Um Espírito que se julga proprietário Em casa de um dos membros da Sociedade de Paris que faz reuniões espíritas, desde algum tempo vinham bater à porta, e quando iam abrir, não encontravam ninguém. Os toques de campainha eram dados com força e como que por alguém que estivesse determinado a entrar. Tendo sido tomadas todas as precauções para se assegurar de que o fato não era devido a uma causa acidental, nem à malevolência, concluiu-se que devia ser uma manifestação. Num dia de sessão o dono da casa pediu ao visitante invisível a bondade de se dar a conhecer e dizer o que desejava. Eis as duas comunicações que deu:
I
(Paris, 22 de dezembro de 1868)
“Agradeço-vos, senhor, o amável convite para tomar a palavra e, considerando que me encorajais, vencerei minha timidez para vos externar meu desejo francamente.
“Para começar, devo dizer que nem sempre fui rico. Nasci pobre, e se triunfei, devo-o a mim só. Não vos direi, como tantos outros, que cheguei a Paris com uma mão na frente e outra atrás; é uma velha lenda que não mais convence; mas eu tinha ardor, e o espírito especulador por excelência. Quando menino, se eu emprestava três bolas, a pessoa que tomava emprestado tinha que devolver quatro. Negociava com tudo o que tinha e ficava feliz ao ver pouco a pouco engrossar o meu tesouro. É verdade que circunstâncias infelizes me despojaram várias vezes; eu era fraco; outros mais fortes apoderaram-se do meu ganho e eu tinha que recomeçar tudo. Mas eu era perseverante.
“Pouco a pouco deixei a infância; minhas ideias cresceram. Menino, tinha explorado os camaradas; moço, explorava os companheiros de oficina. Eu fazia carretos; era amigo de todo mundo, mas cobrava pelo meu trabalho e pela minha amizade. “Ele é agradável, diziam, mas não se lhe deve falar em dar.” He! he! É assim que se faz. Ide, pois, ver esses belos filhos de hoje, que gastam tudo o que possuem no jogo e no café! Eles arruínam-se e se endividam, de alto a baixo da escala. Eu deixava que os outros corressem como loucos, aos trancos e barrancos; eu andava lenta e prudentemente. Assim cheguei ao porto e adquiri uma fortuna considerável.
“Era feliz. Tinha mulher e filhos. Ela, um pouco vaidosa, os outros, gastadores. Pensava que com a idade tudo isto desapareceria. Mas não. Entretanto eu os contive muito tempo pelas rédeas. Mas um dia fiquei doente. Chamaram o médico, que fez muito mal à minha bolsa. Depois... perdi o discernimento...
“Quando recuperei a razão, tudo ia lindamente! Minha mulher recebia visitas; meus filhos tinham carruagens, cavalos, criados, secretário, que sei eu! Todo um exército voraz que se atirou sobre o meu pobre patrimônio, tão penosamente adquirido, para consumi-lo.
“Entretanto, logo percebi que a desordem estava organizada; não gastavam senão as rendas, mas as gastavam largamente. Eram bastante ricos; não tinham mais necessidade de capitalizar como o bom velho; era preciso gozar e não entesourar... E eu ficava de boca aberta, sem saber o que dizer, porque se erguia a voz, não era escutado; eles fingiam não me ver. Desde então sou uma nulidade; os criados não me enxotam ainda, embora a minha roupa não seja compatível com o luxo dos cômodos, mas não prestam atenção em mim. Sento-me, levanto-me, esbarro nos visitantes, detenho os criados. Parece que nada sentem. Contudo, tenho vigor, espero, e vós podeis testemunhá-lo, vós que me ouvistes tocar. Creio que é de propósito; sem dúvida querem tornar-me louco para se livrarem de mim.
“Tal era minha situação, quando vim visitar uma das minhas casas, velho hábito que ainda conservo, embora eu não seja mais o dono. Vi construir tudo. Foram os meus escudos que pagaram tudo; e eu gosto dessas casas, cuja renda enriquece meus filhos ingratos.
“Assim, cá estava eu em visita, quando soube que espíritas aqui se reuniam. Isto me interessou. Inquiri sobre o Espiritismo e soube que os espíritas pretendiam explicar todas as coisas. Como minha situação me parece pouco clara, não me aborreceria se recebesse, a respeito, o conselho dos Espíritos. Não sou nem incrédulo nem curioso; desejo ver e crer, ser esclarecido, e se vós me reconduzirdes à posição de governar tudo em minha casa, palavra de proprietário, não subirei o vosso aluguel enquanto viver.”
