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Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1858 > Agosto
Agosto
Contradições na linguagem dos Espíritos.
As contradições, encontradas tão frequentemente na linguagem dos Espíritos, mesmo sobre questões essenciais, para algumas pessoas foram até aqui uma causa de incerteza, quanto ao valor real de suas comunicações, circunstância da qual não deixam os adversários de tirar partido. À primeira vista, essas contradições parecem realmente uma das principais pedras de tropeço da ciência espírita. Vejamos se têm elas a importância que lhes emprestam.
Perguntaremos, de início, qual a ciência que não teve, em seus primórdios, semelhantes anomalias; qual o sábio que, nas suas investigações, não foi algumas vezes confundido por fatos que aparentemente contradiziam as regras estabelecidas; se a botânica, a zoologia, a fisiologia, a medicina e a nossa própria língua não nos oferecem milhares de exemplos semelhantes e se suas bases desafiam qualquer contradição. É comparando os fatos, observando as analogias e as dessemelhanças que pouco a pouco se chega a estabelecer as regras, as classificações, os princípios: numa palavra, a constituir a ciência. Ora, o Espiritismo apenas acaba de desabrochar. Assim, pois, não é de admirar que se ajuste à lei comum, até que seu estudo esteja completo. Só então reconhecer-se-á que aqui, como em tudo o mais, a exceção quase sempre vem confirmar a regra.
Aliás, os Espíritos sempre nos disseram que não nos inquietássemos com essas pequenas divergências, e que em pouco tempo todos seriam levados à unidade de crença. Com efeito, esta predição se realiza diariamente, à medida que mais e mais penetramos nas causas desses fenômenos misteriosos e que os fatos são mais bem observados. Já as dissidências manifestadas na origem tendem evidentemente a um enfraquecimento. Pode-se mesmo dizer que atualmente não passam de opiniões pessoais isoladas.
Embora o Espiritismo esteja na natureza e tenha sido conhecido e praticado desde a mais alta antiguidade, é um fato que em nenhuma outra época foi tão universalmente espalhado quanto em nossos dias. É que outrora faziam dele um estudo misterioso, no qual o vulgo não era iniciado. Ele se conservou por uma tradição que as vicissitudes da humanidade e a falta de meios de transmissão enfraqueceram insensivelmente. Os fenômenos espontâneos, que não deixaram de se produzir de vez em quando, passaram despercebidos ou foram interpretados segundo os preconceitos ou a ignorância da época; ou, ainda, foram explorados em proveito desta ou daquela crença. Estava reservado ao nosso século, no qual o progresso recebe um impulso incessante, trazer à plena luz uma ciência que, por assim dizer, apenas existia em estado latente. Só há alguns anos é que os fenômenos foram observados seriamente. Na verdade o Espiritismo é uma ciência nova, que se implanta pouco a pouco no espírito das massas, esperando ocupar uma posição oficial. A princípio esta ciência pareceu muito simples. Para as criaturas superficiais, não passava da arte de mover as mesas. Uma observação mais atenta, entretanto, revelou que era, por suas ramificações e por suas consequências, muito mais complexa do que se imaginava. As mesas girantes são como a maçã de Newton, que na sua queda encerra o sistema do mundo.
Aconteceu com o Espiritismo o que acontece, de início, a todas as coisas: os primeiros não puderam ver tudo; cada um viu por seu lado e apressou-se a comunicar as suas impressões sob seu ponto de vista e conforme às suas ideias e preconceitos. Ora, não se sabe que, conforme o meio, um mesmo objeto a uns pode parecer frio e a outros quente?
Tomemos ainda outro exemplo das coisas vulgares, mesmo triviais, a fim de nos fazermos melhor entender.
Lemos, ultimamente, em vários jornais: “O cogumelo é um produto dos mais bizarros: delicioso ou mortal, microscópico ou de dimensões fenomenais, constantemente desorienta os botânicos. No túnel de Doncastre existe um cogumelo que há doze meses se desenvolve e, ao que parece, não chegou à fase final de seu crescimento. Atualmente ele mede quinze pés de diâmetro. Veio numa tora de madeira e é considerado o mais belo espécime de cogumelo jamais observado. Sua classificação é difícil, porque as opiniões estão divididas.” Assim, eis a ciência perturbada pelo aparecimento de um cogumelo que se apresenta sob um novo aspecto. Este fato provocou em nós uma reflexão: Suponhamos vários naturalistas observando, cada um por seu lado, uma variedade desse vegetal. Um dirá que o cogumelo é um criptógamo comestível, apreciado pelos gulosos; o segundo dirá que é venenoso; o terceiro, que é invisível a olho nu; o quarto, que pode alcançar até quarenta e cinco pés de circunferência, etc. À primeira vista, todas as afirmações são contraditórias e muito pouco aptas à fixação de ideias sobre a verdadeira natureza dos cogumelos. Depois virá um quinto observador que há de reconhecer a identidade dos caracteres gerais e mostrará que essas propriedades tão diversificadas não constituem mais que variedades ou subdivisões de uma só e mesma classe. Cada um tinha razão de seu ponto de vista; todos, porém, estavam errados quando concluíram do particular para o geral e quando tomaram a parte pelo todo.
Dá-se o mesmo em relação aos Espíritos. Têm sido julgados segundo a natureza das relações com eles estabelecidas, em consequência do que uns foram feitos demônios e outros, anjos. Porque houve pressa em explicar os fenômenos antes que se visse tudo, cada um o fez a seu modo e, muito naturalmente, buscou as causas naquilo em que consistia o objeto de suas preocupações. O magnetista tudo referiu à ação magnética; o físico, à ação elétrica, e assim por diante. A divergência de opiniões em matéria de Espiritismo vem, pois, dos diferentes aspectos sob os quais é considerado. De que lado está a verdade? É o que cabe ao futuro demonstrar. Mas a tendência geral não poderia oscilar. Evidentemente, um princípio domina e reúne pouco a pouco os sistemas prematuros. Uma observação menos exclusiva unirá todos a uma origem comum, e em breve veremos que em definitivo a divergência será mais acessória que de fundo.
Compreende-se muito bem que os homens erijam teorias contrárias em relação às coisas, mas o que pode parecer mais original é que os próprios Espíritos se contradigam. Foi isso que, de início, lançou uma espécie de confusão nas ideias. As várias teorias espíritas têm, pois, duas fontes: umas nasceram do cérebro humano; outras foram dadas pelos Espíritos. As primeiras emanam de homens que, confiando demasiado nas próprias luzes, creem possuir a chave daquilo que buscam, quando o mais das vezes apenas encontraram uma gazua. Isto nada tem de surpreendente, mas que, entre os Espíritos, uns dissessem uma coisa e outros dissessem outra, era menos concebível. No entanto, agora isto é perfeitamente explicável. A princípio, fez-se uma ideia absolutamente falsa da natureza dos Espíritos. Eles foram imaginados como seres à parte, de natureza excepcional, nada possuindo em comum com a matéria e devendo saber tudo. Eram, conforme opinião pessoal, seres benfeitores ou malfeitores, uns com todas as virtudes, outros com todos os vícios e todos, em geral, com um saber infinito, superior ao da humanidade. À notícia das recentes manifestações, a primeira ideia que em geral veio à mente da maior parte das criaturas foi de que isto era um meio de penetrar todas as coisas ocultas; um novo modo de adivinhação menos sujeito à dúvida que os processos vulgares. Quem poderia dizer o número dos que sonharam fazer fortuna fácil pela revelação de tesouros ocultos, de descobertas industriais ou científicas que não custariam aos inventores mais que o trabalho de fazer uma descrição ditada pelos sábios do outro mundo! Só Deus sabe quantos fracassos e desilusões. Quantas pretensas receitas, cada qual mais ridícula, não foram dadas pelos chalaceadores do mundo invisível! Conhecemos alguém que pediu uma receita infalível para pintar os cabelos. Foi-lhe dada uma fórmula de composição cerosa, que reduziu a cabeleira a uma espécie de massa compacta, da qual o paciente teve um trabalho imenso para se livrar. Todas essas esperanças quiméricas tiveram de se desvanecer à medida que ficou mais bem conhecida a natureza desse mundo e o verdadeiro objetivo das visitas que nos fazem os seus habitantes. Mas, então, para muita gente, onde estava o valor desses Espíritos, que nem tinham o poder de proporcionar alguns milhões aos que nada faziam? Não poderiam ser Espíritos! A febre passageira foi substituída pela indiferença e nalguns pela incredulidade. Oh! Quantos prosélitos teriam feito os Espíritos, se pudessem beneficiar os ociosos! O próprio diabo teria sido adorado se ele houvesse agitado a sua bolsa.
Ao lado dos sonhadores havia gente séria, que nesses fenômenos via algo mais que vulgaridade. Eles observaram atentamente; sondaram os refolhos desse mundo misterioso e facilmente perceberam nesses fatos estranhos, senão novos, um fim providencial de ordem mais elevada. Tudo mudou de aspecto quando se ficou sabendo que os Espíritos são as criaturas que viveram na Terra, e cujo número iremos aumentar, depois de nossa morte; que eles aqui deixaram o envoltório grosseiro, como o bicho da seda deixa a sua crisálida para tornar-se borboleta. Não pudemos duvidar quando vimos que os nossos pais, amigos e contemporâneos vinham conversar conosco, dando irrecusáveis provas de sua presença e de sua identidade. Considerando a grande diversidade de caracteres que a humanidade apresenta, sob o duplo ponto de vista intelectual e moral, e a multidão que diariamente emigra da Terra para o mundo invisível, repugna à razão admitir que um estúpido samoieda, um feroz canibal ou um vil criminoso sofram com a morte uma transformação que os ponha em pé de igualdade com o sábio e o homem de bem. Assim, compreendeu-se que poderia e deveria haver Espíritos mais adiantados ou menos adiantados e, desde então, ficaram muito naturalmente explicadas essas comunicações tão diversificadas, em que uns se elevam ao sublime, enquanto outros se arrastam na imundície. Compreendemos ainda melhor quando, deixando de acreditar que nosso pequeno grão de areia perdido no espaço é o único habitado entre tantos milhões de globos semelhantes, soubemos que, no universo, ele ocupa posição intermediária, próxima à dos mais baixos da escala; que, em consequência, há seres mais adiantados que os mais adiantados entre nós, e outros ainda mais atrasados que os nossos selvagens. Desde então, o horizonte intelectual e moral ampliou-se, como o nosso horizonte terreno, quando foi descoberta a quarta parte do mundo; o poder e a majestade de Deus ao mesmo tempo cresceram, aos nossos olhos, do finito ao infinito. Assim, logo ficaram explicadas as contradições da linguagem dos Espíritos, porque se compreendeu que seres inferiores sob todos os pontos de vista não podiam pensar nem se exprimir como os superiores; que, assim, não podiam saber tudo, nem tudo compreender, e que Deus deveria reservar apenas aos eleitos o conhecimento dos mistérios inatingíveis pela ignorância.
A escala espírita, traçada pelos próprios Espíritos e conforme à observação dos fatos, dá-nos a chave de todas as anomalias aparentes da linguagem dos Espíritos. É preciso chegar, pela força do hábito, a conhecê-los, por assim dizer, à primeira vista, e poder deduzir a sua classe conforme a natureza de suas manifestações. É preciso, conforme a necessidade, dizer a um que é mentiroso, a outro que é hipócrita, a este que é malévolo, àquele que é chocarreiro, etc., sem se deixar impressionar por sua arrogância e fanfarronadas, nem por suas ameaças ou seus sofismas e nem mesmo por suas lisonjas. É o meio de afastar essa turba que incessantemente pulula em redor de nós e que se afasta quando sabemos atrair apenas os Espíritos verdadeiramente bons e sérios, da mesma maneira que procedemos em relação aos vivos. Serão esses seres ínfimos eternamente votados ao mal e à ignorância? Não, pois nem essa parcialidade seria conforme à justiça, nem conforme à bondade do Criador, que provê à existência e ao bem-estar do menor inseto. É por uma sucessão de existências que eles se elevam e dele se aproximam à medida que melhoram. Esses Espíritos inferiores só conhecem Deus pelo nome; nem o veem nem o compreendem, do mesmo modo que o último camponês, no fundo de suas urzes, não vê nem compreende o soberano que governa o país que habita.
Se estudarmos cuidadosamente o caráter próprio de cada classe de Espíritos, compreenderemos facilmente que alguns há incapazes de fornecer ensinamentos exatos sobre o estado de seu mundo. Se, além disso, considerarmos que outros há que, por sua natureza, são levianos, mentirosos, zombeteiros, malévolos e que outros ainda se acham imbuídos das ideias e dos preconceitos terrenos, compreenderemos que, em suas relações conosco, podem divertir-se à nossa custa; conscientemente induzir-nos ao erro por malícia; afirmar aquilo que não sabem; dar-nos conselhos pérfidos ou mesmo enganar-se de boa-fé, julgando as coisas de seu ponto de vista. Façamos uma comparação.
Suponhamos que uma colônia de habitantes da Terra um belo dia encontre meios de ir à Lua; suponhamos que essa colônia seja composta de diversos elementos da população do nosso globo, desde o mais civilizado europeu até o selvagem australiano. Os habitantes da Lua ficarão muito sensibilizados e mesmo deslumbrados se puderem obter de seus visitantes ensinamentos precisos sobre o nosso planeta, que alguns supunham habitado, mas que não tinham certeza, de vez que entre eles há criaturas que se julgam os únicos seres do universo. Caem sobre os recém-vindos, interrogam-nos e os sábios se aprestam para publicar a história física e moral da Terra. Como não seria uma história autêntica, uma vez que dispõem de testemunhas oculares? Um deles recolhe em casa um zelandês, o qual informa que aqui na Terra é um regalo comer homens; que Deus o permite, pois as vítimas são sacrificadas em sua honra. Em casa de um outro está um filósofo e moralista, que fala de Platão e de Aristóteles e lhe diz que a antropofagia é uma abominação condenada por todas as leis divinas e humanas. Aqui é um muçulmano, que não come os homens, mas diz que a salvação é conseguida matando o maior número possível de cristãos; ali é um cristão dizendo que Maomé foi um impostor; além é um chinês que considera todos os demais como bárbaros e afirma que quando os filhos são muitos, Deus permite que sejam lançados ao rio; um boêmio pinta o quadro da vida dissoluta das capitais; um anacoreta prega a abstinência e as mortificações; um faquir indiano estraçalha o corpo e, para abrir as portas do céu, durante anos se impõe sofrimentos tais que, comparativamente, as privações dos mais piedosos cenobitas constituem sensualidade. Vem a seguir um bacharel, que afirma que é a Terra que gira e não o Sol; um campônio diz que o bacharel é um mentiroso, pois ele vê muito bem o sol nascer e se pôr; um senegalês diz que faz calor; um esquimó, que o mar é uma planície gelada e que só se viaja de trenó. A política não fica esquecida: uns elogiam o regime absolutista, outros a liberdade; este diz que a escravidão é contrária à natureza e que, como filhos de Deus, todos os homens são irmãos; aquele, que algumas raças foram feitas para a escravidão e que são muito mais felizes do que no estado de liberdade, etc. Creio que os escritores selenitas sentir-se-iam muito embaraçados para escrever a história física, política, moral e religiosa do mundo terrestre, baseados em semelhantes documentos. “Quem sabe” pensam alguns deles, “se encontremos maior unidade entre os sábios? Interroguemos o grupo de doutores.” Um deles, médico da Faculdade de Paris, centro de luzes, diz que todas as moléstias têm por princípio um sangue viciado e que, por isso, é preciso renovar o sangue, sangrando, seja qual for o caso. ─ Errais, meu sábio confrade”, replica um segundo, “o homem nunca tem sangue demais; se lho tirais, tirais-lhe a vida. Concordo que o sangue possa estar viciado, mas o que é que se faz quando um vaso está sujo? Ninguém o quebra, procura-se lavá-lo; então, dai purgantes, purgantes, purgantes até limpar. Um terceiro toma a palavra e diz: — Senhores, com as vossas sangrias matais os doentes e com os vossos purgantes os envenenais. A natureza é mais sábia que nós todos. Deixemo-la atuar. Esperemos. — É isto — replicam os dois primeiros — se matamos os nossos doentes, vós os deixais morrer. Os ânimos se alteram, quando um quarto, tomando de lado um selenita, arrasta-o para a esquerda e lhe diz: — Não os escuteis, são todos uns ignorantes. Eu nem sei por que eles pertencem à Academia! Acompanhai o meu raciocínio: todo doente é fraco; há, portanto, um enfraquecimento dos órgãos. Isto é lógica pura, ou eu não me conheço mais. Há, pois, que lhes dar tônus, mas, para isto, só há um remédio: água fria. Daí não me afasto. — Curais todos os vossos doentes? — Todos, desde que a doença não seja mortal. — Com um processo assim infalível, sois da Academia? — Apresentei minha candidatura três vezes, mas o senhor acredita que sempre fui barrado por esses pretensos sábios, porque eles sabiam que eu os pulverizaria com a minha água fria? — Senhor Selenita — diz outro interlocutor, puxando-o para a direita — nós vivemos numa atmosfera de eletricidade; a eletricidade é o verdadeiro princípio da vida; aumentá-la quando não é suficiente; reduzi-la quando existe em excesso; neutralizar os fluidos contrários, uns pelos outros, eis o segredo. Faço maravilhas com os meus aparelhos. Lede meus anúncios e vereis!* Não chegaríamos ao fim se quiséssemos resumir todas as teorias contrárias que foram preconizadas, cada uma por sua vez, sobre todos os ramos do conhecimento humano, sem excetuar nem mesmo as ciências exatas. Foi, porém, sobretudo nas ciências metafísicas que o campo esteve aberto às mais contraditórias doutrinas. Entretanto, um homem de espírito e de capacidade de discernimento (por que não os haveria na Lua?), compara todas essas afirmações incoerentes e tira uma conclusão muito lógica: sobre a Terra há regiões quentes e regiões frias; em certos lugares os homens se devoram entre si; noutros, matam os que não pensam como eles, tudo para a maior glória da sua divindade; enfim, cada um fala conforme os seus conhecimentos e elogia as coisas do ponto de vista de suas paixões e de seus interesses. Afinal, em que acreditará ele de preferência? Pela linguagem e sem dificuldade, distinguirá o verdadeiro sábio do ignorante; o homem sério do leviano; o que raciocina do que sofisma. Não confundirá bons com maus sentimentos, elevação com baixeza, o bem com o mal e dirá: “Devo ouvir tudo, tudo entender, porque, ainda na conversa do mais ignorante, posso algo aprender; mas a minha estima e a minha confiança só serão conquistadas por aquele que delas se mostrar digno.” Se essa colônia terrena quiser implantar os seus usos e costumes em sua nova pátria, os sábios repelirão os conselhos que lhes parecerem perniciosos e seguirão aqueles que se afigurarem mais esclarecidos e nos quais não perceberem falsidade nem mentira, mas, ao contrário, neles reconhecerem o sincero amor ao bem. Procederíamos de outro modo se uma colônia de selenitas viesse cair na Terra? Então! Aquilo que aqui é apresentado como uma suposição é uma realidade em relação aos Espíritos que, se não nos aparecem em carne e osso, nem por isso são menos presentes, de maneira oculta, e nos transmitem seus pensamentos através de seus intérpretes, isto é, dos médiuns. Quando tivermos aprendido a conhecê-los, julgá-los-emos por sua linguagem, por seus princípios, e suas contradições nada mais terão que nos surpreenda, porque veremos que uns sabem o que outros ignoram; que uns estão colocados muito embaixo ou ainda são muito materiais para que possam compreender e apreciar as coisas de uma ordem mais elevada. Esse é o homem que, no sopé da montanha, não vê mais do que alguns passos diante de si, enquanto o que está no cume vislumbra um horizonte sem limites.
