá-la e fazê-la dizer o contrário do que ela diz, visando desacreditá-la. Ora, é isto o que fazem diariamente os adversários do Espiritismo. Admitir a defesa depois do ataque, a retificação das inexatidões, não seria esposar os princípios. Seria apenas imparcialidade e lealdade. Um jornal poderia mesmo ir mais longe. Sem renunciar às suas convicções e com toda reserva de suas opiniões pessoais, ele poderia admitir a discussão do pró e do contra. Assim, poria seus leitores em condições de julgar uma questão que vale bem a pena, pela repercussão que ela adquire dia a dia.

Devemos, pois, elogios à imparcialidade do jornal que acolhe os artigos do Sr. Chaigneau. Devemo-los, também, ao autor que, como um dos primeiros, entra na arena da publicidade oficial, para aí sustentar a nossa causa, com a autoridade de um homem de Ciência. O artigo referido acima é apenas a introdução ao seu trabalho. O número de 12 de março contém a entrada da matéria. É uma exposição sabiamente embasada do histórico do Espiritismo moderno. Lamentamos que sua extensão não nos permita reproduzi-la.

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