II
(Paris, 29 de dezembro de 1868)
“Dizeis que estou morto? Mas pensais bem no que dizeis?... Pretendeis que meus filhos não me veem, nem me escutam. Mas vós me vedes e me escutais, porque conversais comigo; porque abris a porta quando toco; porque interrogais e eu respondo... Escutai, eu percebo o que acontece; sois menos fortes do que eu pensava, e como os vossos Espíritos nada podem dizer, quereis embrulhar-me, fazendo-me duvidar de minha razão... Tomais-me por uma criança? Se eu houvesse morrido, seria um Espírito como eles e os veria, mas não vejo nenhum e ainda não me pusestes em contato com eles.
“Há, entretanto, uma coisa que me intriga. Dizei-me, pois, por que escreveis tudo o que digo? Por acaso quereis trair-me? Dizem que os espíritas são loucos; pensais, talvez, em dizer a meus filhos que me ocupo de Espiritismo e, assim, lhes dar meios de me interditar?
“Mas ele escreve, escreve!... Ainda não acabei de pensar e logo as minhas ideias estão no papel... Tudo isto não está claro!... O que é certo é que vejo, falo, respiro, ando, subo as escadas e, graças a Deus, percebo que é no número cinco que morais... Não é caridoso brincar assim com as penas dos outros. Eu respiro; e não posso mais, e pretendem fazer-me crer que não tenho mais corpo?... Eu sinto bem a minha asma, acredito! ... Quanto àqueles que me disseram que isto era o Espiritismo, então! mas são pessoas como vós; minhas conhecidas, que eu tinha perdido de vista e que encontrei depois da minha doença!
“Oh! Mas é estranho!... Oh! Por exemplo, eu não existo mais; absolutamente não existo mais!... Mas, parece-me... Oh! Minha memória que vai... sim... não... mas sim... Eu estou louco, palavra... Eu falei com pessoas que julgava mortas e enterradas há oito ou dez anos... Caramba! Eu assisti aos enterros; eu fiz negócios com os herdeiros!... Realmente é estranho!... E elas falam! Elas andam... Elas conversam!... Elas sentem o seu reumatismo!... Elas falam da chuva e do bom tempo... Elas tomam do meu rapé e apertam-me a mão!
“Mas, então, eu!... Não, não, não é possível! Eu não estou morto! Não se morre assim, sem perceber... Ainda estive no cemitério, justamente no fim de minha doença... era um parente... meu filho estava de luto... minha mulher lá não estava, mas ela chorava... Eu o acompanhei, esse pobre querido... Mas quem era, então? Na verdade não sei... Que perturbação estranha me agita!... Seria eu?... Mas não, porque eu acompanhava o corpo, e não podia estar no túmulo... Estar lá, e lá embaixo!... e contudo!... como tudo isto é estranho!... que novelo embaraçado!... Não me digais nada; quero procurar sozinho; vós me perturbaríeis... Deixai-me; eu voltarei...
Decididamente parece que sou um fantasma!... Oh! que coisa singular!”
OBSERVAÇÃO: Este Espírito está na mesma situação que o precedente, no sentido que um e outro ainda se julgam neste mundo; mas há entre eles a diferença que um se julga de posse de seu corpo carnal, ao passo que o outro tem consciência de seu estado espiritual, mas imagina que sonha. Este último, sem a menor dúvida, está mais próximo da verdade, contudo, será o último a voltar de seu erro. O exproprietário certamente estava muito apegado aos bens materiais, mas a sua avareza e os hábitos de economia um pouco sórdida provam que não levava vida sensual. Além disso, ele não é decididamente incrédulo; ele não rejeita a espiritualidade. Ao contrário, Luís a teme; o que ele lamenta não é a ausência da fortuna que gastava em vida, mas os prazeres que tal gasto lhe permitia. Não podendo admitir que sobrevive ao seu corpo, crê sonhar; compraz-se nessa ideia, na esperança de voltar à vida mundana; nela ele se aferra por todos os sofismas que sua imaginação lhe pode sugerir. Portanto, ele ficará nesse estado porque quer, até que a evidência lhe venha abrir os olhos. Qual deles sofrerá mais ao despertar? A resposta é fácil: um apenas ficará mediocremente surpreendido, o outro ficará apavorado.