* O leitor compreenderá que nossa crítica apenas visa ao exagero em todas as coisas. Em tudo existe um lado bom; o erro está no exclusivismo, que o sábio judicioso saberá sempre evitar. Não temos intenção de confundir os verdadeiramente sábios, dos quais a humanidade se honra a justo título, com aqueles que exploram as suas ideias sem discernimento. É destes que queremos falar. Nosso fim é unicamente demonstrar que a ciência oficial não está isenta de contradições.
A primeira fonte de contradições é, pois, o grau de desenvolvimento intelectual e moral dos Espíritos, mas existem outras sobre as quais é inútil chamar a atenção.
Dirão que se deve passar sobre a questão dos Espíritos inferiores, desde que se compreende que eles podem enganar-se por ignorância, mas como pode admitir-se que Espíritos superiores estejam em dissidência? Como é que num lugar empregam uma linguagem e noutro, outra? Que o mesmo Espírito, afinal, nem sempre seja coerente consigo mesmo?
A resposta a esta pergunta repousa sobre o conhecimento completo da ciência espírita e esta ciência não pode ser ensinada em poucas palavras, porque é tão vasta como todas as ciências filosóficas. Como todos os outros ramos do conhecimento humano, só se pode adquiri-la pelo estudo e pela observação. Não poderemos repetir aqui tudo quanto publicamos a respeito; a essa leitura remetemos o leitor, limitando-nos a um simples resumo. Todas essas dificuldades desaparecem para aquele que lança sobre essa questão um olhar investigador e sem prevenções.
Provam os fatos que os Espíritos enganadores não têm escrúpulos em adotar nomes respeitáveis, a fim de melhor imporem as suas torpezas, o que também é feito entre nós. Pelo fato de um Espírito apresentar-se com um nome qualquer não se segue que seja realmente aquele que declara ser. Há, porém, na linguagem dos Espíritos sérios, um cunho de dignidade que não poderia passar despercebido. Ele só respira bondade e benevolência e jamais se desmente. Ao contrário, a dos Espíritos impostores, a despeito do verniz que apresenta, não deixa de ferir o ouvido, como se costuma dizer. Nada há, pois, que admirar se, sob a capa de certos nomes, Espíritos inferiores ensinem coisas disparatadas. Cabe ao observador procurar conhecer a verdade, o que não é difícil, desde que queira compenetrar-se daquilo que a respeito dissemos em nossa Instrução Prática (Livro dos Médiuns).
Em geral esses mesmos Espíritos lisonjeiam o gosto e as inclinações das pessoas cujo caráter sabem bastante fraco e que são bastante crédulas para lhes dar atenção; tornam-se eco de seus preconceitos e até de suas ideias supersticiosas, e isto por uma razão muito simples: é que os Espíritos são atraídos por suas simpatias pelo Espírito das pessoas que os chamam e que os ouvem com prazer.
Quanto aos Espíritos sérios, também podem ter uma linguagem diferente, conforme as pessoas, mas com outro objetivo. Quando julgam conveniente, para melhor convencer, exprimem-se de acordo com a época, o lugar e as pessoas, evitando entrar bruscamente em choque com ideias arraigadas. “Eis por que”, dizem eles, “não falamos a um chinês ou a um maometano como a um cristão ou a um homem civilizado, pois não seríamos ouvidos. Algumas vezes podemos parecer concordar com a maneira de ver das pessoas, a fim de pouco a pouco conduzi-las ao ponto que desejamos, quando possível, sem alterar as verdades essenciais.” Não é evidente que se um Espírito quisesse levar um muçulmano fanático a praticar a sublime máxima do Evangelho: “Não façais aos outros aquilo que não quereríeis que vos fosse feito”, seria repelido se dissesse que isto tinha sido ensinado por Jesus? Ora, o que mais vale: deixar o muçulmano no seu fanatismo ou torná-lo bom, induzindo-o momentaneamente a pensar que foi Alá quem falou? Eis um problema cuja solução deixamos ao leitor. Quanto a nós, parece-nos que o tornando mais doce e mais humano, ele será menos fanático e mais acessível à ideia de uma nova crença do que se quiséssemos impô-la pela força. Há verdades que, para serem aceitas, não podem ser lançadas em rosto sem cuidado. Quantos males teriam os homens evitado se assim tivessem agido sempre!
Como se vê, os Espíritos também tomam precauções oratórias. Neste caso, entretanto, a divergência está no acessório e não no principal. Levar os homens ao bem; destruir o egoísmo, o orgulho, o ódio, a inveja, o ciúme; ensinar-lhes a praticar a verdadeira caridade cristã, é para eles o essencial. O resto virá em tempo útil. Eles pregam tanto pelo exemplo quanto pela palavra, desde que sejam Espíritos verdadeiramente bons e superiores. Tudo neles respira doçura e benevolência. A irritação, a violência, o azedume e a dureza de linguagem, ainda mesmo para dizer boas coisas, jamais são um sinal de verdadeira superioridade. Os Espíritos realmente bons jamais se zangam ou se exaltam. Se não são ouvidos, vão-se embora. Eis tudo.
Existem ainda duas causas de contradição aparente, que não devemos passar em branco. Como já o dissemos em muitas ocasiões, os Espíritos inferiores dizem tudo aquilo que queremos, sem preocupação com a verdade. Os Espíritos superiores calam-se ou se recusam a responder, quando lhes fazemos uma pergunta indiscreta ou sobre a qual não têm permissão para explicar-se. “Nesse caso”, disseram-nos, “não insistais nunca, porque então os Espíritos levianos respondem e vos enganam; pensais que somos nós e chegais a admitir que caímos em contradição. Os Espíritos sérios não se contradizem nunca. Sua linguagem é sempre a mesma com as mesmas pessoas. Se algum deles diz coisas contrárias tomando o mesmo nome, ficai certos de que não é o mesmo Espírito que fala ou, pelo menos, que não é um bom Espírito. Reconhecereis o bom pelos princípios que ele ensina, pois todo Espírito que não ensina o bem não é um bom Espírito. E vós deveis repeli-lo.”
Querendo dizer a mesma coisa em dois lugares diferentes, o mesmo Espírito não se servirá literalmente das mesmas palavras. Para ele o pensamento é tudo. Infelizmente, o homem é mais levado a prender-se à forma do que ao fundo. É essa forma que frequentemente interpreta conforme suas ideias e suas paixões e dessa interpretação podem nascer contradições aparentes que, também elas, se originam na insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas extra-humanas. Estudemos o fundo; perscrutemos o pensamento íntimo e veremos que muitas vezes há analogia onde o exame superficial nos induziria a ver um disparate.
As causas das contradições da linguagem dos Espíritos podem, pois, ser assim resumidas:
1.º — O grau de ignorância ou de saber dos Espíritos aos quais nos dirigimos;
2.º — O embuste dos Espíritos inferiores que podem, por malícia, ignorância ou malevolência, tomando um nome de empréstimo, dizer coisas contrárias às que alhures foram ditas pelo Espírito cujo nome usurparam;
3.º — As falhas pessoais do médium, que podem influir sobre as comunicações e alterar ou deformar o pensamento do Espírito;
4.º — A insistência por obter uma resposta que um Espírito se recusa a dar, e que é dada por um Espírito inferior;
5.º — A própria vontade do Espírito, que fala conforme o momento, o lugar e as pessoas e pode julgar conveniente nem tudo dizer a toda gente;
6.º — A insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas do mundo incorpóreo;
7.º — A interpretação que cada um pode dar a uma palavra ou a uma explicação, de acordo com as suas ideias, os seus preconceitos ou o ponto de vista sob o qual encara o assunto.
São muitas as dificuldades, das quais não se triunfa senão por um estudo longo e assíduo. Também nunca dissemos que a ciência espírita é fácil. O observador sério, que tudo aprofunda maduramente, com paciência e perseverança, apreende uma porção de nuanças delicadas que escapam ao observador superficial. É por tais detalhes íntimos que ele se inicia nos segredos desta ciência. A experiência ensina a conhecer os Espíritos, como nos ensina a conhecer os homens.
Acabamos de considerar as contradições do ponto de vista geral. Em outros artigos trataremos dos pontos especiais mais importantes.
Perguntaremos, de início, qual a ciência que não teve, em seus primórdios, semelhantes anomalias; qual o sábio que, nas suas investigações, não foi algumas vezes confundido por fatos que aparentemente contradiziam as regras estabelecidas; se a botânica, a zoologia, a fisiologia, a medicina e a nossa própria língua não nos oferecem milhares de exemplos semelhantes e se suas bases desafiam qualquer contradição. É comparando os fatos, observando as analogias e as dessemelhanças que pouco a pouco se chega a estabelecer as regras, as classificações, os princípios: numa palavra, a constituir a ciência. Ora, o Espiritismo apenas acaba de desabrochar. Assim, pois, não é de admirar que se ajuste à lei comum, até que seu estudo esteja completo. Só então reconhecer-se-á que aqui, como em tudo o mais, a exceção quase sempre vem confirmar a regra.
Aliás, os Espíritos sempre nos disseram que não nos inquietássemos com essas pequenas divergências, e que em pouco tempo todos seriam levados à unidade de crença. Com efeito, esta predição se realiza diariamente, à medida que mais e mais penetramos nas causas desses fenômenos misteriosos e que os fatos são mais bem observados. Já as dissidências manifestadas na origem tendem evidentemente a um enfraquecimento. Pode-se mesmo dizer que atualmente não passam de opiniões pessoais isoladas.
Embora o Espiritismo esteja na natureza e tenha sido conhecido e praticado desde a mais alta antiguidade, é um fato que em nenhuma outra época foi tão universalmente espalhado quanto em nossos dias. É que outrora faziam dele um estudo misterioso, no qual o vulgo não era iniciado. Ele se conservou por uma tradição que as vicissitudes da humanidade e a falta de meios de transmissão enfraqueceram insensivelmente. Os fenômenos espontâneos, que não deixaram de se produzir de vez em quando, passaram despercebidos ou foram interpretados segundo os preconceitos ou a ignorância da época; ou, ainda, foram explorados em proveito desta ou daquela crença. Estava reservado ao nosso século, no qual o progresso recebe um impulso incessante, trazer à plena luz uma ciência que, por assim dizer, apenas existia em estado latente. Só há alguns anos é que os fenômenos foram observados seriamente. Na verdade o Espiritismo é uma ciência nova, que se implanta pouco a pouco no espírito das massas, esperando ocupar uma posição oficial. A princípio esta ciência pareceu muito simples. Para as criaturas superficiais, não passava da arte de mover as mesas. Uma observação mais atenta, entretanto, revelou que era, por suas ramificações e por suas consequências, muito mais complexa do que se imaginava. As mesas girantes são como a maçã de Newton, que na sua queda encerra o sistema do mundo.
Aconteceu com o Espiritismo o que acontece, de início, a todas as coisas: os primeiros não puderam ver tudo; cada um viu por seu lado e apressou-se a comunicar as suas impressões sob seu ponto de vista e conforme às suas ideias e preconceitos. Ora, não se sabe que, conforme o meio, um mesmo objeto a uns pode parecer frio e a outros quente?
Tomemos ainda outro exemplo das coisas vulgares, mesmo triviais, a fim de nos fazermos melhor entender.
Lemos, ultimamente, em vários jornais: “O cogumelo é um produto dos mais bizarros: delicioso ou mortal, microscópico ou de dimensões fenomenais, constantemente desorienta os botânicos. No túnel de Doncastre existe um cogumelo que há doze meses se desenvolve e, ao que parece, não chegou à fase final de seu crescimento. Atualmente ele mede quinze pés de diâmetro. Veio numa tora de madeira e é considerado o mais belo espécime de cogumelo jamais observado. Sua classificação é difícil, porque as opiniões estão divididas.” Assim, eis a ciência perturbada pelo aparecimento de um cogumelo que se apresenta sob um novo aspecto. Este fato provocou em nós uma reflexão: Suponhamos vários naturalistas observando, cada um por seu lado, uma variedade desse vegetal. Um dirá que o cogumelo é um criptógamo comestível, apreciado pelos gulosos; o segundo dirá que é venenoso; o terceiro, que é invisível a olho nu; o quarto, que pode alcançar até quarenta e cinco pés de circunferência, etc. À primeira vista, todas as afirmações são contraditórias e muito pouco aptas à fixação de ideias sobre a verdadeira natureza dos cogumelos. Depois virá um quinto observador que há de reconhecer a identidade dos caracteres gerais e mostrará que essas propriedades tão diversificadas não constituem mais que variedades ou subdivisões de uma só e mesma classe. Cada um tinha razão de seu ponto de vista; todos, porém, estavam errados quando concluíram do particular para o geral e quando tomaram a parte pelo todo.
Dá-se o mesmo em relação aos Espíritos. Têm sido julgados segundo a natureza das relações com eles estabelecidas, em consequência do que uns foram feitos demônios e outros, anjos. Porque houve pressa em explicar os fenômenos antes que se visse tudo, cada um o fez a seu modo e, muito naturalmente, buscou as causas naquilo em que consistia o objeto de suas preocupações. O magnetista tudo referiu à ação magnética; o físico, à ação elétrica, e assim por diante. A divergência de opiniões em matéria de Espiritismo vem, pois, dos diferentes aspectos sob os quais é considerado. De que lado está a verdade? É o que cabe ao futuro demonstrar. Mas a tendência geral não poderia oscilar. Evidentemente, um princípio domina e reúne pouco a pouco os sistemas prematuros. Uma observação menos exclusiva unirá todos a uma origem comum, e em breve veremos que em definitivo a divergência será mais acessória que de fundo.
Compreende-se muito bem que os homens erijam teorias contrárias em relação às coisas, mas o que pode parecer mais original é que os próprios Espíritos se contradigam. Foi isso que, de início, lançou uma espécie de confusão nas ideias. As várias teorias espíritas têm, pois, duas fontes: umas nasceram do cérebro humano; outras foram dadas pelos Espíritos. As primeiras emanam de homens que, confiando demasiado nas próprias luzes, creem possuir a chave daquilo que buscam, quando o mais das vezes apenas encontraram uma gazua. Isto nada tem de surpreendente, mas que, entre os Espíritos, uns dissessem uma coisa e outros dissessem outra, era menos concebível. No entanto, agora isto é perfeitamente explicável. A princípio, fez-se uma ideia absolutamente falsa da natureza dos Espíritos. Eles foram imaginados como seres à parte, de natureza excepcional, nada possuindo em comum com a matéria e devendo saber tudo. Eram, conforme opinião pessoal, seres benfeitores ou malfeitores, uns com todas as virtudes, outros com todos os vícios e todos, em geral, com um saber infinito, superior ao da humanidade. À notícia das recentes manifestações, a primeira ideia que em geral veio à mente da maior parte das criaturas foi de que isto era um meio de penetrar todas as coisas ocultas; um novo modo de adivinhação menos sujeito à dúvida que os processos vulgares. Quem poderia dizer o número dos que sonharam fazer fortuna fácil pela revelação de tesouros ocultos, de descobertas industriais ou científicas que não custariam aos inventores mais que o trabalho de fazer uma descrição ditada pelos sábios do outro mundo! Só Deus sabe quantos fracassos e desilusões. Quantas pretensas receitas, cada qual mais ridícula, não foram dadas pelos chalaceadores do mundo invisível! Conhecemos alguém que pediu uma receita infalível para pintar os cabelos. Foi-lhe dada uma fórmula de composição cerosa, que reduziu a cabeleira a uma espécie de massa compacta, da qual o paciente teve um trabalho imenso para se livrar. Todas essas esperanças quiméricas tiveram de se desvanecer à medida que ficou mais bem conhecida a natureza desse mundo e o verdadeiro objetivo das visitas que nos fazem os seus habitantes. Mas, então, para muita gente, onde estava o valor desses Espíritos, que nem tinham o poder de proporcionar alguns milhões aos que nada faziam? Não poderiam ser Espíritos! A febre passageira foi substituída pela indiferença e nalguns pela incredulidade. Oh! Quantos prosélitos teriam feito os Espíritos, se pudessem beneficiar os ociosos! O próprio diabo teria sido adorado se ele houvesse agitado a sua bolsa.
