Poder do ridículo
Lendo um jornal, encontramos esta frase proverbial: Na França o ridículo sempre mata. Isto nos sugeriu as seguintes reflexões:
Por que na França, antes que alhures? É que aqui, mais que alhures, o espírito, ao mesmo tempo fino, cáustico e jovial, apreende logo de saída o lado alegre ou ridículo das coisas; busca-o por instinto, sente-o, adivinha-o, por assim dizer farejao; descobre-o onde outros não o percebiam e o põe em relevo com habilidade. Mas o espírito francês quer, antes de tudo, o bom gosto, a urbanidade até na troça; ele ri de boa vontade de uma pilhéria fina, delicada, sobretudo espirituosa, ao passo que as caricaturas de mau gosto, a crítica pesada, grosseira, causticante, semelhante à pata do urso ou ao soco do rústico, lhe repugnam, porque ele tem uma repulsa instintiva pela trivialidade.
Talvez digam que certos fatos modernos parecem desmentir essas qualidades. Haveria muito a dizer sobre as causas deste desvio, que não deixa de ser muito real, mas que é apenas parcial, e não pode prevalecer sobre o fundo do caráter nacional, como demonstraremos qualquer dia. Apenas diremos, en passant, que esses acontecimentos que surpreendem as pessoas de bom gosto, em grande parte, são devidos à curiosidade muito vivaz, também, no caráter francês. Mas, escutai a multidão à saída de certas exibições; o julgamento que domina, mesmo na boca do povo, resume-se nestas palavras: É desagradável, contudo viemos, apenas para poder dizer que vimos uma excentricidade. Lá não voltam, mas, esperando que a multidão de curiosos tenha desfilado, o sucesso está feito, e é tudo o que pedem. Dáse o mesmo em certos eventos supostamente literários.
A aptidão do espírito francês para captar o lado cômico das coisas faz do ridículo uma verdadeira potência, maior na França do que em outros países, mas é certo dizer que sempre mata?
É preciso distinguir o que se pode chamar de ridículo intrínseco, isto é, inerente à própria coisa, e o ridículo extrínseco, vindo de fora e derramado sobre uma coisa. Sem dúvida este último pode ser lançado sobre tudo, mas só fere o que é vulnerável; quando ataca as coisas que não dão margem, desliza sem alcançá-las. A mais grotesca caricatura de uma estátua irrepreensível nada tira de seu mérito e não a faz decair na opinião, pois cada um pode apreciá-la.
O ridículo não tem força senão quando fere com precisão, quando ressalta com espírito e finura os defeitos reais; é então que ele mata; mas quando cai no falso, absolutamente não mata, ou melhor, ele se mata. Para que o adágio acima seja completamente verdadeiro, seria preciso dizer: “Na França o ridículo sempre mata o que é ridículo.” O que realmente é verdadeiro, bom e belo jamais é ridículo. Se ridicularizarmos uma personalidade notoriamente respeitável, como, por exemplo, o cura Vianney, inspiraremos repulsa, mesmo aos incrédulos, tanto é verdade que o que é respeitável em si mesmo é sempre respeitado pela opinião pública.
Como nem todos têm o mesmo gosto nem a mesma maneira de ver, o que é verdadeiro, bom e belo para uns, pode não ser para outros. Então quem será o juiz? O ser coletivo que se chama todo mundo, e contra cujas decisões em vão protestam as opiniões isoladas. Algumas individualidades podem ser momentaneamente desviadas pela crítica ignorante, malévola ou inconsciente, mas não as massas, cujas opiniões sempre acabam triunfando. Se a maioria dos convivas num banquete gosta de um prato, por mais que digais que é ruim, não impedireis que o comam, ou pelo menos que o provem.
Isto nos explica por que o ridículo, derramado em profusão sobre o Espiritismo, não o matou. Se ele não sucumbiu, não foi por não ter sido revirado em todos os sentidos, transfigurado, desnaturado, grotescamente ridicularizado por seus antagonistas. Contudo, após dez anos de encarniçada agressão, ele está mais forte do que nunca. É porque ele é como a estátua de que falamos há pouco.
Em definitivo, sobre o que se exerceu particularmente o sarcasmo, a propósito do Espiritismo? No que realmente apresenta o flanco à crítica: os abusos, as excentricidades, as exibições, as explorações, o charlatanismo sob todos os aspectos, as práticas absurdas, que são apenas a sua paródia, de que o Espiritismo sério jamais tomou a defesa, mas que, ao contrário, tem sempre desautorizado. Assim, o ridículo não feriu, e não pôde morder senão o que era ridículo na maneira pela qual certas pessoas pouco esclarecidas concebem o Espiritismo. Se ele ainda não matou inteiramente esses abusos, deu-lhes um golpe mortal, e era de justiça.
Portanto, o Espiritismo verdadeiro só ganhou desembaraçando-se da chaga de seus parasitas, e foram os seus inimigos que disso se encarregaram. Quanto à Doutrina propriamente dita, é de notar que ela quase sempre ficou fora do debate. Contudo, é a parte principal, a alma da causa. Seus adversários bem compreenderam que o ridículo não podia atingi-la; eles sentiram que a fina lâmina da troça espirituosa deslizaria sobre a couraça, por isso a atacaram com o tacape da injúria grosseira e o soco do rústico, mas com tão pouco sucesso.
