Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1869

Allan Kardec

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A música espírita

(Paris, grupo Desliens, 9 de dezembro de 1868 – Médium: Sr. Desliens.)

Recentemente, na sede da Sociedade Espírita de Paris, o presidente deu-me a honra de perguntar minha opinião sobre o estado atual da música e sobre as modificações que a ela poderia trazer a influência das crenças espíritas. Se não atendi imediatamente a esse benévolo e simpático apelo, crede, senhores, que só uma causa maior motivou a minha abstenção.

Os músicos, ah! são homens como os outros, talvez mais homens, e, a esse título, eles são falíveis e pecadores. Não fui isento de fraquezas, e se Deus me deu vida longa, a fim de me dar tempo de me arrepender, a embriaguez do sucesso, a complacência dos amigos, a adulação dos cortesãos muitas vezes me tiraram os meios. Um maestro é uma potência, neste mundo onde o prazer representa tão grande papel. Aquele cuja arte consiste em seduzir o ouvido, em enternecer o coração, vê muitas ciladas criadas sob seus passos e nelas cai, o infeliz! Ele embriaga-se com a embriaguez dos outros; os aplausos lhe tapam os ouvidos e ele vai direito ao abismo, sem procurar um ponto de apoio para resistir ao arrastamento.

Contudo, a despeito de meus erros, eu tinha fé em Deus. Eu cria na alma que vibrava em mim, e, desprendida de sua caixa sonora, ela prontamente se reconheceu em meio às harmonias da criação e confundiu sua prece com aquelas que se elevavam da Natureza ao infinito, da criatura ao ser incriado!...

Estou feliz pelo sentimento que provocou minha vinda entre os espíritas, porque foi a simpatia que a ditou, e se a princípio a curiosidade me atraiu, é ao meu reconhecimento que deveis minha apreciação da pergunta que foi feita. Eu lá estava, pronto para falar, crendo tudo saber, quando meu orgulho, caindo, desvelou minha ignorância. Fiquei mudo e escutei. Voltei, instruí-me e, quando às palavras acerca da verdade emitidas por vossos instrutores se juntaram a reflexão e a meditação, eu disse para mim mesmo: O grande maestro Rossini, o criador de tantas obras-primas, segundo os homens, ah! não fez senão debulhar algumas das pérolas menos perfeitas do escrínio musical criado pelo mestre dos maestros. Rossini juntou notas, compôs melodias, provou a taça que contém todas as harmonias; ele roubou algumas centelhas do fogo sagrado, mas esse fogo sagrado, nem ele criou, nem os outros! ─ Nós nada inventamos; nós copiamos do grande livro da Natureza e a multidão aplaude quando não deformamos muito a partitura.

Uma dissertação sobre a música celeste!... Quem poderia encarregar-se disso? Que Espírito sobre-humano poderia fazer vibrar a matéria em uníssono com essa arte encantadora? Que cérebro humano, que Espírito encarnado poderia captar as suas nuanças variadas ao infinito?... Quem possui a esse ponto o sentimento da harmonia?... Não, o homem não foi feito para tais condições!... Mais tarde!... Muito mais tarde!...

Enquanto se espera, talvez eu venha em breve satisfazer o vosso desejo e vos dar minha apreciação sobre o estado atual da música e vos dizer das transformações, dos progressos que o Espiritismo poderá aí introduzir.

Hoje ainda é muito cedo. O assunto é vasto, já o estudei, mas ele ainda está fora do meu alcance. Quando dele eu for senhor, se tal for possível, ou melhor, quando tiver entrevisto tanto quanto me permitir o estado do meu espírito, eu vos satisfarei. Ainda um pouco de tempo. Se só um músico pode bem falar da música do futuro, deve fazê-lo como mestre, e Rossini não quer falar como aprendiz.

ROSSINI.

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