Ao lado dos sonhadores havia gente séria, que nesses fenômenos via algo mais que vulgaridade. Eles observaram atentamente; sondaram os refolhos desse mundo misterioso e facilmente perceberam nesses fatos estranhos, senão novos, um fim providencial de ordem mais elevada. Tudo mudou de aspecto quando se ficou sabendo que os Espíritos são as criaturas que viveram na Terra, e cujo número iremos aumentar, depois de nossa morte; que eles aqui deixaram o envoltório grosseiro, como o bicho da seda deixa a sua crisálida para tornar-se borboleta. Não pudemos duvidar quando vimos que os nossos pais, amigos e contemporâneos vinham conversar conosco, dando irrecusáveis provas de sua presença e de sua identidade. Considerando a grande diversidade de caracteres que a humanidade apresenta, sob o duplo ponto de vista intelectual e moral, e a multidão que diariamente emigra da Terra para o mundo invisível, repugna à razão admitir que um estúpido samoieda, um feroz canibal ou um vil criminoso sofram com a morte uma transformação que os ponha em pé de igualdade com o sábio e o homem de bem. Assim, compreendeu-se que poderia e deveria haver Espíritos mais adiantados ou menos adiantados e, desde então, ficaram muito naturalmente explicadas essas comunicações tão diversificadas, em que uns se elevam ao sublime, enquanto outros se arrastam na imundície. Compreendemos ainda melhor quando, deixando de acreditar que nosso pequeno grão de areia perdido no espaço é o único habitado entre tantos milhões de globos semelhantes, soubemos que, no universo, ele ocupa posição intermediária, próxima à dos mais baixos da escala; que, em consequência, há seres mais adiantados que os mais adiantados entre nós, e outros ainda mais atrasados que os nossos selvagens. Desde então, o horizonte intelectual e moral ampliou-se, como o nosso horizonte terreno, quando foi descoberta a quarta parte do mundo; o poder e a majestade de Deus ao mesmo tempo cresceram, aos nossos olhos, do finito ao infinito. Assim, logo ficaram explicadas as contradições da linguagem dos Espíritos, porque se compreendeu que seres inferiores sob todos os pontos de vista não podiam pensar nem se exprimir como os superiores; que, assim, não podiam saber tudo, nem tudo compreender, e que Deus deveria reservar apenas aos eleitos o conhecimento dos mistérios inatingíveis pela ignorância.
A escala espírita, traçada pelos próprios Espíritos e conforme à observação dos fatos, dá-nos a chave de todas as anomalias aparentes da linguagem dos Espíritos. É preciso chegar, pela força do hábito, a conhecê-los, por assim dizer, à primeira vista, e poder deduzir a sua classe conforme a natureza de suas manifestações. É preciso, conforme a necessidade, dizer a um que é mentiroso, a outro que é hipócrita, a este que é malévolo, àquele que é chocarreiro, etc., sem se deixar impressionar por sua arrogância e fanfarronadas, nem por suas ameaças ou seus sofismas e nem mesmo por suas lisonjas. É o meio de afastar essa turba que incessantemente pulula em redor de nós e que se afasta quando sabemos atrair apenas os Espíritos verdadeiramente bons e sérios, da mesma maneira que procedemos em relação aos vivos. Serão esses seres ínfimos eternamente votados ao mal e à ignorância? Não, pois nem essa parcialidade seria conforme à justiça, nem conforme à bondade do Criador, que provê à existência e ao bem-estar do menor inseto. É por uma sucessão de existências que eles se elevam e dele se aproximam à medida que melhoram. Esses Espíritos inferiores só conhecem Deus pelo nome; nem o veem nem o compreendem, do mesmo modo que o último camponês, no fundo de suas urzes, não vê nem compreende o soberano que governa o país que habita.
Se estudarmos cuidadosamente o caráter próprio de cada classe de Espíritos, compreenderemos facilmente que alguns há incapazes de fornecer ensinamentos exatos sobre o estado de seu mundo. Se, além disso, considerarmos que outros há que, por sua natureza, são levianos, mentirosos, zombeteiros, malévolos e que outros ainda se acham imbuídos das ideias e dos preconceitos terrenos, compreenderemos que, em suas relações conosco, podem divertir-se à nossa custa; conscientemente induzir-nos ao erro por malícia; afirmar aquilo que não sabem; dar-nos conselhos pérfidos ou mesmo enganar-se de boa-fé, julgando as coisas de seu ponto de vista. Façamos uma comparação.
Suponhamos que uma colônia de habitantes da Terra um belo dia encontre meios de ir à Lua; suponhamos que essa colônia seja composta de diversos elementos da população do nosso globo, desde o mais civilizado europeu até o selvagem australiano. Os habitantes da Lua ficarão muito sensibilizados e mesmo deslumbrados se puderem obter de seus visitantes ensinamentos precisos sobre o nosso planeta, que alguns supunham habitado, mas que não tinham certeza, de vez que entre eles há criaturas que se julgam os únicos seres do universo. Caem sobre os recém-vindos, interrogam-nos e os sábios se aprestam para publicar a história física e moral da Terra. Como não seria uma história autêntica, uma vez que dispõem de testemunhas oculares? Um deles recolhe em casa um zelandês, o qual informa que aqui na Terra é um regalo comer homens; que Deus o permite, pois as vítimas são sacrificadas em sua honra. Em casa de um outro está um filósofo e moralista, que fala de Platão e de Aristóteles e lhe diz que a antropofagia é uma abominação condenada por todas as leis divinas e humanas. Aqui é um muçulmano, que não come os homens, mas diz que a salvação é conseguida matando o maior número possível de cristãos; ali é um cristão dizendo que Maomé foi um impostor; além é um chinês que considera todos os demais como bárbaros e afirma que quando os filhos são muitos, Deus permite que sejam lançados ao rio; um boêmio pinta o quadro da vida dissoluta das capitais; um anacoreta prega a abstinência e as mortificações; um faquir indiano estraçalha o corpo e, para abrir as portas do céu, durante anos se impõe sofrimentos tais que, comparativamente, as privações dos mais piedosos cenobitas constituem sensualidade. Vem a seguir um bacharel, que afirma que é a Terra que gira e não o Sol; um campônio diz que o bacharel é um mentiroso, pois ele vê muito bem o sol nascer e se pôr; um senegalês diz que faz calor; um esquimó, que o mar é uma planície gelada e que só se viaja de trenó. A política não fica esquecida: uns elogiam o regime absolutista, outros a liberdade; este diz que a escravidão é contrária à natureza e que, como filhos de Deus, todos os homens são irmãos; aquele, que algumas raças foram feitas para a escravidão e que são muito mais felizes do que no estado de liberdade, etc. Creio que os escritores selenitas sentir-se-iam muito embaraçados para escrever a história física, política, moral e religiosa do mundo terrestre, baseados em semelhantes documentos. “Quem sabe” pensam alguns deles, “se encontremos maior unidade entre os sábios? Interroguemos o grupo de doutores.” Um deles, médico da Faculdade de Paris, centro de luzes, diz que todas as moléstias têm por princípio um sangue viciado e que, por isso, é preciso renovar o sangue, sangrando, seja qual for o caso. ─ Errais, meu sábio confrade”, replica um segundo, “o homem nunca tem sangue demais; se lho tirais, tirais-lhe a vida. Concordo que o sangue possa estar viciado, mas o que é que se faz quando um vaso está sujo? Ninguém o quebra, procura-se lavá-lo; então, dai purgantes, purgantes, purgantes até limpar. Um terceiro toma a palavra e diz: — Senhores, com as vossas sangrias matais os doentes e com os vossos purgantes os envenenais. A natureza é mais sábia que nós todos. Deixemo-la atuar. Esperemos. — É isto — replicam os dois primeiros — se matamos os nossos doentes, vós os deixais morrer. Os ânimos se alteram, quando um quarto, tomando de lado um selenita, arrasta-o para a esquerda e lhe diz: — Não os escuteis, são todos uns ignorantes. Eu nem sei por que eles pertencem à Academia! Acompanhai o meu raciocínio: todo doente é fraco; há, portanto, um enfraquecimento dos órgãos. Isto é lógica pura, ou eu não me conheço mais. Há, pois, que lhes dar tônus, mas, para isto, só há um remédio: água fria. Daí não me afasto. — Curais todos os vossos doentes? — Todos, desde que a doença não seja mortal. — Com um processo assim infalível, sois da Academia? — Apresentei minha candidatura três vezes, mas o senhor acredita que sempre fui barrado por esses pretensos sábios, porque eles sabiam que eu os pulverizaria com a minha água fria? — Senhor Selenita — diz outro interlocutor, puxando-o para a direita — nós vivemos numa atmosfera de eletricidade; a eletricidade é o verdadeiro princípio da vida; aumentá-la quando não é suficiente; reduzi-la quando existe em excesso; neutralizar os fluidos contrários, uns pelos outros, eis o segredo. Faço maravilhas com os meus aparelhos. Lede meus anúncios e vereis!* Não chegaríamos ao fim se quiséssemos resumir todas as teorias contrárias que foram preconizadas, cada uma por sua vez, sobre todos os ramos do conhecimento humano, sem excetuar nem mesmo as ciências exatas. Foi, porém, sobretudo nas ciências metafísicas que o campo esteve aberto às mais contraditórias doutrinas. Entretanto, um homem de espírito e de capacidade de discernimento (por que não os haveria na Lua?), compara todas essas afirmações incoerentes e tira uma conclusão muito lógica: sobre a Terra há regiões quentes e regiões frias; em certos lugares os homens se devoram entre si; noutros, matam os que não pensam como eles, tudo para a maior glória da sua divindade; enfim, cada um fala conforme os seus conhecimentos e elogia as coisas do ponto de vista de suas paixões e de seus interesses. Afinal, em que acreditará ele de preferência? Pela linguagem e sem dificuldade, distinguirá o verdadeiro sábio do ignorante; o homem sério do leviano; o que raciocina do que sofisma. Não confundirá bons com maus sentimentos, elevação com baixeza, o bem com o mal e dirá: “Devo ouvir tudo, tudo entender, porque, ainda na conversa do mais ignorante, posso algo aprender; mas a minha estima e a minha confiança só serão conquistadas por aquele que delas se mostrar digno.” Se essa colônia terrena quiser implantar os seus usos e costumes em sua nova pátria, os sábios repelirão os conselhos que lhes parecerem perniciosos e seguirão aqueles que se afigurarem mais esclarecidos e nos quais não perceberem falsidade nem mentira, mas, ao contrário, neles reconhecerem o sincero amor ao bem. Procederíamos de outro modo se uma colônia de selenitas viesse cair na Terra? Então! Aquilo que aqui é apresentado como uma suposição é uma realidade em relação aos Espíritos que, se não nos aparecem em carne e osso, nem por isso são menos presentes, de maneira oculta, e nos transmitem seus pensamentos através de seus intérpretes, isto é, dos médiuns. Quando tivermos aprendido a conhecê-los, julgá-los-emos por sua linguagem, por seus princípios, e suas contradições nada mais terão que nos surpreenda, porque veremos que uns sabem o que outros ignoram; que uns estão colocados muito embaixo ou ainda são muito materiais para que possam compreender e apreciar as coisas de uma ordem mais elevada. Esse é o homem que, no sopé da montanha, não vê mais do que alguns passos diante de si, enquanto o que está no cume vislumbra um horizonte sem limites.
* O leitor compreenderá que nossa crítica apenas visa ao exagero em todas as coisas. Em tudo existe um lado bom; o erro está no exclusivismo, que o sábio judicioso saberá sempre evitar. Não temos intenção de confundir os verdadeiramente sábios, dos quais a humanidade se honra a justo título, com aqueles que exploram as suas ideias sem discernimento. É destes que queremos falar. Nosso fim é unicamente demonstrar que a ciência oficial não está isenta de contradições.
A primeira fonte de contradições é, pois, o grau de desenvolvimento intelectual e moral dos Espíritos, mas existem outras sobre as quais é inútil chamar a atenção.
Dirão que se deve passar sobre a questão dos Espíritos inferiores, desde que se compreende que eles podem enganar-se por ignorância, mas como pode admitir-se que Espíritos superiores estejam em dissidência? Como é que num lugar empregam uma linguagem e noutro, outra? Que o mesmo Espírito, afinal, nem sempre seja coerente consigo mesmo?
A resposta a esta pergunta repousa sobre o conhecimento completo da ciência espírita e esta ciência não pode ser ensinada em poucas palavras, porque é tão vasta como todas as ciências filosóficas. Como todos os outros ramos do conhecimento humano, só se pode adquiri-la pelo estudo e pela observação. Não poderemos repetir aqui tudo quanto publicamos a respeito; a essa leitura remetemos o leitor, limitando-nos a um simples resumo. Todas essas dificuldades desaparecem para aquele que lança sobre essa questão um olhar investigador e sem prevenções.
Provam os fatos que os Espíritos enganadores não têm escrúpulos em adotar nomes respeitáveis, a fim de melhor imporem as suas torpezas, o que também é feito entre nós. Pelo fato de um Espírito apresentar-se com um nome qualquer não se segue que seja realmente aquele que declara ser. Há, porém, na linguagem dos Espíritos sérios, um cunho de dignidade que não poderia passar despercebido. Ele só respira bondade e benevolência e jamais se desmente. Ao contrário, a dos Espíritos impostores, a despeito do verniz que apresenta, não deixa de ferir o ouvido, como se costuma dizer. Nada há, pois, que admirar se, sob a capa de certos nomes, Espíritos inferiores ensinem coisas disparatadas. Cabe ao observador procurar conhecer a verdade, o que não é difícil, desde que queira compenetrar-se daquilo que a respeito dissemos em nossa Instrução Prática (Livro dos Médiuns).
Em geral esses mesmos Espíritos lisonjeiam o gosto e as inclinações das pessoas cujo caráter sabem bastante fraco e que são bastante crédulas para lhes dar atenção; tornam-se eco de seus preconceitos e até de suas ideias supersticiosas, e isto por uma razão muito simples: é que os Espíritos são atraídos por suas simpatias pelo Espírito das pessoas que os chamam e que os ouvem com prazer.
Quanto aos Espíritos sérios, também podem ter uma linguagem diferente, conforme as pessoas, mas com outro objetivo. Quando julgam conveniente, para melhor convencer, exprimem-se de acordo com a época, o lugar e as pessoas, evitando entrar bruscamente em choque com ideias arraigadas. “Eis por que”, dizem eles, “não falamos a um chinês ou a um maometano como a um cristão ou a um homem civilizado, pois não seríamos ouvidos. Algumas vezes podemos parecer concordar com a maneira de ver das pessoas, a fim de pouco a pouco conduzi-las ao ponto que desejamos, quando possível, sem alterar as verdades essenciais.” Não é evidente que se um Espírito quisesse levar um muçulmano fanático a praticar a sublime máxima do Evangelho: “Não façais aos outros aquilo que não quereríeis que vos fosse feito”, seria repelido se dissesse que isto tinha sido ensinado por Jesus? Ora, o que mais vale: deixar o muçulmano no seu fanatismo ou torná-lo bom, induzindo-o momentaneamente a pensar que foi Alá quem falou? Eis um problema cuja solução deixamos ao leitor. Quanto a nós, parece-nos que o tornando mais doce e mais humano, ele será menos fanático e mais acessível à ideia de uma nova crença do que se quiséssemos impô-la pela força. Há verdades que, para serem aceitas, não podem ser lançadas em rosto sem cuidado. Quantos males teriam os homens evitado se assim tivessem agido sempre!
Como se vê, os Espíritos também tomam precauções oratórias. Neste caso, entretanto, a divergência está no acessório e não no principal. Levar os homens ao bem; destruir o egoísmo, o orgulho, o ódio, a inveja, o ciúme; ensinar-lhes a praticar a verdadeira caridade cristã, é para eles o essencial. O resto virá em tempo útil. Eles pregam tanto pelo exemplo quanto pela palavra, desde que sejam Espíritos verdadeiramente bons e superiores. Tudo neles respira doçura e benevolência. A irritação, a violência, o azedume e a dureza de linguagem, ainda mesmo para dizer boas coisas, jamais são um sinal de verdadeira superioridade. Os Espíritos realmente bons jamais se zangam ou se exaltam. Se não são ouvidos, vão-se embora. Eis tudo.
Existem ainda duas causas de contradição aparente, que não devemos passar em branco. Como já o dissemos em muitas ocasiões, os Espíritos inferiores dizem tudo aquilo que queremos, sem preocupação com a verdade. Os Espíritos superiores calam-se ou se recusam a responder, quando lhes fazemos uma pergunta indiscreta ou sobre a qual não têm permissão para explicar-se. “Nesse caso”, disseram-nos, “não insistais nunca, porque então os Espíritos levianos respondem e vos enganam; pensais que somos nós e chegais a admitir que caímos em contradição. Os Espíritos sérios não se contradizem nunca. Sua linguagem é sempre a mesma com as mesmas pessoas. Se algum deles diz coisas contrárias tomando o mesmo nome, ficai certos de que não é o mesmo Espírito que fala ou, pelo menos, que não é um bom Espírito. Reconhecereis o bom pelos princípios que ele ensina, pois todo Espírito que não ensina o bem não é um bom Espírito. E vós deveis repeli-lo.”
Querendo dizer a mesma coisa em dois lugares diferentes, o mesmo Espírito não se servirá literalmente das mesmas palavras. Para ele o pensamento é tudo. Infelizmente, o homem é mais levado a prender-se à forma do que ao fundo. É essa forma que frequentemente interpreta conforme suas ideias e suas paixões e dessa interpretação podem nascer contradições aparentes que, também elas, se originam na insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas extra-humanas. Estudemos o fundo; perscrutemos o pensamento íntimo e veremos que muitas vezes há analogia onde o exame superficial nos induziria a ver um disparate.
As causas das contradições da linguagem dos Espíritos podem, pois, ser assim resumidas:
1.º — O grau de ignorância ou de saber dos Espíritos aos quais nos dirigimos;
2.º — O embuste dos Espíritos inferiores que podem, por malícia, ignorância ou malevolência, tomando um nome de empréstimo, dizer coisas contrárias às que alhures foram ditas pelo Espírito cujo nome usurparam;
3.º — As falhas pessoais do médium, que podem influir sobre as comunicações e alterar ou deformar o pensamento do Espírito;
4.º — A insistência por obter uma resposta que um Espírito se recusa a dar, e que é dada por um Espírito inferior;
5.º — A própria vontade do Espírito, que fala conforme o momento, o lugar e as pessoas e pode julgar conveniente nem tudo dizer a toda gente;
6.º — A insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas do mundo incorpóreo;
7.º — A interpretação que cada um pode dar a uma palavra ou a uma explicação, de acordo com as suas ideias, os seus preconceitos ou o ponto de vista sob o qual encara o assunto.