Desde o princípio, o Espiritismo pareceu a certos indivíduos à cata de intrigas, uma fecunda mina a explorar por sua novidade; alguns, menos tocados pela pureza de sua moral do que pelas chances que aí entreviam, meteram-se sob a égide de seu nome, com a esperança de fazer dele um meio. São os que podem ser chamados espíritas de circunstância.
Que teria acontecido a esta doutrina se ela não tivesse usado toda a sua influência para frustrar e desacreditar as manobras da exploração? Teríamos visto os charlatães pululando de todos os lados, fazendo uma aliança sacrílega daquilo que há de mais sagrado: o respeito aos mortos com a pretensa arte dos feiticeiros, adivinhos, tiradores de cartas, ledores da sorte, suprindo os Espíritos pela fraude, quando estes não vêm. Logo teríamos visto as manifestações levadas para os palcos, truncadas pelos passes de escamoteação; gabinetes de consultas espíritas anunciados publicamente e revendidos, como agências de emprego, conforme a importância da clientela, como se a faculdade mediúnica pudesse ser transmitida como uma quotaparte de uma empresa.
Por seu silêncio, que teria sido uma aprovação tácita, a Doutrina ter-se-ia tornado solidária com esses abusos, diremos mais, cúmplice deles. Então a crítica estaria em condições favoráveis, porque poderia, com razão, ter atacado a Doutrina que, por sua tolerância, teria assumido a responsabilidade do ridículo e, por conseguinte, da justa reprovação lançada sobre os abusos; talvez tivesse ela levado mais de um século para erguer-se desse malogro. Seria preciso não compreender o caráter do Espiritismo e, ainda menos, seus verdadeiros interesses, para crer que tais auxiliares pudessem ser úteis à sua propagação e fossem próprios para torná-lo considerado como uma coisa santa e respeitável.
Estigmatizando a exploração, como fizemos, temos a certeza de haver preservado a Doutrina de um verdadeiro perigo, perigo maior que a má vontade de seus antagonistas confessos, porque isso resultaria em seu descrédito. Ela ter-lhe-ia, por isso mesmo, oferecido um lado vulnerável, ao passo que eles se detiveram ante a pureza de seus princípios. Não ignoramos que contra nós suscitamos a animosidade dos exploradores e que nos afastamos de seus partidários, mas, que importa? Nosso dever é arvorar a causa da Doutrina e não os interesses deles, e esse dever nós cumpriremos com perseverança e firmeza, até o fim.
Não era pouca coisa lutar contra a invasão do charlatanismo, num século como este, sobretudo um charlatanismo secundado, por vezes suscitado pelos mais implacáveis inimigos do Espiritismo, porque, depois de haver fracassado pelos argumentos, eles compreendiam que o que lhes poderia ser mais fatal era o ridículo.
Por isto, o mais seguro meio seria fazê-lo explorar pelo charlatanismo, a fim de desacreditá-lo na opinião pública.
Todos os espíritas sinceros compreenderam o perigo que assinalamos e nos secundaram em nossos esforços, reagindo por seu lado contra as tendências que ameaçavam desenvolver-se. Não são alguns casos de manifestações, supondo-os reais, dados como espetáculo, como aperitivo à minoria, que dão verdadeiros prosélitos ao Espiritismo, porque, em tais condições, eles autorizam a suspeita. Os próprios incrédulos são os primeiros a dizer que, se os Espíritos realmente se comunicam, não será para servirem de comparsas ou parceiros a tanto por sessão; eis por que riem deles. Eles acham ridículo que nessas cenas se misturem nomes respeitáveis, e estão cheios de razão. Para uma pessoa que seja levada ao Espiritismo por essa via, sempre supondo um fato real, haverá cem que serão desviadas, sem mais querer ouvir dele falar. A impressão será outra nos meios onde nada de equívoco pode suscitar suspeitas à sinceridade, à boa-fé e ao desinteresse, onde a notória honorabilidade das pessoas impõe respeito. Se daí não saem convencidos, pelo menos não levam a ideia de uma charlatanice.
O Espiritismo, portanto, nada tem a ganhar, e só poderia perder apoiando-se na exploração, ao passo que os exploradores é que se beneficiariam. Seu futuro não está na crença de um indivíduo em tal ou qual caso de manifestação; está inteirinho no ascendente que ele conquistar pela moralidade. Foi por esse caminho que ele triunfou e continuará triunfando sobre as manobras de seus adversários. Sua força está no seu caráter moral, e isso ninguém lhe arrebatará.
O Espiritismo entra numa fase solene, mas na qual ainda terá que sustentar grandes lutas. É necessário, pois, que seja forte por si mesmo e, para ser forte, é preciso que seja respeitável. Cabe aos seus adeptos dedicados fazer que ele seja respeitado, inicialmente pregando-o, pessoalmente, pela palavra e pelo exemplo, e depois, em nome da Doutrina, desaprovando tudo quanto possa prejudicar a consideração de que ele deve ser cercado. É assim que ele poderá desafiar as intrigas, a troça e o ridículo.