São muitas as dificuldades, das quais não se triunfa senão por um estudo longo e assíduo. Também nunca dissemos que a ciência espírita é fácil. O observador sério, que tudo aprofunda maduramente, com paciência e perseverança, apreende uma porção de nuanças delicadas que escapam ao observador superficial. É por tais detalhes íntimos que ele se inicia nos segredos desta ciência. A experiência ensina a conhecer os Espíritos, como nos ensina a conhecer os homens.
Acabamos de considerar as contradições do ponto de vista geral. Em outros artigos trataremos dos pontos especiais mais importantes.
A CARIDADE
PELO ESPÍRITO DE S. VICENTE DE PAULO
(Sociedade de Estudos Espíritas, sessão de 8 de junho de 1858)
Sede bons e caridosos, eis a chave do Céu, posta em vossas mãos. Toda a felicidade eterna está contida nesta máxima: “Amai-vos uns aos outros.” Não pode a alma elevar-se às regiões espirituais senão pela dedicação ao próximo; ela não encontra felicidade e consolação senão nos arroubos da caridade. Sede bons, ajudai os vossos irmãos, ponde de lado essa horrível chaga do egoísmo. Esse dever cumprido vos deve abrir as vias da felicidade eterna. Aliás, quem dentre vós não sentiu o coração pulsar e sua alegria íntima expandir-se pela prática de uma obra de caridade? Não deveríeis pensar senão nesta espécie de volúpia proporcionada por uma boa ação, com o que permaneceríeis sempre no caminho do progresso espiritual. Não vos faltam exemplos. Só a boa vontade é que é rara.
Vede a multidão de homens de bem, cuja lembrança piedosa a vossa história relembra. Eu poderia citar aos milhares aqueles cuja moral não tinha por objetivo senão melhorar o vosso globo. Não vos disse o Cristo tudo quanto concerne às virtudes da caridade e do amor? Por que são postos de lado os seus divinos ensinamentos? Por que os ouvidos são tapados às suas divinas palavras e o coração é fechado para todas as suas máximas suaves?
Eu gostaria que a leitura do Evangelho fosse feita com mais interesse pessoal. Mas abandonam esse livro; transformam-no em expressão vazia e letra morta; deixam ao esquecimento esse código admirável. Vossos males provêm do abandono voluntário em que deixais esse resumo das leis divinas. Lede, pois, essas páginas de fogo do devotamento de Jesus e meditai-as. Eu mesmo me sinto envergonhado de ousar prometer-vos um trabalho sobre a caridade, quando penso que nesse livro encontrais todos os ensinamentos que vos devem levar às regiões celestes.
Homens fortes, armai-vos; homens fracos, forjai as vossas armas de vossa doçura e de vossa fé; tende mais persuasão, mais constância na propagação de vossa nova doutrina. Nós só vimos trazer-vos um encorajamento; é apenas para vos estimular o zelo e as virtudes que Deus permite nos manifestemos a vós. Mas, se quisésseis, não necessitaríeis senão do auxílio de Deus e de vossa própria vontade. As manifestações espíritas não foram feitas senão para os olhos fechados e para os corações indóceis. Há, entre vós, homens que devem realizar missões de amor e de caridade: escutai-os, exaltai a sua voz; fazei resplandecer os seus méritos e vós próprios sereis exaltados pelo desinteresse e pela fé viva de que vos impregnarão.
Muito extensos e detalhados seriam os conselhos que vos deveriam ser dados sobre a necessidade de alargamento do círculo de caridade; sobre a inclusão nesse círculo de todos os infelizes cujas misérias são ignoradas; sobre todas as dores que devem ser buscadas em seus próprios redutos, para consolá-los em nome dessa virtude divina, a caridade. Vejo com satisfação quantos homens eminentes e poderosos colaboram na busca desse progresso que deve reunir todas as classes humanas: os felizes e os desgraçados. Coisa estranha! Todos os infelizes se dão as mãos e se ajudam reciprocamente na sua miséria. Por que os felizes demoram tanto para ouvir a voz do infeliz? Por que se faz necessária uma poderosa mão terrena para dar impulso às missões de caridade? Por que não respondem com mais ardor a esses apelos? Por que permitem que a miséria, como por prazer, macule a imagem da Humanidade?
A caridade é a virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem caridade não há fé nem esperança, porque sem a caridade não há esperança de uma sorte melhor nem interesse moral que nos guie. Sem a caridade não há fé, porque a fé é um puro raio que faz brilhar uma alma caridosa; ela é a sua consequência decisiva.
Quando deixardes que o vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes sem se perguntar se sua miséria é fingida ou se seu mal tem um vício como causa; quando deixardes toda a justiça nas mãos de Deus; quando deixardes a cargo do Criador o castigo de todas as falsas misérias; enfim, quando praticardes a caridade pelo só prazer que ela proporciona, sem questionardes a sua utilidade, então sereis os filhos que Deus amará e que chamará para si.
A caridade é a âncora eterna de salvação em todos os globos; é a mais pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, que ele dá às criaturas. Como poderíeis desconhecer essa suprema bondade? Com tal pensamento, qual seria o coração bastante perverso para recalcar e repelir esse sentimento divino? Qual seria o filho suficientemente mau para se rebelar contra a doce carícia da caridade?
Não ouso falar daquilo que fiz, porque os Espíritos também têm o pudor de suas obras. Mas penso que a obra que iniciei é uma daquelas que devem contribuir muito para aliviar os vossos semelhantes. Com frequência vejo Espíritos que pedem a missão de continuar a minha obra; vejo minhas suaves e queridas irmãs em seu piedoso e divino ministério; vejo-as a praticar a virtude que vos recomendo, com toda a alegria proporcionada por essa existência de devotamento e de sacrifícios. É para mim grande felicidade ver quanto seu caráter é honrado; quanto sua missão é apreciada e docemente protegida. Homens de bem, de boa e forte vontade, uni-vos para continuar ampliando a obra de propagação da caridade. Encontrareis a recompensa dessa virtude pelo seu próprio exercício. Não há alegria espiritual que ela não proporcione, já na presente existência. Sede unidos; amai-vos uns aos outros, conforme os preceitos do Cristo. Assim seja.
Vede a multidão de homens de bem, cuja lembrança piedosa a vossa história relembra. Eu poderia citar aos milhares aqueles cuja moral não tinha por objetivo senão melhorar o vosso globo. Não vos disse o Cristo tudo quanto concerne às virtudes da caridade e do amor? Por que são postos de lado os seus divinos ensinamentos? Por que os ouvidos são tapados às suas divinas palavras e o coração é fechado para todas as suas máximas suaves?
Eu gostaria que a leitura do Evangelho fosse feita com mais interesse pessoal. Mas abandonam esse livro; transformam-no em expressão vazia e letra morta; deixam ao esquecimento esse código admirável. Vossos males provêm do abandono voluntário em que deixais esse resumo das leis divinas. Lede, pois, essas páginas de fogo do devotamento de Jesus e meditai-as. Eu mesmo me sinto envergonhado de ousar prometer-vos um trabalho sobre a caridade, quando penso que nesse livro encontrais todos os ensinamentos que vos devem levar às regiões celestes.
Homens fortes, armai-vos; homens fracos, forjai as vossas armas de vossa doçura e de vossa fé; tende mais persuasão, mais constância na propagação de vossa nova doutrina. Nós só vimos trazer-vos um encorajamento; é apenas para vos estimular o zelo e as virtudes que Deus permite nos manifestemos a vós. Mas, se quisésseis, não necessitaríeis senão do auxílio de Deus e de vossa própria vontade. As manifestações espíritas não foram feitas senão para os olhos fechados e para os corações indóceis. Há, entre vós, homens que devem realizar missões de amor e de caridade: escutai-os, exaltai a sua voz; fazei resplandecer os seus méritos e vós próprios sereis exaltados pelo desinteresse e pela fé viva de que vos impregnarão.
Muito extensos e detalhados seriam os conselhos que vos deveriam ser dados sobre a necessidade de alargamento do círculo de caridade; sobre a inclusão nesse círculo de todos os infelizes cujas misérias são ignoradas; sobre todas as dores que devem ser buscadas em seus próprios redutos, para consolá-los em nome dessa virtude divina, a caridade. Vejo com satisfação quantos homens eminentes e poderosos colaboram na busca desse progresso que deve reunir todas as classes humanas: os felizes e os desgraçados. Coisa estranha! Todos os infelizes se dão as mãos e se ajudam reciprocamente na sua miséria. Por que os felizes demoram tanto para ouvir a voz do infeliz? Por que se faz necessária uma poderosa mão terrena para dar impulso às missões de caridade? Por que não respondem com mais ardor a esses apelos? Por que permitem que a miséria, como por prazer, macule a imagem da Humanidade?
A caridade é a virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem caridade não há fé nem esperança, porque sem a caridade não há esperança de uma sorte melhor nem interesse moral que nos guie. Sem a caridade não há fé, porque a fé é um puro raio que faz brilhar uma alma caridosa; ela é a sua consequência decisiva.
Quando deixardes que o vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes sem se perguntar se sua miséria é fingida ou se seu mal tem um vício como causa; quando deixardes toda a justiça nas mãos de Deus; quando deixardes a cargo do Criador o castigo de todas as falsas misérias; enfim, quando praticardes a caridade pelo só prazer que ela proporciona, sem questionardes a sua utilidade, então sereis os filhos que Deus amará e que chamará para si.
A caridade é a âncora eterna de salvação em todos os globos; é a mais pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, que ele dá às criaturas. Como poderíeis desconhecer essa suprema bondade? Com tal pensamento, qual seria o coração bastante perverso para recalcar e repelir esse sentimento divino? Qual seria o filho suficientemente mau para se rebelar contra a doce carícia da caridade?
Não ouso falar daquilo que fiz, porque os Espíritos também têm o pudor de suas obras. Mas penso que a obra que iniciei é uma daquelas que devem contribuir muito para aliviar os vossos semelhantes. Com frequência vejo Espíritos que pedem a missão de continuar a minha obra; vejo minhas suaves e queridas irmãs em seu piedoso e divino ministério; vejo-as a praticar a virtude que vos recomendo, com toda a alegria proporcionada por essa existência de devotamento e de sacrifícios. É para mim grande felicidade ver quanto seu caráter é honrado; quanto sua missão é apreciada e docemente protegida. Homens de bem, de boa e forte vontade, uni-vos para continuar ampliando a obra de propagação da caridade. Encontrareis a recompensa dessa virtude pelo seu próprio exercício. Não há alegria espiritual que ela não proporcione, já na presente existência. Sede unidos; amai-vos uns aos outros, conforme os preceitos do Cristo. Assim seja.
* * *
─ Agradecemos a S. Vicente de Paulo a bela e boa comunicação que teve a bondade de nos dar.
─ Gostaria que fosse proveitosa a todos.
─ Poderíeis permitir-nos algumas perguntas complementares a respeito do que acabastes de dizer?
─ Certamente, pois meu objetivo é esclarecer-vos. Perguntai o que quiserdes.
1. ─ A caridade pode ser compreendida de duas maneiras: a esmola propriamente dita e o amor aos semelhantes. Quando nos dissestes que era necessário abrir o coração ao pedido do infeliz que nos estende a mão, sem lhe perguntar se sua miséria é fingida, não quisestes falar da caridade do ponto de vista da esmola?
─ Sim, apenas nesse parágrafo.
2. ─ Dissestes que deveríamos deixar à justiça de Deus a apreciação de falsa miséria. Entretanto, parece-nos que dar sem discernimento àqueles que não necessitam ou que poderiam ganhar a vida por um trabalho honesto, é encorajar o vício e a preguiça. Se os preguiçosos achassem facilmente aberta a bolsa alheia, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiramente necessitados.
─ Podeis identificar os que podem trabalhar e então a caridade vos obriga a tudo fazer para lhes proporcionar trabalho. Entretanto, também há pobres mentirosos, que sabem muito bem simular misérias que não padecem. Esses é que devem ser deixados à justiça de Deus.
3. ─ Aquele que pode dar apenas um centavo e que pode escolher entre dois infelizes que lhe pedem, tem o direito de inquirir qual deles é realmente necessitado, ou deve dar sem exame ao que chega primeiro?
─ Deve dar àquele que parece sofrer mais.
4. ─ Não se deve considerar como parte da caridade a maneira de fazê-la?
─ É sobretudo na maneira de fazê-la que está o mérito da caridade. A bondade é sempre indício de uma alma bela.
5. ─ Que tipo de mérito reconheceis naqueles geralmente chamados benfeitores rabugentos?
─ Fazem o bem apenas pela metade. Seus benefícios são recebidos, mas não comovem.
6. ─ Disse Jesus: “Que a vossa mão direita não saiba o que faz a esquerda.” Têm algum mérito aqueles que dão por ostentação?
─ Têm apenas o mérito do orgulho, pelo qual serão punidos.
7. ─ A caridade cristã, na sua mais larga acepção, não compreende também a doçura, a benevolência e a indulgência para com as fraquezas alheias?
─ Fazei como Jesus. Ele vos disse tudo isso. Escutai-o mais do que nunca.
8. ─ É bem entendida a caridade, quando exclusiva entre as criaturas da mesma opinião ou do mesmo partido?
─ Não. É sobretudo o espírito de seita e de partido que deve ser abolido, porquanto todos os homens são irmãos. É sobre isso que concentramos os nossos esforços.
9. ─ Admitamos que uma pessoa veja dois homens em perigo, mas não possa salvar senão um. Um é seu amigo e o outro, inimigo. A quem deve salvar?
─ Deve salvar o amigo, pois esse amigo poderia acusá-lo de não lhe ter amizade. Quanto ao outro, Deus há de tomar conta.
─ Gostaria que fosse proveitosa a todos.
─ Poderíeis permitir-nos algumas perguntas complementares a respeito do que acabastes de dizer?
─ Certamente, pois meu objetivo é esclarecer-vos. Perguntai o que quiserdes.
1. ─ A caridade pode ser compreendida de duas maneiras: a esmola propriamente dita e o amor aos semelhantes. Quando nos dissestes que era necessário abrir o coração ao pedido do infeliz que nos estende a mão, sem lhe perguntar se sua miséria é fingida, não quisestes falar da caridade do ponto de vista da esmola?
─ Sim, apenas nesse parágrafo.
2. ─ Dissestes que deveríamos deixar à justiça de Deus a apreciação de falsa miséria. Entretanto, parece-nos que dar sem discernimento àqueles que não necessitam ou que poderiam ganhar a vida por um trabalho honesto, é encorajar o vício e a preguiça. Se os preguiçosos achassem facilmente aberta a bolsa alheia, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiramente necessitados.
─ Podeis identificar os que podem trabalhar e então a caridade vos obriga a tudo fazer para lhes proporcionar trabalho. Entretanto, também há pobres mentirosos, que sabem muito bem simular misérias que não padecem. Esses é que devem ser deixados à justiça de Deus.
3. ─ Aquele que pode dar apenas um centavo e que pode escolher entre dois infelizes que lhe pedem, tem o direito de inquirir qual deles é realmente necessitado, ou deve dar sem exame ao que chega primeiro?
─ Deve dar àquele que parece sofrer mais.
4. ─ Não se deve considerar como parte da caridade a maneira de fazê-la?
─ É sobretudo na maneira de fazê-la que está o mérito da caridade. A bondade é sempre indício de uma alma bela.
5. ─ Que tipo de mérito reconheceis naqueles geralmente chamados benfeitores rabugentos?
─ Fazem o bem apenas pela metade. Seus benefícios são recebidos, mas não comovem.
6. ─ Disse Jesus: “Que a vossa mão direita não saiba o que faz a esquerda.” Têm algum mérito aqueles que dão por ostentação?
─ Têm apenas o mérito do orgulho, pelo qual serão punidos.
7. ─ A caridade cristã, na sua mais larga acepção, não compreende também a doçura, a benevolência e a indulgência para com as fraquezas alheias?
─ Fazei como Jesus. Ele vos disse tudo isso. Escutai-o mais do que nunca.
8. ─ É bem entendida a caridade, quando exclusiva entre as criaturas da mesma opinião ou do mesmo partido?
─ Não. É sobretudo o espírito de seita e de partido que deve ser abolido, porquanto todos os homens são irmãos. É sobre isso que concentramos os nossos esforços.
9. ─ Admitamos que uma pessoa veja dois homens em perigo, mas não possa salvar senão um. Um é seu amigo e o outro, inimigo. A quem deve salvar?
─ Deve salvar o amigo, pois esse amigo poderia acusá-lo de não lhe ter amizade. Quanto ao outro, Deus há de tomar conta.
O ESPÍRITO BATEDOR DE DIBBELSDORF
Baixa Saxônia
PELO DR. KERNER
TRADUZIDO DO ALEMÃO POR ALFRED PIREAUX
A história do Espírito batedor de Dibbelsdorf, ao lado da sua parte cômica, encerra uma parte instrutiva, segundo ressalta de velhos documentos publicados em 1811 pelo pregador Capelle.
A 2 de dezembro de 1761, às seis horas da tarde, uma espécie de martelar, que parecia vir do chão, foi ouvida no quarto ocupado por Antônio Kettelhut. Imaginando tratar-se de seu criado que queria divertir-se às custas da empregada que estava no quarto das fiandeiras, saiu para atirar um balde d’água na cabeça do gaiato, mas não encontrou ninguém lá fora. Uma hora depois recomeçou o mesmo ruído e ele pensou que a causa fosse um rato. No dia seguinte examinou as paredes, o forro, o soalho e não encontrou o menor vestígio de ratos.
À noite, o mesmo ruído. Foi então a casa considerada perigosa para morar e as criadas não queriam mais ficar no quarto durante o serão. Pouco depois cessou o ruído, para reaparecer a cem passos de distância, na casa de Luís Kettelhut, irmão de Antônio, e com inusitado vigor. Era num canto do quarto que se manifestava a coisa batedora.
Por fim a coisa tornou-se suspeita aos aldeões e o burgomestre comunicou o fato à justiça que de início não quis ocupar-se de um assunto que considerava ridículo. Entretanto, sob a instante pressão dos habitantes, a 6 de janeiro de 1762 ela foi a Dibbelsdorf, para examinar o fato com atenção. As paredes e o teto foram demolidos, mas sem resultado. A família Kettelhut jurou que nada tinha a ver com aquela coisa estranha.
Até então ninguém havia se comunicado com o batedor. Um dia um indivíduo de Naggam armou-se de coragem e perguntou:
─ Espírito batedor, ainda estás aí?
Ouviu-se uma pancada.
─ Podes dizer qual é o teu nome?
Foram ditos vários nomes, mas o Espírito deu uma pancada ao ser pronunciado o do interlocutor.
─ Quantos botões há em minha roupa?
Foram dadas 36 batidas. Contados os botões, verificou-se que eram mesmo 36.
A partir desse instante a história do Espírito batedor espalhou-se pelas imediações e todas as tardes centenas de moradores de Brunswick iam a Dibbelsdorf, assim como ingleses e uma porção de curiosos estrangeiros. A multidão cresceu tanto, que a polícia local foi insuficiente para contê-la; os camponeses tiveram que reforçar a guarda durante a noite e foram obrigados a estabelecer filas para a entrada dos visitantes.
Essa afluência de pessoas pareceu motivar o Espírito a manifestações mais extraordinárias, passando a formas de comunicação que atestavam sua inteligência. Jamais ele se atrapalhou nas respostas. Queriam saber o número e a cor dos cavalos que estavam estacionados na frente da casa? Ele o indicava exatamente. Abria-se um livro de canto; punha-se o dedo ao acaso sobre uma página e pedia-se o número do trecho da canção, às vezes desconhecido pelo interlocutor e logo uma série de batidas indicava perfeitamente o número designado. O Espírito não se fazia esperar; a resposta era dada imediatamente após a pergunta. Também dizia quantas pessoas havia no quarto, quantas do lado de fora; designava a cor dos cabelos, da roupa, a posição e a profissão dos indivíduos.
Entre os curiosos achava-se um dia um homem de Hettin, completamente desconhecido em Dibbelsdorf e que morava há pouco tempo em Brunswick. Ele perguntou ao Espírito o lugar de seu nascimento e, a fim de induzi-lo em erro, citou um grande número de cidades. Quando chegou ao nome de Hettin ouviu-se uma pancada. Um astuto burguês, supondo que induziria o Espírito em erro, perguntou-lhe quantos pfennigs tinha no bolso; foi-lhe dado o número exato: 681. A um pasteleiro foi dito quantos biscoitos havia feito pela manhã; a um negociante quantos metros de fita havia vendido na véspera e a um outro a soma exata que na antevéspera tinha recebido pelo correio. Tinha um humor alegre. Quando lhe pediam, marcava o compasso e por vezes tão fortemente que o barulho era ensurdecedor.
À noite, durante a refeição, após o bendito ele batia o Amém. Esse sinal de devoção não impediu que um sacristão vestisse os hábitos de exorcista e experimentasse dali expulsar o Espírito, mas a conjuração fracassou.
O Espírito não temia ninguém. Mostrou-se tão sincero nas respostas dadas ao regente, o Duque Carlos, e a seu irmão Fernando, quanto às outras pessoas de condição inferior.
O caso tomou então um aspecto mais sério. O duque encarregou um médico e alguns doutores em direito para examinarem os fatos. Os sábios explicaram que as batidas eram devidas a uma fonte subterrânea. Mandaram cavar um poço de oito pés de profundidade e naturalmente acharam água, pois Dibbelsdorf está situada no fundo de um vale. A água jorrou, inundou a sala, mas o Espírito continuou a bater no seu cantinho costumeiro. Então os homens de ciência julgaram-se vítimas de alguma mistificação e deram ao criado a honra de tomar o lugar daquele Espírito tão bem informado. Sua intenção, diziam eles, era de enfeitiçar a criada. Todos os moradores da aldeia foram convidados a ficar em casa num dia determinado; o criado foi mantido sob suas vistas, pois, em face da opinião dos sábios, devia ser ele o culpado. Mas o Espírito novamente respondeu a todas as perguntas. Reconhecida a sua inocência, o criado foi solto. Mas a justiça queria um autor para o delito, e acusou o casal Kettelhut pelo barulho de que se queixavam, embora se tratasse de criaturas benevolentes, honestas e irrepreensíveis sob todos os aspectos e tivessem sido os primeiros a buscar as autoridades, desde o início das manifestações. Com promessas e ameaças, forçaram uma jovem a testemunhar contra os patrões. Em consequência, eles foram presos, a despeito da retratação posterior da moça e da declaração formal de que sua primeira confissão era falsa e lhe fora arrancada pelos juízes. Como o Espírito continuasse a bater, o casal Kettelhut ficou três meses na prisão e, findo esse prazo, foi libertado sem indenização, muito embora os membros da comissão assim tivessem resumido o seu relatório: “Foram infrutíferos todos os meios possíveis para descobrir a causa do ruído. Talvez o futuro nos esclareça a respeito.”
─ O futuro ainda não ensinou nada.
O Espírito batedor manifestou-se desde o começo de dezembro até março, época em que deixou de ser ouvido. Voltaram a pensar que o criado já incriminado devia ser o autor de todas essas tretas. Mas como teria ele podido subtrair-se às armadilhas preparadas pelos duques, médicos, juízes e tantos outros que o interrogaram?
OBSERVAÇÃO: Se prestarmos atenção à data em que tais coisas se passaram e as compararmos com as que ocorrem em nossos dias, nelas encontraremos perfeita identidade no modo da manifestação e até na natureza das perguntas e respostas. Nem a América nem a nossa época descobriram os Espíritos batedores, como não descobriram os outros, como o demonstraremos por inúmeros fatos autênticos e mais ou menos antigos.
Há, entretanto, entre os fenômenos atuais e os de outrora uma diferença capital: é que esses últimos eram quase todos espontâneos, enquanto que os nossos se produzem quase que à vontade de certos médiuns especiais. Esta circunstância permitiu que fossem mais bem estudados e sua causa mais aprofundada. À conclusão dos juízes de que “talvez o futuro nos esclareça a respeito”, hoje o autor não responderia: “o futuro ainda não ensinou nada.” Se esse autor ainda vivesse, saberia, ao contrário, que o futuro tudo ensinou e que a justiça de nossos dias, mais esclarecida do que há um século atrás, não cometeria, em relação às manifestações espíritas, erros que lembram os da Idade Média. Os nossos próprios sábios já penetraram muito nos mistérios da Natureza para não jogar com causas desconhecidas. Eles são bastante sagazes e não se expõem, como os seus predecessores, a um desmentido da posteridade, em detrimento de sua reputação. Se algo aparece no horizonte, eles não correm a proclamar: “Isto não é nada”, com receio de que seja um navio. Se não o veem, calam e esperam. Isto é a verdadeira sabedoria.
Baixa Saxônia
PELO DR. KERNER
TRADUZIDO DO ALEMÃO POR ALFRED PIREAUX
A história do Espírito batedor de Dibbelsdorf, ao lado da sua parte cômica, encerra uma parte instrutiva, segundo ressalta de velhos documentos publicados em 1811 pelo pregador Capelle.
A 2 de dezembro de 1761, às seis horas da tarde, uma espécie de martelar, que parecia vir do chão, foi ouvida no quarto ocupado por Antônio Kettelhut. Imaginando tratar-se de seu criado que queria divertir-se às custas da empregada que estava no quarto das fiandeiras, saiu para atirar um balde d’água na cabeça do gaiato, mas não encontrou ninguém lá fora. Uma hora depois recomeçou o mesmo ruído e ele pensou que a causa fosse um rato. No dia seguinte examinou as paredes, o forro, o soalho e não encontrou o menor vestígio de ratos.
À noite, o mesmo ruído. Foi então a casa considerada perigosa para morar e as criadas não queriam mais ficar no quarto durante o serão. Pouco depois cessou o ruído, para reaparecer a cem passos de distância, na casa de Luís Kettelhut, irmão de Antônio, e com inusitado vigor. Era num canto do quarto que se manifestava a coisa batedora.
Por fim a coisa tornou-se suspeita aos aldeões e o burgomestre comunicou o fato à justiça que de início não quis ocupar-se de um assunto que considerava ridículo. Entretanto, sob a instante pressão dos habitantes, a 6 de janeiro de 1762 ela foi a Dibbelsdorf, para examinar o fato com atenção. As paredes e o teto foram demolidos, mas sem resultado. A família Kettelhut jurou que nada tinha a ver com aquela coisa estranha.
Até então ninguém havia se comunicado com o batedor. Um dia um indivíduo de Naggam armou-se de coragem e perguntou:
─ Espírito batedor, ainda estás aí?
Ouviu-se uma pancada.
─ Podes dizer qual é o teu nome?
Foram ditos vários nomes, mas o Espírito deu uma pancada ao ser pronunciado o do interlocutor.
─ Quantos botões há em minha roupa?
Foram dadas 36 batidas. Contados os botões, verificou-se que eram mesmo 36.
A partir desse instante a história do Espírito batedor espalhou-se pelas imediações e todas as tardes centenas de moradores de Brunswick iam a Dibbelsdorf, assim como ingleses e uma porção de curiosos estrangeiros. A multidão cresceu tanto, que a polícia local foi insuficiente para contê-la; os camponeses tiveram que reforçar a guarda durante a noite e foram obrigados a estabelecer filas para a entrada dos visitantes.
Essa afluência de pessoas pareceu motivar o Espírito a manifestações mais extraordinárias, passando a formas de comunicação que atestavam sua inteligência. Jamais ele se atrapalhou nas respostas. Queriam saber o número e a cor dos cavalos que estavam estacionados na frente da casa? Ele o indicava exatamente. Abria-se um livro de canto; punha-se o dedo ao acaso sobre uma página e pedia-se o número do trecho da canção, às vezes desconhecido pelo interlocutor e logo uma série de batidas indicava perfeitamente o número designado. O Espírito não se fazia esperar; a resposta era dada imediatamente após a pergunta. Também dizia quantas pessoas havia no quarto, quantas do lado de fora; designava a cor dos cabelos, da roupa, a posição e a profissão dos indivíduos.
Entre os curiosos achava-se um dia um homem de Hettin, completamente desconhecido em Dibbelsdorf e que morava há pouco tempo em Brunswick. Ele perguntou ao Espírito o lugar de seu nascimento e, a fim de induzi-lo em erro, citou um grande número de cidades. Quando chegou ao nome de Hettin ouviu-se uma pancada. Um astuto burguês, supondo que induziria o Espírito em erro, perguntou-lhe quantos pfennigs tinha no bolso; foi-lhe dado o número exato: 681. A um pasteleiro foi dito quantos biscoitos havia feito pela manhã; a um negociante quantos metros de fita havia vendido na véspera e a um outro a soma exata que na antevéspera tinha recebido pelo correio. Tinha um humor alegre. Quando lhe pediam, marcava o compasso e por vezes tão fortemente que o barulho era ensurdecedor.
À noite, durante a refeição, após o bendito ele batia o Amém. Esse sinal de devoção não impediu que um sacristão vestisse os hábitos de exorcista e experimentasse dali expulsar o Espírito, mas a conjuração fracassou.
O Espírito não temia ninguém. Mostrou-se tão sincero nas respostas dadas ao regente, o Duque Carlos, e a seu irmão Fernando, quanto às outras pessoas de condição inferior.
O caso tomou então um aspecto mais sério. O duque encarregou um médico e alguns doutores em direito para examinarem os fatos. Os sábios explicaram que as batidas eram devidas a uma fonte subterrânea. Mandaram cavar um poço de oito pés de profundidade e naturalmente acharam água, pois Dibbelsdorf está situada no fundo de um vale. A água jorrou, inundou a sala, mas o Espírito continuou a bater no seu cantinho costumeiro. Então os homens de ciência julgaram-se vítimas de alguma mistificação e deram ao criado a honra de tomar o lugar daquele Espírito tão bem informado. Sua intenção, diziam eles, era de enfeitiçar a criada. Todos os moradores da aldeia foram convidados a ficar em casa num dia determinado; o criado foi mantido sob suas vistas, pois, em face da opinião dos sábios, devia ser ele o culpado. Mas o Espírito novamente respondeu a todas as perguntas. Reconhecida a sua inocência, o criado foi solto. Mas a justiça queria um autor para o delito, e acusou o casal Kettelhut pelo barulho de que se queixavam, embora se tratasse de criaturas benevolentes, honestas e irrepreensíveis sob todos os aspectos e tivessem sido os primeiros a buscar as autoridades, desde o início das manifestações. Com promessas e ameaças, forçaram uma jovem a testemunhar contra os patrões. Em consequência, eles foram presos, a despeito da retratação posterior da moça e da declaração formal de que sua primeira confissão era falsa e lhe fora arrancada pelos juízes. Como o Espírito continuasse a bater, o casal Kettelhut ficou três meses na prisão e, findo esse prazo, foi libertado sem indenização, muito embora os membros da comissão assim tivessem resumido o seu relatório: “Foram infrutíferos todos os meios possíveis para descobrir a causa do ruído. Talvez o futuro nos esclareça a respeito.”
─ O futuro ainda não ensinou nada.
O Espírito batedor manifestou-se desde o começo de dezembro até março, época em que deixou de ser ouvido. Voltaram a pensar que o criado já incriminado devia ser o autor de todas essas tretas. Mas como teria ele podido subtrair-se às armadilhas preparadas pelos duques, médicos, juízes e tantos outros que o interrogaram?
OBSERVAÇÃO: Se prestarmos atenção à data em que tais coisas se passaram e as compararmos com as que ocorrem em nossos dias, nelas encontraremos perfeita identidade no modo da manifestação e até na natureza das perguntas e respostas. Nem a América nem a nossa época descobriram os Espíritos batedores, como não descobriram os outros, como o demonstraremos por inúmeros fatos autênticos e mais ou menos antigos.
Há, entretanto, entre os fenômenos atuais e os de outrora uma diferença capital: é que esses últimos eram quase todos espontâneos, enquanto que os nossos se produzem quase que à vontade de certos médiuns especiais. Esta circunstância permitiu que fossem mais bem estudados e sua causa mais aprofundada. À conclusão dos juízes de que “talvez o futuro nos esclareça a respeito”, hoje o autor não responderia: “o futuro ainda não ensinou nada.” Se esse autor ainda vivesse, saberia, ao contrário, que o futuro tudo ensinou e que a justiça de nossos dias, mais esclarecida do que há um século atrás, não cometeria, em relação às manifestações espíritas, erros que lembram os da Idade Média. Os nossos próprios sábios já penetraram muito nos mistérios da Natureza para não jogar com causas desconhecidas. Eles são bastante sagazes e não se expõem, como os seus predecessores, a um desmentido da posteridade, em detrimento de sua reputação. Se algo aparece no horizonte, eles não correm a proclamar: “Isto não é nada”, com receio de que seja um navio. Se não o veem, calam e esperam. Isto é a verdadeira sabedoria.
Conforme havíamos anunciado, damos com este número da Revista o desenho de uma habitação em Júpiter, executado e gravado pelo Sr. Victorien Sardou como médium, e adicionamos o artigo descritivo que o mesmo teve a gentileza de escrever a respeito. Quanto à autenticidade da descrição, seja qual for a opinião dos que nos acusem por nos ocuparmos daquilo que se passa em mundos desconhecidos, quando há tanto que fazer na Terra, rogamos aos leitores que não percam de vista que o nosso objetivo, bem como o que se acha no subtítulo da revista, é antes de tudo o estudo dos fenômenos e que, neste sentido, nada deve ser negligenciado. Ora, como fato de manifestações, esses desenhos são, incontestavelmente, os mais admiráveis, desde que se considere que o autor não sabe desenhar, nem gravar, e que o desenho que oferecemos é uma água-forte feita sem modelo nem ensaio prévio, em nove horas. Supondo mesmo que esse desenho seja uma fantasia do Espírito que o traçou, o simples fato de sua execução não seria um fenômeno menos digno de atenção e, sob esse título, cabe à nossa coleção torná-lo conhecido, bem como a descrição que sobre o mesmo foi dada pelos Espíritos, não para satisfazer à curiosidade das pessoas fúteis, mas como assunto de estudo para as pessoas sérias que querem aprofundar-se em todos os mistérios da Ciência Espírita.
Seria erro pensar que fazemos da revelação dos mundos desconhecidos o objeto capital da doutrina. Isto nunca será para nós mais que um acessório, que consideramos útil como estudo complementar; o principal será sempre para nós o ensino moral e nas comunicações de além-túmulo buscaremos sobretudo aquilo que pode esclarecer a Humanidade e conduzi-la para o bem, único meio de lhe assegurar a felicidade neste e no outro mundo.
Não poderíamos dizer o mesmo com relação aos astrônomos que sondam os espaços e perguntar-lhes qual seria a utilidade para o gênero humano em saber calcular com precisão a parábola de um astro invisível?
Nem todas as ciências têm um interesse eminentemente prático. Entretanto, a ninguém ocorre tratá-las com desdém, porque tudo quanto aumenta o círculo das ideias contribui para o progresso.
Assim se dá com as comunicações espíritas, mesmo quando ultrapassam o círculo estreito da nossa personalidade.
Seria erro pensar que fazemos da revelação dos mundos desconhecidos o objeto capital da doutrina. Isto nunca será para nós mais que um acessório, que consideramos útil como estudo complementar; o principal será sempre para nós o ensino moral e nas comunicações de além-túmulo buscaremos sobretudo aquilo que pode esclarecer a Humanidade e conduzi-la para o bem, único meio de lhe assegurar a felicidade neste e no outro mundo.
Não poderíamos dizer o mesmo com relação aos astrônomos que sondam os espaços e perguntar-lhes qual seria a utilidade para o gênero humano em saber calcular com precisão a parábola de um astro invisível?
Nem todas as ciências têm um interesse eminentemente prático. Entretanto, a ninguém ocorre tratá-las com desdém, porque tudo quanto aumenta o círculo das ideias contribui para o progresso.
Assim se dá com as comunicações espíritas, mesmo quando ultrapassam o círculo estreito da nossa personalidade.
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Casa de Mozart - por Victorien Sardou (Médium)
Para certas pessoas convencidas da existência dos Espíritos ─ e aqui não cogito de outras ─ deve ser motivo de espanto que, como nós, os Espíritos tenham as suas habitações e as suas cidades. Não me pouparam críticas: “Casas de Espíritos em Júpiter!... Que piada!...”
Piada ─ seja. Mas eu nada tenho com isso. Se aqui, na verossimilhança das explicações, não encontra o leitor uma prova suficiente de sua veracidade; se, como nós, não se surpreende com a perfeita concordância entre estas revelações dos Espíritos e os dados mais positivos da Astronomia; se, numa palavra, não vê mais que hábil mistificação nos detalhes que se seguem e no desenho que os acompanha, eu o convido a se explicar com os Espíritos, de quem apenas sou eco fiel e instrumento. Que se evoquem Pallissy ou Mozart ou um outro habitante desse mundo feliz; que sejam interrogados; que minhas asserções sejam controladas pelas suas; que, enfim, discutam com eles, porque, quanto a mim, mais não faço do que apresentar aquilo que me é dado e repetir aquilo que me é dito; e, por esse papel absolutamente passivo, julgo-me ao abrigo da censura, tanto quanto do elogio.
Feita esta ressalva e admitida a confiança nos Espíritos, se se aceitar como verdadeira a única doutrina realmente bela e sábia até aqui revelada pela evocação dos mortos, isto é, a migração das almas de planeta a planeta, suas encarnações sucessivas e seu progresso incessante pelo trabalho, os habitantes de Júpiter não nos devem mais causar admiração. Desde o momento em que um Espírito se encarna num mundo como o nosso, submetido a uma dupla revolução, isto é, à alternativa dos dias e das noites e ao retorno periódico das estações e desde que possui um corpo, esse envoltório material, por mais frágil que seja, não somente requer alimentação e vestuário, mas um abrigo ou, pelo menos, um lugar de repouso e, consequentemente, uma habitação.
É exatamente o que nos foi dito. Como nós, e melhor do que nós, os habitantes de Júpiter têm seus lares comuns e suas famílias, grupos harmoniosos de Espíritos simpáticos, unidos no triunfo, como o foram na luta. Daí as moradas tão espaçosas que merecem exatamente o nome de palácios.
Ainda como nós, os Espíritos têm as suas festas, suas cerimônias, suas reuniões públicas. Daí certos edifícios destinados especialmente a essas finalidades. É preciso estar preparado para encontrar, nessas regiões superiores, uma Humanidade ativa e laboriosa como a nossa, como nós submetida às suas leis, às suas necessidades, aos seus deveres, apenas com a diferença de que o progresso, rebelde aos nossos esforços, torna-se fácil conquista para os Espíritos desprendidos, como eles são, de nossos vícios terrenos.
Eu não deveria ocupar-me aqui da arquitetura de suas habitações. Mas, para a boa compreensão dos detalhes que se seguem, não será inútil uma palavra de explicação.
Se Júpiter só é habitável por bons Espíritos, não se segue que sejam todos do mesmo grau de excelência: entre a bondade do homem simples e a do homem de gênio, podem contar-se muitas nuanças. Ora, toda a organização social desse mundo superior repousa precisamente sobre essa variedade de inteligências e de aptidões e, por efeito de leis harmoniosas cuja explicação aqui seria muito longa, cabe aos Espíritos mais elevados e mais depurados, a alta direção de seu planeta. Essa supremacia não para aí. Ela se estende até os mundos inferiores, onde esses Espíritos, por sua influência, favorecem e incessantemente ativam o progresso religioso, gerador de todos os demais. É preciso acrescentar que para esses Espíritos depurados não haveria senão trabalhos intelectuais, pois suas atividades se exercem apenas no campo do pensamento e eles já adquiriram bastante domínio sobre a matéria para não serem senão ligeiramente limitados por ela no livre exercício de sua vontade.
O corpo desses Espíritos, como aliás de todos os habitantes de Júpiter, é de tão pouca densidade que só pode ser comparada à dos nossos fluidos imponderáveis. Um pouco maior que o nosso corpo, cuja forma reproduz exatamente, entretanto mais bela e mais pura, ele teria, para nós, a aparência de um vapor ─ e aqui emprego contrafeito um vocábulo que designa uma substância ainda muito grosseira ─ de um vapor, dizia eu, intangível e luminoso... luminoso sobretudo nos contornos do rosto e da cabeça, pois aí a inteligência e a vida irradiam como um foco muito ardente. É exatamente esse brilho magnético, entrevisto pelos visionários cristãos, que os nossos pintores traduziam como o nimbo ou auréola dos santos.
Compreende-se que tal corpo não dificulta senão muito pouco as comunicações extramundanas desses Espíritos e que lhes permite, no seu próprio planeta, um deslocamento rápido e fácil. Ele se subtrai tão facilmente à atração planetária, e sua densidade difere tão pouco da densidade atmosférica, que ali pode movimentar-se, ir e vir, subir e descer, ao capricho do Espírito e sem outro esforço além da vontade. Assim, alguns personagens que Palissy houve por bem fazer-me desenhar são representados rasando o solo ou na superfície das águas ou ainda muito elevados no ar, com toda a liberdade de ação e de movimento que nós atribuímos aos anjos. Essa locomoção é tanto mais fácil quanto mais depurado é o Espírito, o que se compreende sem esforço. Assim, nada é mais fácil aos habitantes do planeta do que determinar, logo à primeira vista, o valor de um Espírito que passa. Dois sinais o delatam: a altura de seu voo e a luz mais ou menos brilhante de sua auréola.
Em Júpiter, como por toda parte, os que voam mais alto são mais raros. Abaixo deles existem várias categorias de Espíritos inferiores, quer em virtude, quer em poder, mas naturalmente livres para os igualar um dia, pelo aperfeiçoamento. Escalonados e classificados segundo os seus méritos, dedicam-se mais particularmente aos trabalhos que interessam ao próprio planeta e não exercem sobre os mundos inferiores a autoridade todo-poderosa dos primeiros. É verdade que respondem a uma evocação com revelações sábias e boas, mas, pela pressa que demonstram em nos deixar, como pelo laconismo de suas respostas, compreende-se facilmente que têm alhures muito o que fazer e que ainda não se encontram suficientemente desembaraçados a fim de poderem irradiar, simultaneamente, em dois pontos tão distantes um do outro. Enfim, seguindo os menos perfeitos desses Espíritos, mas deles separados por um abismo, vêm os animais que, como únicos criados e únicos operários do planeta, merecem referência muito especial.
Se designamos pelo nome de animais os seres bizarros que ocupam os limites inferiores da escala, é que os próprios Espíritos admitiram o uso e ainda porque a nossa linguagem não possui um termo mais adequado. Essa designação os degrada bastante; entretanto, chamá-los homens seria elevá-los demais. São, na verdade, Espíritos destinados à animalidade, talvez por longo tempo, talvez para sempre, pois nesse ponto os Espíritos não estão todos de acordo e a solução do problema parece pertencer a mundos mais elevados que Júpiter. Contudo, seja qual for o seu futuro, não há equívoco quanto ao seu passado: tais Espíritos, antes de irem para lá, migraram, seguidamente, em nossos mundos inferiores, do corpo de um ao de outro animal, por uma escala de aperfeiçoamento perfeitamente graduada. O estudo atento de nossos animais terrestres, seus costumes, seus caracteres individuais, sua ferocidade longe do homem e sua domesticação lenta, mas sempre possível, tudo indica suficientemente a realidade dessa ascensão animal.
Assim, para qualquer lado que nos voltemos, a harmonia do Universo se resume sempre numa lei única: o progresso por toda parte e para todos, para o animal como para a planta, para a planta como para o mineral. A princípio, um progresso puramente material, nas moléculas insensíveis do metal ou do seixo e cada vez mais inteligente, à medida que subimos na escala dos seres e que a individualidade tende a desembaraçar-se da massa, a se afirmar, a se conhecer.
Esse pensamento é elevado e consolador, como nunca havia sido, porque nos prova que nada é sacrificado; que a recompensa é sempre proporcional ao progresso realizado. Por exemplo: o devotamento do cão que morre por seu dono não é estéril para o seu Espírito, pois terá seu justo salário além deste mundo.
É o caso dos Espíritos animais que povoam Júpiter. Aperfeiçoaram-se ao mesmo tempo que nós, conosco e com a nossa ajuda. A lei é ainda mais admirável: ela tanto faz de seu devotamento ao homem a primeira condição para sua ascensão planetária, que a vontade de um Espírito de Júpiter pode chamar para si todo animal que, numa de suas vidas anteriores, lhe houver dado provas de afeição. Essas simpatias, que lá no alto formam famílias de Espíritos, também agrupam em torno das famílias todo um cortejo de animais dedicados. Consequentemente, nosso apego por um animal, aqui em baixo; o cuidado que temos em amansá-lo e humanizá-lo, tudo tem sua razão de ser, tudo será pago: é um bom serviçal que preparamos antecipadamente para um mundo melhor.
Será assim um operário, pois aos seus semelhantes fica reservado todo trabalho material, todo esforço corporal: carga ou construção, semeadura ou colheita. Para tudo isto a Suprema Inteligência preparou um corpo que participa simultaneamente das vantagens do animal e das do homem. Podemos fazer uma ideia por um esboço de Palissy, representando alguns desses animais muito entretidos a jogar bola. A melhor comparação que poderia fazer seria com os faunos e os sátiros da Fábula. O corpo levemente peludo, apruma-se, no entanto, como o nosso; nalguns, as patas desapareceram, dando lugar a certas pernas que lembram ainda a forma primitiva e a dois braços robustos, singularmente implantados e terminados por duas verdadeiras mãos, se considerarmos a oposição dos polegares. Singularmente, a cabeça não é tão aperfeiçoada quanto o resto. Assim, a fisionomia reflete algo de humano, mas o crânio, o maxilar e sobretudo a orelha, em nada diferem sensivelmente daqueles dos animais terrestres. É, pois, fácil distingui-los entre si: este é um cão, aquele um leão.
Adequadamente vestidos de blusas e vestes muito semelhantes às nossas, só lhes falta a palavra para se parecerem com alguns homens daqui: eis precisamente o que lhes falta e aquilo que eles não poderiam fazer. Hábeis para se entenderem entre si, por meio de uma linguagem que nada tem da nossa, não mais se enganam quanto às intenções dos Espíritos que os dirigem: um olhar, um gesto lhes é bastante. A certos impulsos magnéticos, cujo segredo já conhecem os nossos domadores de feras, o animal adivinha e obedece sem murmurar e, o que é mais importante, voluntariamente, porque está fascinado. É assim que lhe é imposta toda tarefa pesada e que, com seu auxílio, tudo funciona regularmente, de um a outro extremo da escala social: o Espírito elevado pensa e delibera; o Espírito inferior age por sua própria iniciativa e o animal executa. Assim, a concepção, a execução e o fato se unem numa mesma harmonia e levam todas as coisas à sua conclusão, com mais rapidez e pelos meios mais simples e mais seguros.
Peço desculpas por esta digressão: ela era indispensável ao assunto que agora podemos abordar.
Enquanto esperamos os mapas prometidos, que facilitarão singularmente o estudo de todo o planeta, podemos, pelas descrições feitas pelos Espíritos, fazer uma ideia de sua grande cidade, da cidade por excelência, desse foco de luz e de atividade que eles concordam em chamar ─ o que nos parece estranho ─ pelo nome latino de Julnius.
“No maior de nossos continentes”, diz Palissy, “num vale de setecentas a oitocentas léguas de largura, para utilizar vosso sistema de medidas, um rio magnífico desce das montanhas do norte e, aumentado por uma porção de torrentes e ribeirões, forma em seu percurso sete ou oito lagos dos quais o menor mereceria entre vós o nome de mar. Foi sobre as bordas do maior desses lagos, batizado com o nome de a Pérola, que os nossos antepassados lançaram os alicerces de Julnius. Essa cidade primitiva ainda existe, venerada e guardada como preciosa relíquia. Sua arquitetura muito difere da vossa. Tudo isto eu te explicarei a seu tempo: saiba apenas que a cidade moderna fica a algumas centenas de metros da antiga. Apertado entre altas montanhas, o lago se derrama no vale por oito enormes cataratas, que formam outras tantas correntes isoladas e dispersas em todas as direções. Com o auxílio dessas correntes nós cavamos na planície uma porção de regatos, de canais e de lagos, reservando o solo firme apenas para as casas e os jardins. Daí resulta uma espécie de cidade anfíbia, como a vossa Veneza e da qual, à primeira vista, não se poderia dizer se foi construída sobre a terra ou sobre a água. Hoje nada te digo sobre quatro edifícios sagrados construídos a montante das cataratas, de modo que a água jorra em catadupa de seus próprios pórticos. Essas obras vos pareceriam incríveis por sua grandeza e por sua ousadia.
“Aqui descrevo a cidade terrestre, de certo modo material, cidade das ocupações planetárias, enfim aquela a que chamamos a Cidade Baixa. Tem suas ruas, ou melhor, os seus caminhos traçados para o serviço interno; tem suas praças públicas, seus pórticos e suas pontes lançadas sobre os canais, para a passagem dos serviçais. Mas a cidade inteligente, a cidade espiritual, a verdadeira Julnius, enfim, não deve ser procurada no solo. Ela está no ar.
“Para o corpo material de nossos animais incapazes de voar[1] é necessária a terra firme, mas o nosso corpo fluídico e luminoso exige um alojamento aéreo como ele próprio, quase impalpável e móvel à nossa vontade. Nossa habilidade resolveu esse problema com o auxílio do tempo e das condições privilegiadas que o Grande Arquiteto nos concedeu. Bem compreendes que essa conquista dos ares era indispensável a Espíritos como os nossos. Nosso dia é de cinco horas e nossa noite igualmente de cinco, mas tudo é relativo, e para seres prontos a pensar e agir como nós; para Espíritos que se compreendem pela linguagem dos olhos e que sabem comunicar-se magneticamente à distância, nosso dia de cinco horas equivaleria a uma semana de vossas atividades. Isso tudo ainda era muito pouco, em nossa opinião. A imobilidade da morada, o ponto fixo do lar eram um entrave para todas as nossas grandes obras. Hoje, pelo fácil deslocamento dessas moradas de pássaros, pela possibilidade de nos transportarmos, assim como aos nossos, para qualquer lugar do planeta, à hora que bem quisermos, nossa existência no mínimo duplicou, e com ela, tudo quanto ela pode produzir de útil e de grande.
“Em certas épocas do ano”, acrescenta o Espírito, “em certas festas, por exemplo, verás aqui o céu obscurecido pela nuvem de habitações que vêm de todos os pontos do horizonte. É um curioso ajuntamento de moradias esbeltas, graciosas, leves, de todas as formas, de todas as cores, equilibradas em diversas alturas e continuamente em marcha, da cidade baixa para a cidade celeste. Alguns dias depois, faz-se o vazio pouco a pouco e todos esses pássaros se vão.”
Nada falta a essas moradas flutuantes, nem mesmo o encanto da verdura e das flores. Falo de uma vegetação sem similar entre vós, de plantas e até de arbustos que, pela natureza de seus órgãos, vivem, respiram, alimentam-se e se reproduzem no ar.
Diz ainda o mesmo Espírito:
“Temos esses tufos de flores enormes, cujas formas e nuanças nem podeis imaginar, e de uma textura tão delicada, que as torna quase transparentes. Balouçando-se no ar, onde largas folhas as sustêm, providas de gavinhas semelhantes às da videira, reúnem-se em nuvens de mil tons ou se dispersam ao sabor do vento e oferecem um espetáculo encantador aos transeuntes da cidade baixa... Imagina a graça dessas jangadas de verdura, desses jardins flutuantes que nossa vontade pode fazer e desfazer e que por vezes duram toda uma estação! Longos rastilhos de lianas e de ramos floridos se destacam dessas alturas e descem até o solo; cachos enormes se agitam, exalando perfume das pétalas que se destacam... Os Espíritos que viajam pelo ar aí estacionam: é um lugar de repouso e de reencontro e, se assim o desejarem, um meio de transporte para terminar uma viagem sem fadigas e em boa companhia.”
Um outro Espírito estava sentado sobre uma dessas flores no momento em que o evoquei. Disse-me ele:
“Neste instante é noite em Julnius e me acho sentado à distância, numa dessas flores do ar que só se abrem aqui à claridade de nossas luas. A meus pés dormita toda a cidade baixa; mas acima da minha cabeça e em volta de mim, a perder de vista, só há movimento e alegria no espaço. Dormimos pouco: nossa alma é muito desprendida, de modo que as necessidades do corpo não a tiranizam. A noite é feita mais para os nossos servos do que para nós. É a hora das visitas, das conversas longas, dos passeios solitários, dos devaneios, da música. Só vejo moradas aéreas resplendentes de luz ou jangadas de folhas e de flores carregadas de bandos alegres... A primeira de nossas luas ilumina toda a cidade baixa: é uma luz suave, comparável à dos vossos luares; mas, da margem do lago eleva-se a segunda, a de reflexos esverdeados, que dão a todo o rio o aspecto de um vasto gramado...”
É sobre a margem direita desse rio, “cuja água, diz o Espírito, dar-te-ia a impressão da consistência de um vapor muito leve”[2], que está construída a casa de Mozart, cujo desenho Palissy teve a bondade de me fazer reproduzir sobre cobre.
Apresento aqui apenas a fachada do lado sul. A grande entrada fica à esquerda, olhando a planície; à direita fica o rio; ao norte e ao sul estão os jardins. Perguntei a Mozart quem eram seus vizinhos.
─ Mais acima e mais abaixo, dois Espíritos que não conheces, mas à esquerda apenas um grande prado me separa do jardim de Cervantes.
A casa tem quatro faces, como as nossas, mas seria erro considerar isto como regra geral. É construída com uma certa pedra que os animais tiram das pedreiras do norte e cuja cor o Espírito compara aos tons esverdeados que por vezes toma o azul do céu, ao pôr do sol. Quanto a sua dureza, pode-se fazer uma ideia por esta comparação de Palissy: “que ela fundir-se-ia sob a pressão de nossos dedos humanos tão rapidamente quanto um floco de neve, posto seja uma das matérias mais resistentes daquele planeta! Nessas paredes os Espíritos esculpiram ou incrustaram estranhos arabescos que o desenho procura reproduzir. São ornamentos gravados na pedra e depois coloridos, ou incrustações feitas na solidez da pedra verde por um processo atualmente muito em voga e que mantém toda a graça dos contornos dos vegetais, toda a delicadeza de seus tecidos e toda a riqueza de seu colorido. “Uma descoberta”, acrescentou o Espírito, “que fareis um dia e que entre vós mudará muitas coisas.”
A grande janela da direita apresenta um exemplo desse gênero de ornatos: uma de suas bordas mais não é que um enorme caniço, cujas folhas foram conservadas. O mesmo ocorre no coroamento da janela principal, que imita a forma da clave de sol: são plantas sarmentosas enlaçadas e petrificadas. É por tal processo que eles obtêm a maior parte dos coroamentos dos edifícios, dos portões, das balaustradas, etc. Por vezes a planta é colocada na parede, com suas raízes, em condições de crescer livremente. Ela cresce, desenvolve-se, suas flores se espalham ao acaso, e o artista não as petrifica no lugar senão quando adquiriram todo o desenvolvimento desejado para a ornamentação do edifício. A casa de Palissy é quase que inteiramente decorada por esse processo.
Inicialmente destinado só aos móveis, depois aos batentes das portas e das janelas, esse gênero de ornamento aperfeiçoou-se pouco a pouco e acabou por invadir toda a arquitetura. Hoje não são petrificados apenas as flores e os arbustos, mas as próprias árvores, da raiz até a copa. Os palácios, como outros edifícios, praticamente não têm outras colunas.
Uma petrificação da mesma natureza serve também à decoração das janelas. Flores ou folhas muito grandes são habilmente despojadas de sua parte carnuda. Não resta mais que um feixe de fibras, tão finas quanto a mais fina musselina. Cristalizam-nas, e dessas folhas reunidas com arte constroem toda a janela, que apenas filtra para o interior uma luz muito suave. Também as impregnam de uma espécie de vidro líquido e colorido de todos os matizes, que endurece no ar e que transforma a folha numa espécie de vidraça. Do arranjo dessas folhas nas janelas resultam encantadores ramos transparentes e luminosos.
Quanto às dimensões dessas aberturas e a inúmeros outros detalhes que, à primeira vista, podem surpreender, vejo-me obrigado a uma explicação: a história da arquitetura em Júpiter exigiria um volume inteiro. Também desisto de falar no mobiliário, para me restringir, aqui, à disposição geral da casa.
Depois do que precede, o leitor deve ter compreendido que a casa do continente não deve ser para o Espírito mais que uma espécie de pousada.
A cidade baixa quase que só é frequentada por Espíritos de segunda categoria, encarregados dos interesses planetários, da agricultura, por exemplo, ou das trocas e da boa ordem que deve ser mantida entre os serviçais. Assim, todas as casas que estão no solo, geralmente dispõem de um pavimento térreo e um superior, o térreo destinado aos Espíritos que atuam sob a direção do senhor, também acessível aos animais; o outro reservado unicamente ao Espírito, que aí mora apenas ocasionalmente. Eis o que explica o fato de vermos nas diversas casas de Júpiter, nesta, por exemplo, como na de Zoroastro, uma escadaria e até uma rampa. Aquele que rasa a água, como uma andorinha e que pode correr sobre as hastes do trigo sem curvá-las, pode perfeitamente dispensar a escadaria e a rampa para penetrar na sua casa. Mas os Espíritos inferiores não têm o voo tão fácil. Não se elevam senão por movimentos irregulares e nem sempre a rampa lhes é inútil. Enfim, a escadaria é de absoluta necessidade para os animais serviçais, que apenas andam como nós. Estes últimos também possuem seus pavilhões, aliás muito elegantes, e que fazem parte de todas as grandes habitações, mas suas funções os chamam, constantemente, à casa do senhor, e é necessário facilitar-lhes a entrada e o trânsito interno. Daí essas construções originais, cuja base assemelha-se aos nossos edifícios terrestres e dos quais diferem inteiramente na parte superior.
Esta se distingue por uma originalidade que seríamos absolutamente incapazes de imitar. É uma espécie de flecha aérea que balança no topo do edifício, acima da grande janela e de seu original coroamento. A essa gávea delicada e fácil de deslocar está determinado, entretanto, no pensamento do artista, permanecer no lugar que lhe foi definido porque, sem repousar em coisa alguma no frontão, completa-lhe a decoração. Lamentavelmente a dimensão da prancha não permitiu encontrar espaço para ela.
Quanto à morada aérea de Mozart, cabe aqui apenas constatar a sua existência. Os limites deste artigo não permitem que me estenda sobre o assunto.
Não concluirei, entretanto, sem me explicar, de passagem, sobre o gênero de ornamentos que o grande artista escolheu para a sua morada. É fácil identificar-lhe a semelhança com a nossa música terrestre: a clave de sol é ali repetida com frequência e ─ coisa original ─ nunca a clave de fá! Na decoração do rés do chão encontramos um arco de violino, uma espécie de tiorba ou bandolim, uma lira e uma pauta de música. Mais acima há uma grande janela que lembra vagamente a forma de um órgão; as outras têm a aparência de grandes notas, mas as notas pequenas são abundantes por toda a fachada.
Seria erro concluir que a música de Júpiter seja comparável à nossa e que se represente pelos mesmos sinais. Mozart explicou-se sobre isto, de maneira a não deixar dúvidas. Mas, na decoração de suas casas, os Espíritos lembram a missão terrestre que lhes deu o mérito da encarnação em Júpiter e que resume magnificamente a feição de sua inteligência. Assim, na casa de Zoroastro são os astros e a chama que constituem todos os elementos decorativos.
Além disto, parece que esse simbolismo tem suas regras e seus segredos. Esses ornamentos todos não se dispõem ao acaso. Eles têm sua ordem lógica e sua significação precisa, mas é uma arte que os Espíritos de Júpiter se abstêm de fazernos compreender, pelo menos por enquanto, e sobre a qual não se explicam de bom grado.
Nossos antigos arquitetos também empregavam o simbolismo na decoração de suas catedrais. A Torre de São Tiago é um poema hermético, se dermos crédito à tradição. Portanto, não há motivo para nos admirarmos da originalidade da decoração arquitetônica em Júpiter. Se ela contraria as nossas ideias sobre a arte humana é que, na verdade, existe um abismo entre uma arquitetura que vive e fala e uma alvenaria inexpressiva como a nossa. Nisto, como em tudo o mais, a prudência nos permite evitar esse erro do relativismo, que quer reduzir tudo às proporções e aos hábitos do homem terreno. Se os habitantes de Júpiter morassem como nós, comessem, vivessem, dormissem e andassem como nós, não haveria muita vantagem em ir para lá. É porque o seu planeta difere muito do nosso que desejamos conhecê-lo e sonhamos com ele como nossa futura morada.
De minha parte, penso que não perdi meu tempo e ficaria muito feliz por me haverem os Espíritos escolhido para seu intérprete se os seus desenhos e as suas descrições inspirarem a um só crente o desejo de subir mais rapidamente para Julnius e a coragem de tudo fazer para consegui-lo.
VICTORIEN SARDOU
***
O autor desta interessante descrição é um desses adeptos fervorosos e esclarecidos que não temem confessar alto e bom som as suas crenças e colocam-se acima da crítica daqueles que não creem em nada além do seu círculo de ideias. Ligar seu nome a uma doutrina nova, desafiando sarcasmos, é uma coragem que não é dada a todos. Felicitamos ao Sr. V. Sardou porque a possui. Seu trabalho revela o distinto escritor que, jovem ainda, já conquistou um lugar de honra na literatura e alia ao talento de escritor profundos conhecimentos de sábio. É mais uma prova de que o Espiritismo não recruta entre os tolos e ignorantes. Fazemos votos para que o Sr. Sardou complete o mais breve possível o seu trabalho tão auspiciosamente começado. Se os astrônomos nos desvendam, por sábias pesquisas, o mecanismo do Universo, por suas revelações os Espíritos nos dão a conhecer o seu estado moral e, como eles mesmos dizem, é com o objetivo de motivar-nos ao bem, a fim de merecermos uma vida melhor.
ALLAN KARDEC.[3]
[1] Entretanto há que excetuar certos animais alados e destinados ao serviço do ar e aos trabalhos que entre nós exigiriam carpinteiros. É uma transformação da ave, como os animais acima descritos são uma transformação dos quadrúpedes.
[2] A densidade de Júpiter é de 0,23, ou seja, pouco mais ou menos um quarto da densidade da Terra. Tudo quanto o Espírito diz aqui é muito verossímil. Compreende-se que tudo é relativo e que nesse globo etéreo, tudo, como ele, seja etéreo.
[3] Paris. Tipografia de Cosson & Cia, Rua do Four-Saint-Germain, 43.
Piada ─ seja. Mas eu nada tenho com isso. Se aqui, na verossimilhança das explicações, não encontra o leitor uma prova suficiente de sua veracidade; se, como nós, não se surpreende com a perfeita concordância entre estas revelações dos Espíritos e os dados mais positivos da Astronomia; se, numa palavra, não vê mais que hábil mistificação nos detalhes que se seguem e no desenho que os acompanha, eu o convido a se explicar com os Espíritos, de quem apenas sou eco fiel e instrumento. Que se evoquem Pallissy ou Mozart ou um outro habitante desse mundo feliz; que sejam interrogados; que minhas asserções sejam controladas pelas suas; que, enfim, discutam com eles, porque, quanto a mim, mais não faço do que apresentar aquilo que me é dado e repetir aquilo que me é dito; e, por esse papel absolutamente passivo, julgo-me ao abrigo da censura, tanto quanto do elogio.
Feita esta ressalva e admitida a confiança nos Espíritos, se se aceitar como verdadeira a única doutrina realmente bela e sábia até aqui revelada pela evocação dos mortos, isto é, a migração das almas de planeta a planeta, suas encarnações sucessivas e seu progresso incessante pelo trabalho, os habitantes de Júpiter não nos devem mais causar admiração. Desde o momento em que um Espírito se encarna num mundo como o nosso, submetido a uma dupla revolução, isto é, à alternativa dos dias e das noites e ao retorno periódico das estações e desde que possui um corpo, esse envoltório material, por mais frágil que seja, não somente requer alimentação e vestuário, mas um abrigo ou, pelo menos, um lugar de repouso e, consequentemente, uma habitação.
É exatamente o que nos foi dito. Como nós, e melhor do que nós, os habitantes de Júpiter têm seus lares comuns e suas famílias, grupos harmoniosos de Espíritos simpáticos, unidos no triunfo, como o foram na luta. Daí as moradas tão espaçosas que merecem exatamente o nome de palácios.
Ainda como nós, os Espíritos têm as suas festas, suas cerimônias, suas reuniões públicas. Daí certos edifícios destinados especialmente a essas finalidades. É preciso estar preparado para encontrar, nessas regiões superiores, uma Humanidade ativa e laboriosa como a nossa, como nós submetida às suas leis, às suas necessidades, aos seus deveres, apenas com a diferença de que o progresso, rebelde aos nossos esforços, torna-se fácil conquista para os Espíritos desprendidos, como eles são, de nossos vícios terrenos.
Eu não deveria ocupar-me aqui da arquitetura de suas habitações. Mas, para a boa compreensão dos detalhes que se seguem, não será inútil uma palavra de explicação.
Se Júpiter só é habitável por bons Espíritos, não se segue que sejam todos do mesmo grau de excelência: entre a bondade do homem simples e a do homem de gênio, podem contar-se muitas nuanças. Ora, toda a organização social desse mundo superior repousa precisamente sobre essa variedade de inteligências e de aptidões e, por efeito de leis harmoniosas cuja explicação aqui seria muito longa, cabe aos Espíritos mais elevados e mais depurados, a alta direção de seu planeta. Essa supremacia não para aí. Ela se estende até os mundos inferiores, onde esses Espíritos, por sua influência, favorecem e incessantemente ativam o progresso religioso, gerador de todos os demais. É preciso acrescentar que para esses Espíritos depurados não haveria senão trabalhos intelectuais, pois suas atividades se exercem apenas no campo do pensamento e eles já adquiriram bastante domínio sobre a matéria para não serem senão ligeiramente limitados por ela no livre exercício de sua vontade.
O corpo desses Espíritos, como aliás de todos os habitantes de Júpiter, é de tão pouca densidade que só pode ser comparada à dos nossos fluidos imponderáveis. Um pouco maior que o nosso corpo, cuja forma reproduz exatamente, entretanto mais bela e mais pura, ele teria, para nós, a aparência de um vapor ─ e aqui emprego contrafeito um vocábulo que designa uma substância ainda muito grosseira ─ de um vapor, dizia eu, intangível e luminoso... luminoso sobretudo nos contornos do rosto e da cabeça, pois aí a inteligência e a vida irradiam como um foco muito ardente. É exatamente esse brilho magnético, entrevisto pelos visionários cristãos, que os nossos pintores traduziam como o nimbo ou auréola dos santos.
Compreende-se que tal corpo não dificulta senão muito pouco as comunicações extramundanas desses Espíritos e que lhes permite, no seu próprio planeta, um deslocamento rápido e fácil. Ele se subtrai tão facilmente à atração planetária, e sua densidade difere tão pouco da densidade atmosférica, que ali pode movimentar-se, ir e vir, subir e descer, ao capricho do Espírito e sem outro esforço além da vontade. Assim, alguns personagens que Palissy houve por bem fazer-me desenhar são representados rasando o solo ou na superfície das águas ou ainda muito elevados no ar, com toda a liberdade de ação e de movimento que nós atribuímos aos anjos. Essa locomoção é tanto mais fácil quanto mais depurado é o Espírito, o que se compreende sem esforço. Assim, nada é mais fácil aos habitantes do planeta do que determinar, logo à primeira vista, o valor de um Espírito que passa. Dois sinais o delatam: a altura de seu voo e a luz mais ou menos brilhante de sua auréola.
Em Júpiter, como por toda parte, os que voam mais alto são mais raros. Abaixo deles existem várias categorias de Espíritos inferiores, quer em virtude, quer em poder, mas naturalmente livres para os igualar um dia, pelo aperfeiçoamento. Escalonados e classificados segundo os seus méritos, dedicam-se mais particularmente aos trabalhos que interessam ao próprio planeta e não exercem sobre os mundos inferiores a autoridade todo-poderosa dos primeiros. É verdade que respondem a uma evocação com revelações sábias e boas, mas, pela pressa que demonstram em nos deixar, como pelo laconismo de suas respostas, compreende-se facilmente que têm alhures muito o que fazer e que ainda não se encontram suficientemente desembaraçados a fim de poderem irradiar, simultaneamente, em dois pontos tão distantes um do outro. Enfim, seguindo os menos perfeitos desses Espíritos, mas deles separados por um abismo, vêm os animais que, como únicos criados e únicos operários do planeta, merecem referência muito especial.
Se designamos pelo nome de animais os seres bizarros que ocupam os limites inferiores da escala, é que os próprios Espíritos admitiram o uso e ainda porque a nossa linguagem não possui um termo mais adequado. Essa designação os degrada bastante; entretanto, chamá-los homens seria elevá-los demais. São, na verdade, Espíritos destinados à animalidade, talvez por longo tempo, talvez para sempre, pois nesse ponto os Espíritos não estão todos de acordo e a solução do problema parece pertencer a mundos mais elevados que Júpiter. Contudo, seja qual for o seu futuro, não há equívoco quanto ao seu passado: tais Espíritos, antes de irem para lá, migraram, seguidamente, em nossos mundos inferiores, do corpo de um ao de outro animal, por uma escala de aperfeiçoamento perfeitamente graduada. O estudo atento de nossos animais terrestres, seus costumes, seus caracteres individuais, sua ferocidade longe do homem e sua domesticação lenta, mas sempre possível, tudo indica suficientemente a realidade dessa ascensão animal.
Assim, para qualquer lado que nos voltemos, a harmonia do Universo se resume sempre numa lei única: o progresso por toda parte e para todos, para o animal como para a planta, para a planta como para o mineral. A princípio, um progresso puramente material, nas moléculas insensíveis do metal ou do seixo e cada vez mais inteligente, à medida que subimos na escala dos seres e que a individualidade tende a desembaraçar-se da massa, a se afirmar, a se conhecer.
Esse pensamento é elevado e consolador, como nunca havia sido, porque nos prova que nada é sacrificado; que a recompensa é sempre proporcional ao progresso realizado. Por exemplo: o devotamento do cão que morre por seu dono não é estéril para o seu Espírito, pois terá seu justo salário além deste mundo.
É o caso dos Espíritos animais que povoam Júpiter. Aperfeiçoaram-se ao mesmo tempo que nós, conosco e com a nossa ajuda. A lei é ainda mais admirável: ela tanto faz de seu devotamento ao homem a primeira condição para sua ascensão planetária, que a vontade de um Espírito de Júpiter pode chamar para si todo animal que, numa de suas vidas anteriores, lhe houver dado provas de afeição. Essas simpatias, que lá no alto formam famílias de Espíritos, também agrupam em torno das famílias todo um cortejo de animais dedicados. Consequentemente, nosso apego por um animal, aqui em baixo; o cuidado que temos em amansá-lo e humanizá-lo, tudo tem sua razão de ser, tudo será pago: é um bom serviçal que preparamos antecipadamente para um mundo melhor.
Será assim um operário, pois aos seus semelhantes fica reservado todo trabalho material, todo esforço corporal: carga ou construção, semeadura ou colheita. Para tudo isto a Suprema Inteligência preparou um corpo que participa simultaneamente das vantagens do animal e das do homem. Podemos fazer uma ideia por um esboço de Palissy, representando alguns desses animais muito entretidos a jogar bola. A melhor comparação que poderia fazer seria com os faunos e os sátiros da Fábula. O corpo levemente peludo, apruma-se, no entanto, como o nosso; nalguns, as patas desapareceram, dando lugar a certas pernas que lembram ainda a forma primitiva e a dois braços robustos, singularmente implantados e terminados por duas verdadeiras mãos, se considerarmos a oposição dos polegares. Singularmente, a cabeça não é tão aperfeiçoada quanto o resto. Assim, a fisionomia reflete algo de humano, mas o crânio, o maxilar e sobretudo a orelha, em nada diferem sensivelmente daqueles dos animais terrestres. É, pois, fácil distingui-los entre si: este é um cão, aquele um leão.
Adequadamente vestidos de blusas e vestes muito semelhantes às nossas, só lhes falta a palavra para se parecerem com alguns homens daqui: eis precisamente o que lhes falta e aquilo que eles não poderiam fazer. Hábeis para se entenderem entre si, por meio de uma linguagem que nada tem da nossa, não mais se enganam quanto às intenções dos Espíritos que os dirigem: um olhar, um gesto lhes é bastante. A certos impulsos magnéticos, cujo segredo já conhecem os nossos domadores de feras, o animal adivinha e obedece sem murmurar e, o que é mais importante, voluntariamente, porque está fascinado. É assim que lhe é imposta toda tarefa pesada e que, com seu auxílio, tudo funciona regularmente, de um a outro extremo da escala social: o Espírito elevado pensa e delibera; o Espírito inferior age por sua própria iniciativa e o animal executa. Assim, a concepção, a execução e o fato se unem numa mesma harmonia e levam todas as coisas à sua conclusão, com mais rapidez e pelos meios mais simples e mais seguros.
Peço desculpas por esta digressão: ela era indispensável ao assunto que agora podemos abordar.
Enquanto esperamos os mapas prometidos, que facilitarão singularmente o estudo de todo o planeta, podemos, pelas descrições feitas pelos Espíritos, fazer uma ideia de sua grande cidade, da cidade por excelência, desse foco de luz e de atividade que eles concordam em chamar ─ o que nos parece estranho ─ pelo nome latino de Julnius.
“No maior de nossos continentes”, diz Palissy, “num vale de setecentas a oitocentas léguas de largura, para utilizar vosso sistema de medidas, um rio magnífico desce das montanhas do norte e, aumentado por uma porção de torrentes e ribeirões, forma em seu percurso sete ou oito lagos dos quais o menor mereceria entre vós o nome de mar. Foi sobre as bordas do maior desses lagos, batizado com o nome de a Pérola, que os nossos antepassados lançaram os alicerces de Julnius. Essa cidade primitiva ainda existe, venerada e guardada como preciosa relíquia. Sua arquitetura muito difere da vossa. Tudo isto eu te explicarei a seu tempo: saiba apenas que a cidade moderna fica a algumas centenas de metros da antiga. Apertado entre altas montanhas, o lago se derrama no vale por oito enormes cataratas, que formam outras tantas correntes isoladas e dispersas em todas as direções. Com o auxílio dessas correntes nós cavamos na planície uma porção de regatos, de canais e de lagos, reservando o solo firme apenas para as casas e os jardins. Daí resulta uma espécie de cidade anfíbia, como a vossa Veneza e da qual, à primeira vista, não se poderia dizer se foi construída sobre a terra ou sobre a água. Hoje nada te digo sobre quatro edifícios sagrados construídos a montante das cataratas, de modo que a água jorra em catadupa de seus próprios pórticos. Essas obras vos pareceriam incríveis por sua grandeza e por sua ousadia.
“Aqui descrevo a cidade terrestre, de certo modo material, cidade das ocupações planetárias, enfim aquela a que chamamos a Cidade Baixa. Tem suas ruas, ou melhor, os seus caminhos traçados para o serviço interno; tem suas praças públicas, seus pórticos e suas pontes lançadas sobre os canais, para a passagem dos serviçais. Mas a cidade inteligente, a cidade espiritual, a verdadeira Julnius, enfim, não deve ser procurada no solo. Ela está no ar.
“Para o corpo material de nossos animais incapazes de voar[1] é necessária a terra firme, mas o nosso corpo fluídico e luminoso exige um alojamento aéreo como ele próprio, quase impalpável e móvel à nossa vontade. Nossa habilidade resolveu esse problema com o auxílio do tempo e das condições privilegiadas que o Grande Arquiteto nos concedeu. Bem compreendes que essa conquista dos ares era indispensável a Espíritos como os nossos. Nosso dia é de cinco horas e nossa noite igualmente de cinco, mas tudo é relativo, e para seres prontos a pensar e agir como nós; para Espíritos que se compreendem pela linguagem dos olhos e que sabem comunicar-se magneticamente à distância, nosso dia de cinco horas equivaleria a uma semana de vossas atividades. Isso tudo ainda era muito pouco, em nossa opinião. A imobilidade da morada, o ponto fixo do lar eram um entrave para todas as nossas grandes obras. Hoje, pelo fácil deslocamento dessas moradas de pássaros, pela possibilidade de nos transportarmos, assim como aos nossos, para qualquer lugar do planeta, à hora que bem quisermos, nossa existência no mínimo duplicou, e com ela, tudo quanto ela pode produzir de útil e de grande.
“Em certas épocas do ano”, acrescenta o Espírito, “em certas festas, por exemplo, verás aqui o céu obscurecido pela nuvem de habitações que vêm de todos os pontos do horizonte. É um curioso ajuntamento de moradias esbeltas, graciosas, leves, de todas as formas, de todas as cores, equilibradas em diversas alturas e continuamente em marcha, da cidade baixa para a cidade celeste. Alguns dias depois, faz-se o vazio pouco a pouco e todos esses pássaros se vão.”
Nada falta a essas moradas flutuantes, nem mesmo o encanto da verdura e das flores. Falo de uma vegetação sem similar entre vós, de plantas e até de arbustos que, pela natureza de seus órgãos, vivem, respiram, alimentam-se e se reproduzem no ar.
Diz ainda o mesmo Espírito:
“Temos esses tufos de flores enormes, cujas formas e nuanças nem podeis imaginar, e de uma textura tão delicada, que as torna quase transparentes. Balouçando-se no ar, onde largas folhas as sustêm, providas de gavinhas semelhantes às da videira, reúnem-se em nuvens de mil tons ou se dispersam ao sabor do vento e oferecem um espetáculo encantador aos transeuntes da cidade baixa... Imagina a graça dessas jangadas de verdura, desses jardins flutuantes que nossa vontade pode fazer e desfazer e que por vezes duram toda uma estação! Longos rastilhos de lianas e de ramos floridos se destacam dessas alturas e descem até o solo; cachos enormes se agitam, exalando perfume das pétalas que se destacam... Os Espíritos que viajam pelo ar aí estacionam: é um lugar de repouso e de reencontro e, se assim o desejarem, um meio de transporte para terminar uma viagem sem fadigas e em boa companhia.”
Um outro Espírito estava sentado sobre uma dessas flores no momento em que o evoquei. Disse-me ele:
“Neste instante é noite em Julnius e me acho sentado à distância, numa dessas flores do ar que só se abrem aqui à claridade de nossas luas. A meus pés dormita toda a cidade baixa; mas acima da minha cabeça e em volta de mim, a perder de vista, só há movimento e alegria no espaço. Dormimos pouco: nossa alma é muito desprendida, de modo que as necessidades do corpo não a tiranizam. A noite é feita mais para os nossos servos do que para nós. É a hora das visitas, das conversas longas, dos passeios solitários, dos devaneios, da música. Só vejo moradas aéreas resplendentes de luz ou jangadas de folhas e de flores carregadas de bandos alegres... A primeira de nossas luas ilumina toda a cidade baixa: é uma luz suave, comparável à dos vossos luares; mas, da margem do lago eleva-se a segunda, a de reflexos esverdeados, que dão a todo o rio o aspecto de um vasto gramado...”
É sobre a margem direita desse rio, “cuja água, diz o Espírito, dar-te-ia a impressão da consistência de um vapor muito leve”[2], que está construída a casa de Mozart, cujo desenho Palissy teve a bondade de me fazer reproduzir sobre cobre.
Apresento aqui apenas a fachada do lado sul. A grande entrada fica à esquerda, olhando a planície; à direita fica o rio; ao norte e ao sul estão os jardins. Perguntei a Mozart quem eram seus vizinhos.
─ Mais acima e mais abaixo, dois Espíritos que não conheces, mas à esquerda apenas um grande prado me separa do jardim de Cervantes.
A casa tem quatro faces, como as nossas, mas seria erro considerar isto como regra geral. É construída com uma certa pedra que os animais tiram das pedreiras do norte e cuja cor o Espírito compara aos tons esverdeados que por vezes toma o azul do céu, ao pôr do sol. Quanto a sua dureza, pode-se fazer uma ideia por esta comparação de Palissy: “que ela fundir-se-ia sob a pressão de nossos dedos humanos tão rapidamente quanto um floco de neve, posto seja uma das matérias mais resistentes daquele planeta! Nessas paredes os Espíritos esculpiram ou incrustaram estranhos arabescos que o desenho procura reproduzir. São ornamentos gravados na pedra e depois coloridos, ou incrustações feitas na solidez da pedra verde por um processo atualmente muito em voga e que mantém toda a graça dos contornos dos vegetais, toda a delicadeza de seus tecidos e toda a riqueza de seu colorido. “Uma descoberta”, acrescentou o Espírito, “que fareis um dia e que entre vós mudará muitas coisas.”
A grande janela da direita apresenta um exemplo desse gênero de ornatos: uma de suas bordas mais não é que um enorme caniço, cujas folhas foram conservadas. O mesmo ocorre no coroamento da janela principal, que imita a forma da clave de sol: são plantas sarmentosas enlaçadas e petrificadas. É por tal processo que eles obtêm a maior parte dos coroamentos dos edifícios, dos portões, das balaustradas, etc. Por vezes a planta é colocada na parede, com suas raízes, em condições de crescer livremente. Ela cresce, desenvolve-se, suas flores se espalham ao acaso, e o artista não as petrifica no lugar senão quando adquiriram todo o desenvolvimento desejado para a ornamentação do edifício. A casa de Palissy é quase que inteiramente decorada por esse processo.
Inicialmente destinado só aos móveis, depois aos batentes das portas e das janelas, esse gênero de ornamento aperfeiçoou-se pouco a pouco e acabou por invadir toda a arquitetura. Hoje não são petrificados apenas as flores e os arbustos, mas as próprias árvores, da raiz até a copa. Os palácios, como outros edifícios, praticamente não têm outras colunas.
Uma petrificação da mesma natureza serve também à decoração das janelas. Flores ou folhas muito grandes são habilmente despojadas de sua parte carnuda. Não resta mais que um feixe de fibras, tão finas quanto a mais fina musselina. Cristalizam-nas, e dessas folhas reunidas com arte constroem toda a janela, que apenas filtra para o interior uma luz muito suave. Também as impregnam de uma espécie de vidro líquido e colorido de todos os matizes, que endurece no ar e que transforma a folha numa espécie de vidraça. Do arranjo dessas folhas nas janelas resultam encantadores ramos transparentes e luminosos.
Quanto às dimensões dessas aberturas e a inúmeros outros detalhes que, à primeira vista, podem surpreender, vejo-me obrigado a uma explicação: a história da arquitetura em Júpiter exigiria um volume inteiro. Também desisto de falar no mobiliário, para me restringir, aqui, à disposição geral da casa.
Depois do que precede, o leitor deve ter compreendido que a casa do continente não deve ser para o Espírito mais que uma espécie de pousada.
A cidade baixa quase que só é frequentada por Espíritos de segunda categoria, encarregados dos interesses planetários, da agricultura, por exemplo, ou das trocas e da boa ordem que deve ser mantida entre os serviçais. Assim, todas as casas que estão no solo, geralmente dispõem de um pavimento térreo e um superior, o térreo destinado aos Espíritos que atuam sob a direção do senhor, também acessível aos animais; o outro reservado unicamente ao Espírito, que aí mora apenas ocasionalmente. Eis o que explica o fato de vermos nas diversas casas de Júpiter, nesta, por exemplo, como na de Zoroastro, uma escadaria e até uma rampa. Aquele que rasa a água, como uma andorinha e que pode correr sobre as hastes do trigo sem curvá-las, pode perfeitamente dispensar a escadaria e a rampa para penetrar na sua casa. Mas os Espíritos inferiores não têm o voo tão fácil. Não se elevam senão por movimentos irregulares e nem sempre a rampa lhes é inútil. Enfim, a escadaria é de absoluta necessidade para os animais serviçais, que apenas andam como nós. Estes últimos também possuem seus pavilhões, aliás muito elegantes, e que fazem parte de todas as grandes habitações, mas suas funções os chamam, constantemente, à casa do senhor, e é necessário facilitar-lhes a entrada e o trânsito interno. Daí essas construções originais, cuja base assemelha-se aos nossos edifícios terrestres e dos quais diferem inteiramente na parte superior.
Esta se distingue por uma originalidade que seríamos absolutamente incapazes de imitar. É uma espécie de flecha aérea que balança no topo do edifício, acima da grande janela e de seu original coroamento. A essa gávea delicada e fácil de deslocar está determinado, entretanto, no pensamento do artista, permanecer no lugar que lhe foi definido porque, sem repousar em coisa alguma no frontão, completa-lhe a decoração. Lamentavelmente a dimensão da prancha não permitiu encontrar espaço para ela.
Quanto à morada aérea de Mozart, cabe aqui apenas constatar a sua existência. Os limites deste artigo não permitem que me estenda sobre o assunto.
Não concluirei, entretanto, sem me explicar, de passagem, sobre o gênero de ornamentos que o grande artista escolheu para a sua morada. É fácil identificar-lhe a semelhança com a nossa música terrestre: a clave de sol é ali repetida com frequência e ─ coisa original ─ nunca a clave de fá! Na decoração do rés do chão encontramos um arco de violino, uma espécie de tiorba ou bandolim, uma lira e uma pauta de música. Mais acima há uma grande janela que lembra vagamente a forma de um órgão; as outras têm a aparência de grandes notas, mas as notas pequenas são abundantes por toda a fachada.
Seria erro concluir que a música de Júpiter seja comparável à nossa e que se represente pelos mesmos sinais. Mozart explicou-se sobre isto, de maneira a não deixar dúvidas. Mas, na decoração de suas casas, os Espíritos lembram a missão terrestre que lhes deu o mérito da encarnação em Júpiter e que resume magnificamente a feição de sua inteligência. Assim, na casa de Zoroastro são os astros e a chama que constituem todos os elementos decorativos.
Além disto, parece que esse simbolismo tem suas regras e seus segredos. Esses ornamentos todos não se dispõem ao acaso. Eles têm sua ordem lógica e sua significação precisa, mas é uma arte que os Espíritos de Júpiter se abstêm de fazernos compreender, pelo menos por enquanto, e sobre a qual não se explicam de bom grado.
Nossos antigos arquitetos também empregavam o simbolismo na decoração de suas catedrais. A Torre de São Tiago é um poema hermético, se dermos crédito à tradição. Portanto, não há motivo para nos admirarmos da originalidade da decoração arquitetônica em Júpiter. Se ela contraria as nossas ideias sobre a arte humana é que, na verdade, existe um abismo entre uma arquitetura que vive e fala e uma alvenaria inexpressiva como a nossa. Nisto, como em tudo o mais, a prudência nos permite evitar esse erro do relativismo, que quer reduzir tudo às proporções e aos hábitos do homem terreno. Se os habitantes de Júpiter morassem como nós, comessem, vivessem, dormissem e andassem como nós, não haveria muita vantagem em ir para lá. É porque o seu planeta difere muito do nosso que desejamos conhecê-lo e sonhamos com ele como nossa futura morada.
De minha parte, penso que não perdi meu tempo e ficaria muito feliz por me haverem os Espíritos escolhido para seu intérprete se os seus desenhos e as suas descrições inspirarem a um só crente o desejo de subir mais rapidamente para Julnius e a coragem de tudo fazer para consegui-lo.
VICTORIEN SARDOU
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O autor desta interessante descrição é um desses adeptos fervorosos e esclarecidos que não temem confessar alto e bom som as suas crenças e colocam-se acima da crítica daqueles que não creem em nada além do seu círculo de ideias. Ligar seu nome a uma doutrina nova, desafiando sarcasmos, é uma coragem que não é dada a todos. Felicitamos ao Sr. V. Sardou porque a possui. Seu trabalho revela o distinto escritor que, jovem ainda, já conquistou um lugar de honra na literatura e alia ao talento de escritor profundos conhecimentos de sábio. É mais uma prova de que o Espiritismo não recruta entre os tolos e ignorantes. Fazemos votos para que o Sr. Sardou complete o mais breve possível o seu trabalho tão auspiciosamente começado. Se os astrônomos nos desvendam, por sábias pesquisas, o mecanismo do Universo, por suas revelações os Espíritos nos dão a conhecer o seu estado moral e, como eles mesmos dizem, é com o objetivo de motivar-nos ao bem, a fim de merecermos uma vida melhor.
ALLAN KARDEC.[3]
[1] Entretanto há que excetuar certos animais alados e destinados ao serviço do ar e aos trabalhos que entre nós exigiriam carpinteiros. É uma transformação da ave, como os animais acima descritos são uma transformação dos quadrúpedes.
[2] A densidade de Júpiter é de 0,23, ou seja, pouco mais ou menos um quarto da densidade da Terra. Tudo quanto o Espírito diz aqui é muito verossímil. Compreende-se que tudo é relativo e que nesse globo etéreo, tudo, como ele, seja etéreo.
[3] Paris. Tipografia de Cosson & Cia, Rua do Four-Saint-Germain, 43.